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quarta-feira, 14 de julho de 2021

Covid-19 e o capitalismo de desastre

 

   Suellen Correa (doutora em Antropologia pela UFF)


* Foto sem autoria retirada da matéria “Capitalismo, coronavírus e mudança climática”, disponível em https://esquerdaonline.com.br/2020/07/12/capitalismo-coronavirus-e-mudanca-climatica/ (acesso em 12 jul. 2021).

                      

    Em ensaio anterior pude apresentar a discussão acerca da crescente necessidade de reformulação e adequação dos estudos de eventos de riscos (desastres e catástrofes) nas Ciências Sociais a partir da pandemia pelo novo Corona Vírus [1], sendo esta um evento novo para essa área de pesquisa em termos de abrangência, de número de mortes e afetados, além da extensa diversidade de consequências econômicas, sociais, políticas e culturais na atualidade.

    Ao considerar a pandemia da Covid-19 como um evento de desastre – ou de catástrofe (MONTANO; SAVITT, 2020) – é possível tecer algumas relações de semelhança com estes “eventos críticos” (DAS, 1995). A que se procura tratar nesta breve reflexão é a relação dos desastres com oportunidades de crescimento patrimonial para uma pequena parcela da população, além de facilitações ao avanço neoliberal. Esta relação pode estar ligada ao chamado capitalismo de desastre [KLEIN, 2008).

    Segundo o pesquisador português José Manuel Mendes, os eventos de catástrofes “podem ser reveladores da lógica do capitalismo e dos limites do neoliberalismo” (2016, p.4). Ainda que Mendes defenda o estudo do capitalismo enquanto um sistema econômico sem coerência, ou essência inerente - apesar de reconhecê-lo como força de acumulação e de distribuição do capital (ARRIGUI, 2010, apud MENDES, 2016, p.4) – para o sociólogo é possível apreender uma lógica subjacente aos desastres, ao analisar as “configurações que o capitalismo assume nos contextos específicos onde opera, e a sua relação complexa com as formas de Estado, as culturas e as sociedades que encontra” (MENDES, 2016, p. 4-5). Tomando essa perspectiva, a lógica da acumulação foi (e está sendo) um dos fatores descortinados nesta pandemia. Alguns exemplos apresentam como este tipo de crise sanitária é apropriado pelo capitalismo de desastre.

    Uma amostra que ilustra a questão é apresentada por Naomi Klein, ao problematizar como o neoliberalismo e o capitalismo esticam seus limites e suas operações em contextos de choque e de crise [2]. A jornalista canadense lembra das tentativas de resgates corporativos sem restrições e regulação, tomando como justificativa a crise da Covid-19, que foram exploradas pelo governo Trump e por outros ao redor do mundo (2020).

    Outro exemplo vem da Índia que, apesar de ter sido um dos países que mais sofreu com mortes e a crise econômica pelo novo Corona Vírus, viu as fortunas dos indianos mais ricos dispararem dezenas de bilhões de dólares, segundo levantamento [3].

    Recentemente não só a fortuna de uns aumentou como outros passaram a fazer parte do grupo dos mais ricos. Segundo o relatório Global Wealth Report 2021 - elaborado anualmente pelo banco Credit Suisse - o mundo terminou 2020 somando 10% a mais de pessoas com riqueza superior a US$ 1 milhão, comparado ao ano de 2019 [4]. O crescimento econômico dessa pequena parcela da população acontece justamente devido aos estímulos contra a Covid [5], mesmo em meio ao crescimento da pobreza no mundo pela pandemia.

    E no Brasil a lógica segue próxima. Segundo estudo da ONG Oxfam, entre 18 de março e 12 de julho de 2020, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1 bilhões [6]. Além do aumento patrimonial dos mais ricos, é possível atestar incentivos das privatizações no pós pandemia do país, seguidos por discursos parlamentares e de outros agentes políticos, como o presidente da República e o ministro da Economia, com o uso da retórica da recuperação da crise causada pela pandemia, para impulsionar o apoio a privatizações e a leilões de estatais (ainda que haja resistência ao apoio dessas políticas) [7].

    Além da frente de enfraquecimento de partes do Estado, durante a pandemia vemos os esforços empreendidos nos ajustes fiscais e nas restrições de direitos, como os congelamentos salariais e da progressão de carreiras públicas em curso. Sobre o primeiro, a Lei 173/2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19, mostra a fragilidade dos direitos dos servidores públicos ao exigir, como contrapartida do acordo de auxílio fiscal e financeiro do Governo Federal aos estados e municípios, a impossibilidade de aumento, reajuste ou adequação de remuneração dos servidores federais, estaduais e municipais, bem como quinquênios e outros direitos, até 31 de dezembro de 2021 [8].

    Essas manobras vão ao encontro do que Klein afirma sobre a chamada doutrina de choque, que se apresenta como uma oportunidade defendida por economistas de impor ideias mais radicais do livre mercado em contextos catastróficos, como uma grande crise econômica, uma guerra, um ataque terrorista ou um desastre socioambiental (2008).

    Outras questões interpostas ao neoliberalismo, ao capitalismo de desastre e às lógicas do lucro caminham ao encontro das experiências brasileiras ligadas às tentativas de desvios e superfaturamentos de insumos hospitalares em estados brasileiros e de vacinas envolvendo o governo federal e representantes de vendas das suas fabricantes (mas este assunto fica para uma próxima reflexão). 

    O capitalismo de desastre opera na atual crise sanitária intensificando ainda mais as consequências sociais e econômicas ocasionadas com a pandemia: aumento da desigualdade, da fome e do desemprego (não podemos esquecer dos conflitos raciais, da violência doméstica, da truculência das forças de segurança pública do estado em periferias e comunidades). Aqui no Brasil os efeitos são ainda mais perversos para os mais pobres, quando atestamos a falta de uma gestão da crise eficiente e uma política pró contaminação e mortes dos trabalhadores. A conclusão a que se pode chegar é a apresentada por Leonardo Boff: "Aqui se mostra a plena consciência de que uma economia só de mercado, que tudo mercantiliza, e sua expressão política o neoliberalismo são maléficas para a sociedade e para o futuro da vida" (2020) [9].

    Apesar da falta de perspectiva que a extensão e a duração da pandemia possam propagar, há movimentos que apontam para direções opostas às lógicas impostas. Países começaram a rever questões sociais, por exemplo, em relação aos auxílios emergenciais, à suspensão de despejos, aos auxílios a desempregados e ao estímulo a serviços públicos de saúde, características de uma Social Democracia acionadas para (paradoxalmente) manter a continuidade do neoliberalismo. Como afirma Klein, choques e crises nem sempre seguem a doutrina do choque e esta história ainda não terminou (2020) [10].

[1] Texto disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/04/covid-19-e-as-ciencias-sociais-dos.html (acesso em 11 jul. 2021).

[2] “CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”? Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

[3] “Bilionários da Índia ficam mais ricos, enquanto Covid-19 leva vários à pobreza”. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/07/09/bilionarios-da-india-ficam-mais-ricos-enquanto-covid-19-leva-varios-a-pobreza (acesso em 11 jul. 2021).

[4] “Mundo ganha milionários na pandemia; no Brasil, número de ricos cai e desigualdade aumenta”. Disponível em https://www.infomoney.com.br/economia/mundo-ganha-milionarios-na-pandemia-no-brasil-numero-de-ricos-cai-e-desigualdade-aumenta/ (acesso em 12 jul. 2021).

[5] Matéria “Estímulos contra a crise da covid deixaram os bilionários ainda mais ricos”. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/estimulos-contra-a-crise-da-covid-deixaram-os-bilionarios-ainda-mais-ricos.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

[6] “Patrimônio dos super-ricos brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a pandemia, diz Oxfam”. Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

[7] “Projeto proíbe privatizações até 12 meses após o fim da pandemia”. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/informe-fenae/projeto-proibe-privatizacoes-ate-12-meses-apos-o-fim-da-pandemia/ (acesso em 12 jul. 2021).

[8] Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm (acesso em 12 jul. 2021).

[9] “O coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo do desastre”. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597264-o-coronavirus-o-perfeito-desastre-para-o-capitalismo-do-desastre (acesso em 12 jul. 2021).

[10] “CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”? Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

Bibliografia:

BOFF, Leonardo. O coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo do desastre. Revista IHU Unisinos, 20 mar, 2020. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597264-o-coronavirus-o-perfeito-desastre-para-o-capitalismo-do-desastre (acesso em 12 jul. 2021).

BRASIL. Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm (acesso em 12 jul. 2021).

CORREA, Maria Suellen Timoteo. Covid-19 e as Ciências (Sociais) dos Desastres. Blog Diálogos do Fim do Mundo, 7 abr 2021. Disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/04/covid-19-e-as-ciencias-sociais-dos.html (acesso em 11 jul. 2021).

Das, Veena. Critical Events. An Anthropological Perspective on Contemporary Índia. Delhi: Oxford University Press, 1995, 230 p.

KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

___________. Coronavirus: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres? The Intercept, 21 mar 2020. Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

MADHOK, Diksha. Bilionários da Índia ficam mais ricos, enquanto Covid-19 leva vários à pobreza. CNN Brasil, 09 jul. 2021. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/07/09/bilionarios-da-india-ficam-mais-ricos-enquanto-covid-19-leva-varios-a-pobreza (acesso em 11 jul. 2021).

MENDES, José Manuel. A dignidade das pertenças e os limites do neoliberalismo: catástrofes, capitalismo, Estado e vítimas. Sociologias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 18, núm. 43, 2016.

MONTANO, S.; SAVITT, A. Not All Disasters Are Disasters: Pandemic Categorization and Its Consequences. Essay “Covid-19 and the Social Sciences”. Items - Insights from the Social Sciences. September 10, 2020. Disponível em https://items.ssrc.org/covid-19-and-the-social-sciences/disaster-studies/not-all-disasters-are-disasters-pandemic-categorization-and-its-consequences/ (acesso em 04/04/2021).

PATRIMÔNIO dos super-ricos brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a pandemia, diz Oxfam. G1, 27 jul. 2020. Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

PROJETO proíbe privatizações até 12 meses após o fim da pandemia. Congresso em Foco, 31 jul. 2020. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/informe-fenae/projeto-proibe-privatizacoes-ate-12-meses-apos-o-fim-da-pandemia/ (acesso em 12 jul. 2021).

SEGALA, Mariana. Mundo ganha milionários na pandemia; no Brasil, número de ricos cai e desigualdade aumenta. Infomoney, 22 jun 2021. Disponível em https://www.infomoney.com.br/economia/mundo-ganha-milionarios-na-pandemia-no-brasil-numero-de-ricos-cai-e-desigualdade-aumenta/ (acesso em 12 jul. 2021).

SHARMA, Ruchir. Estímulos contra a crise da covid deixaram os bilionários ainda mais ricos. Globo, 15 mai 2021. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/estimulos-contra-a-crise-da-covid-deixaram-os-bilionarios-ainda-mais-ricos.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).


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