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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Ditadura militar no Brasil e a cumplicidade empresarial

 

                                                 

Greve de trabalhadores na Volkswagen durante a Ditadura

 

Escrito por Flávia Mendes

 

No livro “O que resta da ditadura” organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle, embora tenha em seu título uma afirmação, nos indaga a pensar: afinal, o que resta da Ditadura? O próprio livro nos responde: resta tudo, menos a Ditadura (SAFATLE; TELES, 2010). Em abril do próximo ano o golpe militar-civil-empresarial fará 60 anos e a herança deixada daqueles 21 anos em que os militares estiveram no poder não deve ser deixada de lado e esquecida, pelo contrário, deve ser pesquisada e denunciada, para que seja feita justiça de reparação e para que não sendo esquecida, a história não se repita. Comprometidos com os direitos humanos, um grupo formado por mais de 55 pesquisadores de diversas Universidades do país pesquisaram dez empresas durante um ano e meio no projeto “Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura” coordenado pelos professores da Unifesp, Edson Teles, Carla Osmo e Marília Calazans. 

   A ditadura não foi apenas militar. Sabemos que teve apoio civil e empresarial. Afirmar que a ditadura também foi empresarial significa que empresas e empresários foram cúmplices do regime autoritário brasileiro imposto entre os anos de 1964 a 1985. No projeto citado acima, foram pesquisadas a Petrobras, Companhia Docas de Santos, Itaipu, Companhia Siderúrgica Nacional – CSN – Aracruz Celulose, Folha de São Paulo, Fiat, Paranapanema, Josapar e Cobrasma Cada empresa investigada tinha um professor coordenador além de uma equipe de pesquisadores.

O financiamento das pesquisas veio do processo vitorioso que levou a um acordo extrajudicial envolvendo a Volkswagen, que firmou em 2020 um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC – com pagamento de R$ 36 milhões destinados à reparação das vítimas da Ditadura e outra parte destinada a projetos de memória e reparação. Desse total, R$ 2 milhões foram direcionados para que o projeto das dez empresas citadas acima fosse desenvolvido, numa parceria entre o Ministério Público Federal – MPF –   Ministério Público do Estado de São Paulo –  MPSP –  e o Centro de Antropologia Forense – Caaf –  da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.  

Também estão sendo investigadas as empresas Belgo Mineira, Mannesmann e Embraer, a partir dos recursos de outro TAC firmado entre o MPF e a Companhia Energética de São Paulo em virtude da companhia não ter cumprido as condições exigidas para implementação do Parque Estadual Rio do Peixe. Essas últimas pesquisas tem previsão de terem seus relatórios entregues em Dezembro de 2023.

No caso da Volkswagen, a partir das denúncias dos trabalhadores da empresa que se organizaram numa associação de vítimas, foram apuradas denúncias de violações com comprovações e testemunhos sobre a violência que ocorria no período da ditadura dentro das fábricas da empresa, assim como a participação da Volks na polícia política da ditadura, no Departamento de Ordem Política e Social – Dops – e perseguição a trabalhadores.

As dez empresas investigadas tiveram seus relatórios entregues há poucos meses, além da publicização de aspectos relevantes de cada pesquisa feita no I Seminário Ditadura, Empresas e Violações de Direitos, realizado na Unifesp entre os dias 05 e 07 de Junho deste ano,  e também no documento intitulado Informe Público disponibilizado no site do Caaf (https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/).

Sobre as empresas investigadas por violações aos direitos humanos que já tiveram seus respectivos relatórios entregues, há indícios de prisão, tortura e morte de trabalhadores (inclusive no interior das empresas), formação de listas sujas de demitidos, expulsão de indígenas, quilombolas e colonos de suas terras para dar lugar a empreendimento empresarial.

No Brasil, a legislação impede que empresas sejam processadas criminalmente, então o caminho para buscar reparação é a área cível. As exceções são os crimes ambientais, contra a ordem econômica e à economia popular, por isso, tortura, mortes e remoção forçada de indígenas e quilombolas não se encaixam. Outra abordagem criminal que dificulta a reparação é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de 2010 que julgou a Lei de Anistia Constitucional.

Os relatórios foram entregues ao Ministério Público para que apure se há indícios de violação à lei por cada uma das empresas e, se for o caso, propor ações judiciais de responsabilização, mas também outros atores podem a partir dos relatórios abrir uma ação contra as empresas. Importante ressaltar, que as pesquisas não esgotam o assunto e nem chegaram a conclusões finais, pelo contrário, visam desdobramentos e o estímulo a novas pesquisas no campo da justiça de transição sobre as relações empresariais com o período ditatorial.

Do ponto de vista acadêmico as pesquisas foram desenvolvidas com muita inovação no que diz respeito às metodologias utilizadas. Devido a dificuldade de acesso aos dados, cada grupo de pesquisadores criou estratégias e caminhos muitas vezes inovadores para ter acesso a informações, testemunhas, documentos e reportagens da época. Um dos objetivos do trabalho era criar uma metodologia, já que as apurações eram feitas não sobre um indivíduo, nem o Estado, em vários casos era um ente privado, e a dificuldade de acesso aos arquivos era grande, assim como a dificuldade das testemunhas darem depoimentos. Por isso, foi importante a criação de estratégias metodológicas, inclusive, porque existem outras empresas que ainda não foram investigadas e também tiveram relações com a ditadura, assim como o fato de que existem violações que permanecem até os dias atuais e não foram encerradas com a redemocratização.

Em várias investigações as empresas privadas argumentaram não terem mais os arquivos, e no caso das empresas estatais os documentos foram enviados para arquivos públicos, onde o acesso também não era fácil porque ou não estão organizados ou se perderam. No caso das empresas estatais que foram privatizadas o argumento é que não são mais a mesma empresa, não tem mais domínio e nem obrigação sobre o que fizeram (TELES, 2023).

Os resultados preliminares receberam a tipificação de violações considerando os diferentes grupos atingidos, como trabalhadores da empresa;  povos indígenas, quilombolas ou camponeses (UNIFESP, 2023, p. 10). Quase todas as pesquisas tiveram enorme dificuldade de acesso aos arquivos da empresa investigada e em todos os casos os relatórios entregues não significam o encerramento da investigação, uma vez que há muito ainda para ser apurado (OLIVEIRA, 2023).

De maneira geral é possível afirmar que o principal motivo para apoio das empresas à ditadura era econômico, mais que político e ideológico. É importante pensar, por exemplo, que diversos sindicatos eram fortes até 1964, e essas organizações causavam problemas para as empresas expandirem, terem mais lucros e benefícios econômicos. A ditadura colaborou para a destruição da organização dos trabalhadores (TELES, 2023). 


Não basta a gente ter acesso à memória e à verdade e não fazer disso um ato de reparação. O acesso a essas histórias é fundamental pra gente entender o que nós somos enquanto país, enquanto sociedade, o que nós somos enquanto Estado de direito, na medida em que, na transição da ditadura para a democracia, isso não foi abordado e essas relações permaneceram. Agora, insisto, só vai ter efeito se a gente juntar o direito à memória e à verdade com o direito à justiça. É preciso fazer dessas informações um ato de justiça (TELES, 2023).

 

              O que se espera é que outras empresas sejam investigadas e que o país construa memória, verdade e justiça sobre esse violento período da nossa história. Nesse sentido, as pesquisas tiveram como motivação o compromisso com os direitos humanos, e um olhar de esperança que enxerga a justiça no horizonte. 

 

 

Referências bibliográficas

 

OLIVEIRA, Marcelo. As 12 empresas investigadas por seus elos com a ditadura. Nexo Jornal, Julho de 2023. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2023/07/06/As-12-empresas-investigadas-por-seus-elos-com-a-ditadura Acesso em 30 Set. 2023.

TELES, Edson. Empresas cúmplices da ditadura: É preciso fazer das informações um ato de justiça (entrevista cedida a Thiago Domenici). Agência Pública. Disponível em: https://apublica.org/2023/05/empresas-cumplices-da-ditadura-e-preciso-fazer-das-informacoes-um-ato-de-justica/ Acesso em 01 Out. 2023.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

Universidade Federal de são Paulo , 2023. Centro de Antropologia Forense, projeto Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf Acesso em 27 Set. 2023.

Universidade Federal de São Paulo, 2023. Centro de Antropologia Forense. Disponível em https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/ Acesso 28 Set. 2023.