Arquivo do blog

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Democracia brasileira em risco?


Vitor Vasquez (UFPI)


Em livro publicado em 2018 – “Como as democracias morrem” –, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt nos alertam sobre a forma mais recente de se arruinar os regimes democráticos: via líderes eleitos. Ou seja, diferentemente dos golpes que ocorreram durante o período de guerra fria na América Latina, principalmente anos nos 1960 e 70, quando em poucas horas o regime democrático era tirado de cena por intervenção militar, hoje a degradação da democracia tem ocorrido a partir de um processo lento, colocado em marcha por um governo legitimamente eleito.

Como, atualmente, o retrocesso democrático inicia-se nas urnas, a transição assume um caráter enganoso, pois há um ar de legitimidade na ação. Agora não há tanques e armas nas ruas, as constituições não são suspensas, tampouco é retirado o direito das pessoas de votar. Isto mantém uma aparência democrática ao regime, ao passo que suas instituições vão sendo paulatinamente destruídas. Os adversários políticos passam a ser tratados como inimigos, a imprensa – liberdade de expressão e direito a fontes alternativas de informação – sofre intimidações, os resultados eleitorais são colocados em suspeição, em suma, as salvaguardas institucionais são constantemente enfraquecidas.

Segundo Levitsky e Ziblatt, durante o processo de corrosão democrática, as instituições políticas do país afetado passam por dois testes. O primeiro ocorre em momento pré-eleitoral, quando forças político-partidárias tradicionais encampam a campanha de algum demagogo extremista. Portanto, o primeiro sinal de perigo a um regime democrático manifesta-se quando elites políticas e formadores de opinião pública, por medo, oportunismo ou erro estratégico, encampam ou se alinham à candidatura de um político abertamente autocrata.

Caso a democracia fracasse neste teste, a consequência é a eleição deste político. Uma vez que ele assume o governo, inicia-se o segundo teste, que consiste em resistir às tentativas de subversão às instituições democráticas que a liderança autoritária buscará implementar. As investidas iniciais ocorrem principalmente contra normas institucionais não escritas: tolerância mútua entre adversários políticos, aceitação de rivais políticos como atores democráticos legítimos, não enviesamento das instituições para benefício próprio e/ ou do grupo que o presidente representa e reconhecimento sobre a validade dos resultados eleitorais.

No primeiro teste a democracia brasileira não foi aprovada. Em 2018, elegemos Jair Bolsonaro para o cargo eleitoral máximo do Brasil, qual seja, presidente da República. Bolsonaro é um típico político extremista, que já possuía um histórico de declarações antidemocráticas antes mesmo de ser eleito presidente. Neste rol de ataques à democracia, é possível elencar declarações louvando o regime autoritário vigente no país entre 1964 e 1985 e o AI-5, seu período mais repressivo; apologia à tortura; ode a torturadores; defesa das mortes de responsabilidade do regime autoritário contra oposicionistas políticos; caso de misoginia; e outras atitudes afins. A lista é extensa e, por isso, seu perfil autoritário definitivamente não deveria surpreender.


Fonte: familiabolsonaro.blogspot.com.br/ 

O que surpreende, entretanto, é o apoio maciço dado por elites políticas e órgãos da imprensa a Bolsonaro na campanha presidencial de 2018, principalmente no segundo turno. E, mesmo em alguns casos nos quais o candidato não teve apoio declarado, houve uma normalização de sua figura. Ele foi eleito por um partido até então nanico no sistema político brasileiro, o Partido Social Liberal (PSL). E, apesar de siglas como DEM, MDB e PSDB se declararem neutras no segundo turno disputado entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), importantes quadros destes partidos se manifestaram pela opção bolsonarista. Foi o caso de ACM Neto, então presidente dos democratas; do MDB gaúcho, que buscava a reeleição do então governador José Ivo Sartori; e de candidatos a governos estaduais tucanos, como o próprio Eduardo Leite, adversário de Sartori no RS, e de João Dória em SP, na famosa chapa Boslodoria. Em outras palavras, mesmo Bolsonaro sendo eleito por uma sigla até então inexpressiva, a posição neutra de importantes partidos brasileiros frente à sua candidatura – mesmo sendo de amplo conhecimento seu perfil extremista – e o posicionamento de algumas de suas principais elites em seu favor no segundo turno de 2018 ajudaram a pavimentar sua vitória eleitoral.

Eis que chega o segundo teste da democracia brasileira: ao assumir o poder, Bolsonaro seria capaz de subverter as instituições democráticas? A lista de ataques é considerável. Há indícios de tentativa de aparelhar tribunais e outras agências de Estado. A escolha de Augusto Aras para Procurador Geral da República (PGR), por exemplo, ignorou a lista tríplice indicada pela Associação Nacional de Procuradores da República, que vinha sendo respeitada desde 2003. Não é demais lembrar que uma das funções do PGR consiste justamente em investigar e denunciar o presidente da República. Procedimento análogo foi adotado na escolha de reitores de várias universidades e institutos federais, não observando a decisão da comunidade acadêmica.

O presidente também apoiou e participou de manifestações que incluíam ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), já declarou que, às vezes, seguir a Constituição “embrulha o estômago”, atacou a imprensa ou seus integrantes em várias ocasiões e, seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, chegou a afirmar que, para fechar o STF, bastava um soldado e um cabo. Isso sem contar que, durante a pandemia de Covid-19, Bolsonaro desprezou a recomendação do uso de máscara contra a proliferação do vírus, promoveu aglomeração em momentos nos quais o isolamento era amplamente indicado, aconselhou vivamente o uso de medicamento comprovadamente ineficiente contra a doença e desdenhou da eficácia das vacinas. Por fim, mas não menos importante, Jair Bolsonaro e seus aliados regularmente colocam em xeque a idoneidade das urnas eletrônicas, questionando, em última análise, uma das principais instituições democráticas, isto é, o processo eleitoral.

O segundo teste segue em andamento, porém, o sinal de alerta precisa estar aceso, pois nossa democracia, assim como acontecera no primeiro teste, corre risco de reprovação. Os ataques às instituições democráticas são abundantes e constantes, e tudo vem sendo feito com máscaras de legalidade e legitimidade. Segundo índices de democracia como o V-Dem e o elaborado pela The Economist, o Brasil se tornou mais autoritário na última década. Em 2021, Bolsonaro foi classificado como um líder populista não liberal pelo ranking da Economist. No mesmo ano, o Brasil teve nova queda no índice, sendo que sua pior pontuação foi em relação ao funcionamento do governo. A má avaliação do Executivo contrasta com o tópico processo eleitoral e pluralismo, quesito de melhor desempenho da democracia brasileira. Portanto, mais do que projetos de políticas públicas, o que pode estar um jogo nas eleições que se avizinham são projetos de regimes políticos. É fundamental estar atento às ofensivas que o regime democrático brasileiro tem enfrentado, em vistas de reverter este quadro. Afinal, por ora, o que temos de mais concreto é que Bolsonaro flerta perigosamente – para a democracia brasileira – com um projeto autoritário de regime.


Referência bibliográfica
Levitsky, Steven e Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem? Rio de Janeiro: Zahar, 2018.