*
Foto sem autoria retirada da matéria “Capitalismo, coronavírus e mudança
climática”, disponível em https://esquerdaonline.com.br/2020/07/12/capitalismo-coronavirus-e-mudanca-climatica/ (acesso em 12 jul. 2021).
Em
ensaio anterior pude apresentar a discussão acerca da crescente necessidade de
reformulação e adequação dos estudos de eventos de riscos (desastres e
catástrofes) nas Ciências Sociais a partir da pandemia pelo novo Corona Vírus [1],
sendo esta um evento novo para essa área de pesquisa em termos de abrangência,
de número de mortes e afetados, além da extensa diversidade de consequências econômicas,
sociais, políticas e culturais na atualidade.
Ao
considerar a pandemia da Covid-19 como um evento de desastre – ou de catástrofe
(MONTANO; SAVITT, 2020) – é possível tecer algumas relações de semelhança com estes
“eventos críticos” (DAS, 1995). A que se procura tratar nesta breve reflexão é
a relação dos desastres com oportunidades de crescimento patrimonial para uma
pequena parcela da população, além de facilitações ao avanço neoliberal. Esta
relação pode estar ligada ao chamado capitalismo de desastre [KLEIN, 2008).
Segundo
o pesquisador português José Manuel Mendes, os eventos de catástrofes “podem
ser reveladores da lógica do capitalismo e dos limites do neoliberalismo”
(2016, p.4). Ainda que Mendes defenda o estudo do capitalismo enquanto um
sistema econômico sem coerência, ou essência inerente - apesar de reconhecê-lo
como força de acumulação e de distribuição do capital (ARRIGUI, 2010, apud
MENDES, 2016, p.4) – para o sociólogo é possível apreender uma lógica
subjacente aos desastres, ao analisar as “configurações que o capitalismo
assume nos contextos específicos onde opera, e a sua relação complexa com as
formas de Estado, as culturas e as sociedades que encontra” (MENDES, 2016, p.
4-5). Tomando essa perspectiva, a lógica da acumulação foi (e está sendo) um
dos fatores descortinados nesta pandemia. Alguns exemplos apresentam como este
tipo de crise sanitária é apropriado pelo capitalismo de desastre.
Uma
amostra que ilustra a questão é apresentada por Naomi Klein, ao problematizar
como o neoliberalismo e o capitalismo esticam seus limites e suas operações em
contextos de choque e de crise [2]. A jornalista canadense lembra das tentativas
de resgates corporativos sem restrições e regulação, tomando como justificativa
a crise da Covid-19, que foram exploradas pelo governo Trump e por outros ao
redor do mundo (2020).
Outro
exemplo vem da Índia que, apesar de ter sido um dos países que mais sofreu com
mortes e a crise econômica pelo novo Corona Vírus, viu as fortunas dos indianos
mais ricos dispararem dezenas de bilhões de dólares, segundo levantamento [3].
Recentemente
não só a fortuna de uns aumentou como outros passaram a fazer parte do grupo
dos mais ricos. Segundo o relatório Global Wealth Report 2021 - elaborado
anualmente pelo banco Credit Suisse - o mundo terminou 2020 somando 10% a mais
de pessoas com riqueza superior a US$ 1 milhão, comparado ao ano de 2019 [4]. O
crescimento econômico dessa pequena parcela da população acontece justamente
devido aos estímulos contra a Covid [5], mesmo em meio ao crescimento da pobreza
no mundo pela pandemia.
E
no Brasil a lógica segue próxima. Segundo estudo da ONG Oxfam, entre 18 de
março e 12 de julho de 2020, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou
de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1 bilhões [6]. Além do aumento patrimonial
dos mais ricos, é possível atestar incentivos das privatizações no pós pandemia
do país, seguidos por discursos parlamentares e de outros agentes políticos,
como o presidente da República e o ministro da Economia, com o uso da retórica
da recuperação da crise causada pela pandemia, para impulsionar o apoio a
privatizações e a leilões de estatais (ainda que haja resistência ao apoio
dessas políticas) [7].
Além
da frente de enfraquecimento de partes do Estado, durante a pandemia vemos os
esforços empreendidos nos ajustes fiscais e nas restrições de direitos, como os
congelamentos salariais e da progressão de carreiras públicas em curso. Sobre o
primeiro, a Lei 173/2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento
ao Covid-19, mostra a fragilidade dos direitos dos servidores públicos ao exigir,
como contrapartida do acordo de auxílio fiscal e financeiro do Governo Federal aos
estados e municípios, a impossibilidade de aumento, reajuste ou adequação de
remuneração dos servidores federais, estaduais e municipais, bem como
quinquênios e outros direitos, até 31 de dezembro de 2021 [8].
Essas
manobras vão ao encontro do que Klein afirma sobre a chamada doutrina de
choque, que se apresenta como uma oportunidade defendida por economistas de
impor ideias mais radicais do livre mercado em contextos catastróficos, como
uma grande crise econômica, uma guerra, um ataque terrorista ou um desastre
socioambiental (2008).
Outras
questões interpostas ao neoliberalismo, ao capitalismo de desastre e às lógicas
do lucro caminham ao encontro das experiências brasileiras ligadas às
tentativas de desvios e superfaturamentos de insumos hospitalares em estados
brasileiros e de vacinas envolvendo o governo federal e representantes de
vendas das suas fabricantes (mas este assunto fica para uma próxima reflexão).
O
capitalismo de desastre opera na atual crise sanitária intensificando ainda
mais as consequências sociais e econômicas ocasionadas com a pandemia: aumento
da desigualdade, da fome e do desemprego (não podemos esquecer dos conflitos
raciais, da violência doméstica, da truculência das forças de segurança pública
do estado em periferias e comunidades). Aqui no Brasil os efeitos são ainda
mais perversos para os mais pobres, quando atestamos a falta de uma gestão da
crise eficiente e uma política pró contaminação e mortes dos trabalhadores. A
conclusão a que se pode chegar é a apresentada por Leonardo Boff: "Aqui se
mostra a plena consciência de que uma economia só de mercado, que tudo
mercantiliza, e sua expressão política o neoliberalismo são maléficas para a
sociedade e para o futuro da vida" (2020) [9].
Apesar
da falta de perspectiva que a extensão e a duração da pandemia possam propagar,
há movimentos que apontam para direções opostas às lógicas impostas. Países
começaram a rever questões sociais, por exemplo, em relação aos auxílios
emergenciais, à suspensão de despejos, aos auxílios a desempregados e ao
estímulo a serviços públicos de saúde, características de uma Social Democracia
acionadas para (paradoxalmente) manter a continuidade do neoliberalismo. Como
afirma Klein, choques e crises nem sempre seguem a doutrina do choque e esta
história ainda não terminou (2020) [10].
[1]
Texto disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/04/covid-19-e-as-ciencias-sociais-dos.html (acesso em 11 jul. 2021).
[2]
“CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”? Disponível
em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).
[3]
“Bilionários da Índia ficam mais ricos, enquanto
Covid-19 leva vários à pobreza”. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/07/09/bilionarios-da-india-ficam-mais-ricos-enquanto-covid-19-leva-varios-a-pobreza
(acesso em 11 jul. 2021).
[4]
“Mundo ganha milionários na pandemia; no Brasil, número de ricos cai e
desigualdade aumenta”. Disponível em https://www.infomoney.com.br/economia/mundo-ganha-milionarios-na-pandemia-no-brasil-numero-de-ricos-cai-e-desigualdade-aumenta/ (acesso em 12 jul. 2021).
[5]
Matéria “Estímulos contra a crise da covid deixaram os bilionários ainda mais
ricos”. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/estimulos-contra-a-crise-da-covid-deixaram-os-bilionarios-ainda-mais-ricos.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).
[6]
“Patrimônio dos super-ricos brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a
pandemia, diz Oxfam”. Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).
[7]
“Projeto proíbe privatizações até 12 meses após o fim da pandemia”. Disponível
em https://congressoemfoco.uol.com.br/informe-fenae/projeto-proibe-privatizacoes-ate-12-meses-apos-o-fim-da-pandemia/ (acesso em 12 jul. 2021).
[8]
Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm (acesso em 12 jul. 2021).
[9]
“O coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo do desastre”. Disponível
em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597264-o-coronavirus-o-perfeito-desastre-para-o-capitalismo-do-desastre (acesso em 12 jul. 2021).
[10]
“CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”?
Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).
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(acesso em 12 jul. 2021).
BRASIL.
Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm
(acesso em 12 jul. 2021).
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(acesso em 12 jul. 2021).
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