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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Uber ou Cabify?: as novas transformações da exploração capitalista dos trabalhadores de mobilidade urbana

Escrito por Rodrigo Piquet Saboia de Mello (Museu do Índio/FUNAI)

 

Uma das grandes modificações que o capitalismo efetuou nas últimas décadas foi a das relações de trabalho por meio das tecnologias de informação e comunicação, também conhecidas como TICs. Estas transformações aprofundaram a acumulação capitalista e a concentração de poder econômico nas mãos da burguesia internacional detentora dos conhecimentos tecnológicos necessários para levar a cabo as novas empreitadas do capital.

Um exemplo de relevância deste novo modelo de exploração da classe proletária ocorre com o emprego maciço dos aplicativos de mobilidade urbana, como Uber e Cabify. Com sede em países capitalistas centrais, no caso, Estados Unidos e Espanha, respectivamente, os trabalhadores de países periféricos como o Brasil estão tendo que se submeter a jornadas extenuantes de trabalho em que boa parte da mais-valia obtida é canalizada para empresas transnacionais que negociam suas ações em Wall Street.

Como bem sabemos, o Brasil vive uma crise econômica sem precedentes em nossa história. Somada a conjuntura política pouco favorável aos mais pobres, o Governo Bolsonaro e seus asseclas (Guedes e companhia) estão fazendo o que prometeram em campanha: acabar com todas as garantias trabalhistas e previdenciárias dos trabalhadores. Do pacote de crueldades contra os mais necessitados, a primeira da pauta foi a reforma da previdência que praticamente eliminou a possibilidade da classe trabalhadora de se aposentar.

A situação dos trabalhadores de mobilidade urbana ainda se manifesta de forma mais preocupante: a maioria não contribui para a previdência social, ficando assim não cobertos por eventuais problemas de saúde, acidentes ou pela possibilidade de uma aposentadoria no futuro. Apenas a título de exemplo, só a cidade do Rio de Janeiro dispõe de mais de 150 mil trabalhadores cadastrados no Uber. Estes trabalhadores vivem o reflexo da revolução permanente que o capital impinge ao proletariado, os transformando em meros instrumentos da acumulação capitalista para acionistas dos países centrais.

As organizações políticas de vanguarda, como movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda devem desenvolver um forte movimento de consciência de classe junto a estes trabalhadores precarizados na ordem capitalista atual. A sua organização é a capacidade que a esquerda terá em produzir novos alicerces para conquistas sociais, como uma maior regularização do trabalhador de mobilidade urbana e de entendimento atual do momento político do país.

Do ponto de vista pragmático, uma ação propositiva para uma expressiva melhoria da renda destes trabalhadores seria a eliminação dos aplicativos à disposição e fomentado pelos capitalistas estrangeiros. Assim como a valorosa classe dos taxistas que conseguiram a criação de um aplicativo da Prefeitura do Rio de Janeiro que não remetesse os lucros para o exterior, os demais trabalhadores de mobilidade urbana deveriam lutar junto aos movimentos de esquerda pelo desenvolvimento de ferramentas de trabalho de origem nacional, diminuindo acentuadamente a exploração capitalista internacional, assim como ajudando na arrecadação que os municípios viessem a ter.

Para nós, trabalhadores com formação política e consciência de classe, sabemos o quanto tem sido difícil nos dias atuais a mobilização do proletariado e o desenvolvimento de pautas reivindicatórias contra a precarização das relações de trabalho e da exploração pelo capital. Assim, os movimentos de conscientização e organização dos trabalhadores devem ocorrer nas mais diversas esferas, mas, principalmente, por meio de um sindicato atuante, de base e luta em que motoristas sejam os protagonistas de um novo modelo organizacional do trabalho.

Fruto do desemprego que assola milhões de brasileiros no país, muitos trabalhadores encontraram como a única fonte de sustento a submissão às empresas capitalistas internacionais que chegam a ficar com até 40% do lucro obtido por mobilidade efetuada. Infelizmente, até o presente momento, o parlamento brasileiro não teve a disposição (ou o interesse) necessário para que nossa classe proletária não se torne um estrato de exploração e marcante precarização dessa massa de indivíduos que se submetem a jornadas de trabalho extenuantes, sem qualquer garantia previdenciária ou trabalhista, para tentar sustentar suas famílias.

As transformações resultantes da revolução permanente que o capitalista impõe a classe trabalhadora são inexoráveis frente ao desenvolvimento e novas formas de investimento do capital. Conforme dizia o velho Marx, o capitalismo tem como característica uma constante revolução dos meios de produção assim como uma permanente fabricação de crises cíclicas, como a que presenciamos em solo brasileiro nos dias atuais. Fora uma transformação socialista que venha libertar os grilhões dos milhões de trabalhadores ao subjugo do capital, a classe trabalhadora sucumbirá sempre a essas transformações, caso não haja a consciência da importância que a luta política representa para os maiores interessados que são os próprios operários do transporte, por exemplo.

Creio que os movimentos vanguardistas de esquerda a favor dos operários do transporte tenham a sua frente uma oportunidade única de organização desses trabalhadores e de desenvolvimento do movimento sindical e partidário. Apesar de todo um momento político retrógrado e de ataques aos direitos da classe trabalhadora, vejo que com uma agitação política propositiva somada a construção de novas lideranças políticas de esquerda de trabalhadores dos aplicativos, o movimento dos trabalhadores ganhará novos ares com mobilizações de maior representatividade, resultando em vitórias para o movimento de esquerda como um todo.

 


terça-feira, 21 de julho de 2020

Ostracismo político e atividade intelectual em Joaquim Nabuco (1889-1899)


Escrito por Ricardo Bruno da S Ferreira (UFF)

 

Os anos que seguiram a queda do Império foram de afastamento da atividade política parlamentar para Joaquim Nabuco (1849-1910) optando por se recolher a uma espécie de exílio voluntário. O alheamento da política não o afastou por completo da posição publicística, se dedicando à produção biográfica de seu pai, à precoce autobiografia, bem como uma série de artigos publicados nos periódicos da época em que defendia a superioridade do regime monárquico sobre a forma republicana de poder. Na concepção de Nabuco, a natureza institucional da república era propensa a turbulências políticas de toda ordem, crença esta adquirida a partir dos estudos acerca da revolução francesa realizados no decorrer da década de 1870. A instabilidade das repúblicas sul-americanas contribuiu decisivamente para endossar esta opinião. A estada nos Estados Unidos como adido da legação brasileira no ano de 1877 em nada o dissuadiu de tal ideia.

A resistência do ex-deputado em aceitar a república como modelo viável para o país se baseava no argumento de que a vanguarda do movimento republicano seria formada pelas forças retrógradas da política nacional. Não acreditava na conformação de uma república calcada na participação popular visto que as forças democráticas teriam sido alijadas do processo político com a queda do Império. Nabuco argumentava que a instauração da república se erigia sob bases conservadoras, como uma resposta dos grupamentos da elite econômica atingidos pela abolição ocorrida um ano antes. Não acreditava que a república era um caminho apropriado para ser seguido pelo Brasil tendo em vista a truculência perpetrada aos opositores do regime, os dispositivos discricionários adotados pelos militares após a dissolução do Império e a supressão das liberdades individuais.

Diante da impossibilidade de vir a ocupar postos de natureza política em um curto espaço de tempo, Joaquim Nabuco veio a se dedicar a redação da biografia política do seu pai, o senador e conselheiro de estado Nabuco de Araújo (1813-1878), cuja imagem havia sido maculada após o seu falecimento[1]. Um Estadista do Império (1898) veio a se tornar uma das principais obras políticas sobre a história do Segundo Reinado devido à riqueza de detalhes técnicos e o método de análise biográfica que levava em conta as transformações políticas ocorridas no decorrer do quadro histórico analisado.

A proclamação da República rendeu à Nabuco um extenso período de ostracismo político. No ano de 1889, Nabuco se distanciou da atividade parlamentar ao qual havia se consagrado perante a opinião pública como líder do movimento abolicionista brasileiro. A assinatura da lei Áurea um ano antes veio a ser a consagração política de Joaquim Nabuco. Porém, a ascensão do novo regime cessou as possibilidades de alçar voos mais altos na política nacional uma vez o rol de oportunidades se fechou para o ex-deputado. Sem saída, Nabuco escolheu a distante ilha de Paquetá a fim de se dedicar a elaboração de Um Estadista do Império, bem como a redação de artigos políticos em que reafirmava a sua crença monarquista e atacava os líderes militares da recém-formada república. Fiel à velha ordem, Nabuco recusou o pedido realizado pelos seus eleitores para se candidatar à Constituinte, dedicando-se ao estudo, à produção intelectual, à constituição da família e ao investimento na bolsa de valores de Buenos Aires. A perda de patrimônio constituída por meio do casamento[2] e o alijamento da atividade política renderam ao arrimo de família uma queda acentuada no seu padrão de vida, sendo impelido a procurar possibilidades de trabalho fora do campo político. Diante da situação desfavorável, Joaquim Nabuco parte junto com a família para a Inglaterra em setembro de 1890. Na véspera da viagem, Nabuco lança uma extensa carta no Diário do Comércio ao qual reafirmava à sua crença na monarquia e na retomada do poder pela família real[3].

A estada de Joaquim Nabuco em solo inglês durou pouco tempo devido às dificuldades financeiras em angariar uma profissão que lhe rendesse condições mínimas para provimento familiar em terra estrangeira. Afastado da atividade parlamentar e sem profissão que lhe rendesse condições mínimas de subsistência, Nabuco procurou auxílio junto aos antigos amigos da época de Império que nada puderam fazer para auxiliá-lo em virtude do seu atrelamento à causa monarquista. Ressalta-se ainda que o “herói abolicionista” de outrora havia se tornado desafeto político dos partifíces do novo regime, rendendo-lhe com isso a impossibilidade da ocupação de postos no serviço público e na administração federal.

O surgimento do Jornal do Brasil no ano de 1891 simbolizou um novo horizonte de reinserção política a todos aqueles que ansiavam pelo retorno à monarquia. Sediado em um sobrado na Rua Gonçalves Dias no centro da cidade do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil foi fundado pelo ex-ministro da Justiça do Império, o empresário Rodolfo Dantas (1855-1901) a nove de abril de 1891. Desde a sua fundação, o periódico se tornou a trincheira política dos opositores ao novo regime. Em sua origem, o Jornal do Brasil objetivava criticar a república recém-instalada e articular politicamente os defensores da monarquia. Pouco tempo após a sua criação, Joaquim Nabuco assume a chefia da redação em que passa a ostentar uma postura oposicionista perante o governo. Em cinco de dezembro do aludido ano, o Jornal do Brasil publica uma edição especial em homenagem ao falecimento de D. Pedro II, quando dias depois (16 de dezembro) a sede do jornal é atacada. Nabuco e Dantas acabam sendo afastados de suas respectivas funções[4]. Em 30 de dezembro, Nabuco parte com a família para a Europa.

De janeiro a setembro de 1892, Joaquim Nabuco reside em Londres onde encontra dificuldades para encontrar emprego. O infortúnio material em que Nabuco estava submetido o arrastou de volta ao país de origem a fim de residir temporariamente na Rua Marquês de Olinda, no bairro de Botafogo[5]. Na nova residência, Nabuco se ateve a redação de Um Estadista do Império e Minha Formação. O estudo do passado recente operava como válvula de escape e rota de refúgio ao homem que havia logrado proeminente papel político durante a monarquia e que vivia sob a luz da nova ordem em um ostracismo voluntário. A esperança no restabelecimento da monarquia animou Nabuco com a deflagração da Revolta da Armada em setembro de 1893. Todavia, o fracasso militar do movimento logo minou qualquer possibilidade de reconduzir a Coroa ao poder, ainda mais após a morte do amigo de longa data Saldanha da Gama em 24 de junho de 1895. Nos noticiários da época, ouviam-se boatos de que os militares se perpetuariam no poder. A posse de Prudente de Morais desfez o temor e conduziu à presidência da República o primeiro civil a assumir a função por meio da eleição direta. Em face dos novos acontecimentos, Nabuco volta a se interessar por política, vindo a aceitar o convite feito por José Carlos Rodrigues para escrever no Jornal do Comércio. Neste periódico, o ex-líder abolicionista redige uma série de artigos no qual procura “inventariar a política sul-americana, mostrando o quanto ela estava imbuída de caudilhismo, e de como se caracterizava por crises sucessivas e por atitudes autoritárias dos governos” [6]. As críticas aos vizinhos sul-americanos constituíam um modo de atacar indiretamente a recém-instalada república no Brasil sem a possibilidade de sofrer os reveses de uma oposição direta.

Durante o tempo em que se manteve distante da política, Joaquim Nabuco se dedicou a redação da biografia de Nabuco de Araújo, bem como sua precoce autobiografia. Ao entrar em contato com os documentos e manuscritos deixados pelo falecido conselheiro de estado, o autor não apenas resgatava a memória de seu pai, como também colocava no centro da discussão a importância do legado político da monarquia para o país. Para Joaquim Nabuco, as possibilidades de atuação política na referida conjuntura eram restritas. O regime político monarquista havia sucumbido em 1889, lhe restando como opção a imortalização do regime através do registro escrito. Nos anos que seguiram a queda do Império, Joaquim Nabuco se absteve de atuar na arena política se mantendo fiel à monarquia e à casa dinástica de Orleans e Bragança.

A tarefa de compor a história do Segundo Reinado possibilitou o reencontro de Nabuco com o mundo em que acreditava de modo a reconduzir para o tempo presente todo um conjunto simbólico implodido com o golpe de 15 de novembro. Por meio de uma argumentação persuasiva, o leitor de Um Estadista do Império era levado a crer na superioridade intrínseca da forma de governo monárquica diferentemente da república sempre associada à turbulência, à desordem e à anarquia ininterrupta. A reverência às instituições imperiais devia-se à solidez e ao ordenamento do seu sistema político. Para o ex-líder abolicionista, o referencial de sistema político a ser seguido pelo Brasil era o modelo inglês. No decorrer do período de composição da obra, Nabuco se manteve ativo na vida pública nacional, em que cabe menção a contenda política que se envolveu com o Almirante Artur Jaceguai. Em carta aberta, o almirante convida o ex-parlamentar a aderir à República com o texto O Dever do Momento. No auge da discussão envolvendo monarquistas e republicanos, Joaquim Nabuco publica o opúsculo no Jornal do Comércio a 15 de setembro de 1895 sob o título O Dever dos Monarquistas. Esta réplica se destinava a enfatizar a solidez da ordem monárquica, único modelo capaz de direcionar o país rumo ao progresso. Além disso, no seu modo de ver, a experiência da república norte-americana estava alicerçada sob bases democráticas e na soberania popular, bem diferente do caso brasileiro, cuja vanguarda do movimento entrincheirava-se nos quartéis[7].

Buscando homenagear publicamente o pai, o falecido senador e conselheiro de estado Nabuco de Araújo, Joaquim Nabuco trata de imortalizar o legado político do império, em especial, a importância que este regime assumiu na conformação de um Estado nacional. O método histórico empregado pelo político pernambucano se amparava em registros biográficos a fim de compor uma narrativa coesa acerca do Brasil Imperial, como o fez com D. Pedro II retratado em suas linhas como um ator político crucial do contexto analisado. Ao se debruçar sobre a trajetória política de Nabuco de Araujo, o eixo de reflexão do autor privilegia o Estado como arena de disputas políticas. No decorrer de sua vida, Joaquim Nabuco concluíra que tão somente a monarquia poderia conduzir o país rumo ao progresso e a liberdade. Via com horror as atrocidades cometidas durante a revolução francesa e a instabilidade ao qual a república esteve sujeita durante todo o período. Denota-se ainda no seu modo singular de interpretar a política um liberalismo que tem como agente dinâmico o papel ocupado pelo Estado e pelas instituições monárquicas, especificamente, o Parlamento, considerado por Nabuco como a arena onde se processam as mudanças, as reformas[8]. Nesse sentido, a via revolucionária não aparecia como campo seguro e estável para o conseguimento de transformações, sendo estas realizadas a partir do Estado, das instituições e das lideranças políticas.

A partir do ano de 1899 decorre uma guinada na vida pública de Joaquim Nabuco com o aceite ao convite realizado pelo presidente Campos Sales (1841-1913) para chefiar a delegação brasileira no caso do litígio com a Grã-Bretanha no que diz respeito à demarcação das fronteiras entre Brasil e Guiana Inglesa. Este momento aponta para o início de uma ruptura em relação ao seu passado monarquista. Se antes, o apoio à república lhe parecia impossível, após a ocupação da função diplomática, Nabuco dizia adotar um posicionamento crítico e condicional ante o regime republicano, e não mais de afastamento. De todo modo, até o ano de sua morte, em 1910, Joaquim Nabuco passou a se dedicar ao exercício da atividade diplomática e a assunção do cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Conforme observado pelo jurista Rubens Ricupero[9] , a atuação de Nabuco como diplomata e embaixador constitui uma mácula incontestável na trajetória de um intelectual notabilizado pela luta a favor da Abolição. Se a atuação de Nabuco na arena diplomática não invalidou a importância histórica do autor no combate à escravidão nem o valor analítico do conjunto de sua obra, de certo que o legado póstumo perdeu um pouco do brilho diante das posições políticas assumidas durante a República, especialmente, por seu servilismo ideológico diante do imperialismo estadunidense[10].



[1] No ano de 1878, o gabinete saquarema encabeçado pelo Duque de Caxias foi destituído por ordem de D. Pedro II, sendo convocada uma nova chefia para presidir o ministério. Tudo levava a crer que o próximo político a comandar a pasta seria Nabuco de Araújo, tido como sucessor direto do falecido Zacarias de Góis e Vasconcelos na linha hierárquica do Partido Liberal. As esperanças de Nabuco de Araújo acabaram sendo frustradas. Em seu lugar, D. Pedro II decidiu convocar uma estrela de segunda grandeza: Cansanção de Sinimbu. Pouco tempo depois, em 20 de março, Nabuco de Araújo, envergonhado pela humilhação pública, morre de desgosto político e de febre biliosa. Joaquim Nabuco, que obtivera o tão esperado cargo de adido de legação em Londres há cerca de um mês, foi convocado pela família para retornar ao Brasil e dar continuidade ao legado político do pai. Eleito deputado, Joaquim Nabuco esteve incumbido de uma tarefa inglória no início de sua carreira: prestar contas à opinião pública da época da entrega do projeto de Código Civil que havia sido encomendado ao patriarca falecido, mas nunca entregue.

[2] O ano de 1889 marcou a vida de Joaquim Nabuco não apenas pela queda do regime monárquico, mas também pelo matrimônio com Evelina Torres Soares Ribeiro, filha de José Antônio Soares Ribeiro, o I Barão de Inhoã. Nabuco recebe do sogro um volumoso dote relativo ao casamento com Evelina, em que aplica todo o patrimônio na compra de ações na bolsa de Buenos Aires. O ato audaz do inexperiente investidor que acreditou que o investimento lhe proporcionaria a multiplicação dos bens em curto prazo de tempo teve como resultado a perda dos dotes oriundos do casamento com Evelina após a bancarrota na bolsa do país vizinho.

[3] Cf. NABUCO, Joaquim. Porque continuo a ser monarchista: Carta ao Diário do Comércio. Londres: Abraham Kingdon Newham, 1890.

[4] De dezembro de 1891 a setembro de 1893, algumas mudanças ocorrem na linha de comando do jornal. Henrique de Villeneuve substitui Nabuco na chefia da redação mantendo-se por lá até abril de 1892 quando o periódico é comprado por novos proprietários ligados à monarquia. Em abril de 1893, grupo ligado a Rui Barbosa compra a empresa de comunicação, em que este passa a assumir a função de redator-chefe. Por ter sido o único jornal do país a divulgar o manifesto do Contra-Almirante Custódio de Melo em suas páginas à época da eclosão da Segunda Revolta da Armada, o presidente Floriano Peixoto determina o fechamento do Jornal do Brasil. Oliveira Lima, José Veríssimo, Rio Branco e Aristides Spínola foram alguns dos notáveis que colaboraram nas páginas do Jornal do Brasil neste período, que se manteve inoperante até 15 de novembro de 1894.

[5] Diante da situação desfavorável vivida na Europa, Joaquim Nabuco não tem alternativa a não ser retornar ao Brasil em que passa a residir de favor na residência do tio de sua esposa Evelina na Rua Marquês de Olinda, no bairro de Botafogo, tendo o ex-ministro do Império João Alfredo Correia de Oliveira (1835-1915) como vizinho.

[6] PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: A Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005, p. 78.

[7] Cf. NABUCO, Joaquim. O Dever dos Monarchistas. Carta ao Almirante Jaceguay. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1895.

[8] PRADO, Maria Emília. Op. cit., p. 78.

[9] RICUPERO, Rubens. Joaquim Nabuco e a nova diplomacia. Disponível em: <https://www.rubensricupero.com/estatico/pdf/joaquim_nabuco_e_a_nova_diplomacia.pdf>. Acesso em: 21 jul 2020.

[10] De 1895 até o fim da vida, Joaquim Nabuco dedica-se ao serviço diplomático quando toma para si a tarefa de difundir o Pan-Americanismo. Em síntese, este sistema de integração americana acabava por admitir a preponderância dos Estados Unidos sobre a América Latina, ao contrário do apregoado por outros líderes como José Martí (1853-1895). A justificativa arrazoada por Nabuco para defender ideologicamente o Pan-Americanismo se assenta na manutenção da soberania dos países latinos, o que só seria possível a partir da ascendência estadunidense sobre o resto do continente. Nabuco irrompe no cenário diplomático regional como um dos defensores deste simulacro ideológico da Doutrina Monroe.

 

Referências Bibliográficas

 

ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BEIGUELMAN, Paula. Joaquim Nabuco. São Paulo: Ática, 1981.

CÂNDIDO, Antônio. Radicalismos. In: Revista Estudos Avançados. São Paulo, v. 4, nº 3, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 3ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de.  O Quinto Século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ-UCAM, 1998.

COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

FAORO, Raymundo. A República Inacabada; organização e prefácio Fábio Konder Comparato. – São Paulo: Globo, 2007.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ªed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

MACIEL, F. O Brasil Moderno de Joaquim Nabuco. Esboços (UFSC), v. 15, p. 203-214, 2006.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994.

NABUCO, Joaquim. Porque continuo a ser monarchista: carta ao Diário do Comércio. Londres: Abraham Kingdom Newham, 1890.

NABUCO,     Joaquim. O Dever dos Monarchistas. Carta ao Almirante Jaceguay. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1895.

NABUCO,     Joaquim. Minha Formação. Editora Brasileira. São Paulo. 1960.

NABUCO,     Joaquim. Um Estadista do Império. 5ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo. 2ª ed. revista e ampliada do original. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: A Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005.

RICUPERO, Rubens. Joaquim Nabuco e a nova diplomacia. Disponível em: <https://www.rubensricupero.com/estatico/pdf/joaquim_nabuco_e_a_nova_diplomacia.pdf>. Acesso em: 21 jul 2020.

 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cidadão, não. Engenheiro civil formado: permanências históricas e autoritarismo no Brasil

                                                                                                                       
     Escrito por Flávia Mendes (UFF) 
    
    No domingo passado, 05 de Julho, o programa de televisão Fantástico da Rede Globo fez uma reportagem mostrando os casos de desrespeito às medidas de segurança contra o Covid-19 nos bares e restaurantes da cidade do Rio de Janeiro. Três dias antes os estabelecimentos foram autorizados a reabrir, vídeos de bares lotados no bairro do Leblon com pessoas sem máscaras e outras debochando da pandemia e do vírus viralizaram nas redes sociais. A reportagem que falava dessa polêmica acabou flagrando outro caso que gerou também muita repercussão.
    Num bar na Barra da Tijuca, um casal foi abordado pelo fiscal Flávio Graça porque não usava máscara. Ao se dirigir ao homem como cidadão, ouviu da mulher: "cidadão, não. Engenheiro civil formado. Melhor do que você!" O vídeo viralizou na internet, gerou inúmeros memes e se tornou um dos assuntos mais comentados no país. O caso revela uma das várias permanências históricas que não conseguimos ainda dar conta e que nos acompanha desde a nossa formação como nação: o autoritarismo.
    A frase revela a rejeição em ser tratado como cidadão, uma compreensão que entende cidadania como algo ruim. Ora, ser cidadão é ser igual a todos, em direitos e deveres, significa que você participa da sociedade, da coletividade, e possui direitos civis, políticos e sociais. A discussão que alguns cientistas sociais fazem aqui no Brasil é sobre a afirmação dos direitos civis que são comumente questionados, enquanto teríamos avançado nos direitos sociais e políticos. Uma espécie de hierarquização da cidadania que vai pensar alguns indivíduos como melhores que outros.
    Quando a mulher do caso narrado acima afirma que seu companheiro não é cidadão, ela quis dizer que ele é melhor que os demais. Cidadãos somos todos no Estado Democrático de direito, mas ser como todos significa ser igual a todos, e igualdade não é uma marca do Brasil. A fala da mulher revela um desprezo a igualdade. E sua fala, faz parte de um discurso que nos acompanha há séculos, está inscrito numa formação discursiva autoritária. Desde a nossa formação, marcada pela escravidão, pela tortura, e pela morte de indígenas e negros, e por inúmeras violências institucionalizadas fazem parte da história do Brasil. Os abusos são inúmeros, assim como os privilégios para as elites agrárias que eram comuns no Brasil colonial, e mantiveram-se posteriormente na república para as mesmas elites que se tornaram urbanas. Durante a escravidão, poucos mandavam e muitos obedeciam. Na passagem para a república, muitas características da forma como os poderes eram organizados mantiveram-se. As políticas de controle social amplamente postas em prática durante a escravidão para manter os escravos e evitar rebeliões, foram repensadas no começo da república. Os pobres no Brasil, uma maioria de negros, ex-escravos, foram fortemente vigiados, controlados e criminalizados no começo do século XX. As experiências autoritárias deste século não ajudaram a transformar o Brasil num país mais democrático e igualitário. A recente democracia implantada após os mais de 20 anos de ditadura civil-militar, não deu conta de diminuir as desigualdades. Continuamos um país classista, racista, machista e com inúmeras desigualdades.
    Vale ressaltar que o discurso da mulher se inscreve numa genealogia de como os poderes são exercidos no Brasil. Reflete uma interpretação de como a sociedade se organiza, trata-se de um modo de pensar comum na sociedade brasileira que o antropólogo Roberto da Matta muito bem descreveu no texto "Você sabe com quem está falando?" do livro Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Essa característica demonstra como a cidadania, a igualdade entre todos, não é vista como positiva por aqui.
    Não tem como pensarmos cidadania sem o fortalecimento da democracia e diminuição das desigualdades. Somos uma sociedade profundamente desigual. Aqui, direitos básicos como moradia, saneamento básico, saúde, educação, lazer e cultura, não são garantidos para a grande maioria da população, que vive à margem de direitos essenciais. Esses direitos que deveriam ser para todos, por serem usufruídos por poucos, tornam-se privilégios de alguns, e reforça no imaginário social que esses grupos privilegiados são melhores, são superiores e devem ser tratados de forma diferenciada em toda e qualquer situação. Ao afirmar para o fiscal que o marido dela é engenheiro, e não cidadão, a mulher quis dizer que ele é superior, e por extensão, ela também é. Essa é uma interpretação autoritária de quem pensa que está numa posição social superior aos demais, merece tratamento diferenciado.
    A referência à profissão também é uma marca histórica brasileira de chamar bachareis de doutor, sobretudo os que se formavam em direito, engenharia e medicina. Durante séculos, a educação era para uma minoria, uma pequena elite, e essa hierarquização ainda se faz presente na sociedade brasileira. A democratização do acesso à educação não resolveu o problema. O acesso a Universidade ainda não é para todos, embora as políticas de cotas tenham ajudado a diminuir as desigualdades no acesso, se manter na Universidade não é fácil para os alunos mais pobres. Muitos conseguem ser aprovados, ingressam na Universidade, mas sofrem para continuar estudando por quatro, cinco anos, e muitas vezes não conseguem se formar, são obrigados a abandonar o curso. Por isso, o acesso à educação, sobretudo ao ensino superior, ainda não é igual para todos no Brasil, e a mulher do bar na Barra da Tijuca sabe disso. Se o marido faz parte desse seleto grupo de bachareis em engenharia, na compreensão dela, mais um motivo para ser tratado de forma diferenciada. Ele engenheiro, no imaginário social que ainda se mantém no país, é uma autoridade, logo, a autoridade do fiscal, foi considerada menor que a dele, e por isso a afirmação: "melhor do que você!" Numa sociedade igual em direitos e deveres, não cabe esse tipo de discurso. Para manter certas hierarquias, é necessário rejeitar a noção de cidadania. Como no Brasil ainda temos um longo caminho para a construção de uma democracia inclusiva e cidadã. O caso narrado não foi o único. Outros fiscais da vigilância sanitária também relataram ameaças. Um dos casos recentes é da fiscal Jane Loureiro que foi ameaçada por um rapaz num bar também na Barra da Tijuca que disse ser filho de um procurador e que ela perderia, nas palavras do jovem: "seu empreguinho".
    A historiadora Lilia Schwarcz em entrevista recente nos lembrou de um provérbio comum no Brasil na época colonial; "aqui, quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Quem rouba mais e esconde chega logo a visconde", é a ideia de que para os inimigos a lei, para os amigos, nada, que infelizmente, ainda existe no país.
    É importante problematizarmos o fato ocorrido porque ele reflete permanências autoritárias e a rejeição da noção de cidadania, mas é crucial entendermos que essa não é uma característica apenas nossa. O autoritarismo, a rejeição à cidadania, aos direitos humanos, não é marca apenas do Brasil. Em outros países, práticas semelhantes acontecem. Vimos e nos chocamos no último mês com o vídeo do George Floyd sendo asfixiado por um policial nos Estados Unidos, país que sempre se orgulhou de afirmar o quão democráticos são. Mas ainda é uma democracia que mata negros. Em Londres, a reabertura dos Pubs também causou aglomeração, e lá, como aqui, muitos não usaram máscaras.
    Embora o autoritarismo permaneça como característica crucial para entendermos como as relações de poder são estruturadas no Brasil, a problematização que ocorreu nos dias seguintes ao caso do engenheiro ajuda na popularização de um debate que é importante para desnaturalizar práticas como essa. Os memes e críticas que viralizaram e, muito provavelmente por este motivo, a rápida resposta da empresa que demitiu a mulher são alguns sinais de que existe ao menos um debate sendo feito, e se a prática ainda existe, a tolerância a ela parece estar menor.

Referências
ARMANDINHO. Tiras do Armandinho. Disponível em: htt://tirasarmandinho.tumblr.com Acesso em: 14 Jul. 2020.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª ed. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2012.

ECOA, Diana Carvalho de. Cidadão, não. Revolta à fala mostra que Brasil tem potencial para mudar. Uol, São Paulo: 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/07/07/cidadao-nao-revolta-a-fala-mostra-que-brasil-tem-potencial-para-mudar.htm Acesso:11 Jul. 2020

FERRAZ, Ricardo. Pubs reabrem na Inglaterra com aglomerações e cima de revanche. Revista Veja, 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/pubs-reabremna-inglatera-com-glomeracoes-e-clima-de-revanche/ Acesso: 11 Julh. 2020

MATTA, Roberto da. Você sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indiv;iduo e pessoa no Brasil. In: Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:Rocco, 1997.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.













terça-feira, 7 de julho de 2020

Um manifesto do Futuro: a singularidade da vida, o escárnio diante da morte e o Fim dos Tempos



                                                                                                          Texto redigido coletivamente
Segundo a mitologia nórdica, o destino dos homens e dos deuses é traçado por três fiandeiras que vivem sob as raízes do grande freixo de Yggdrasil. Consideradas como deusas do tempo, as três nornas (nornir) realizam um trabalho contínuo engrossando os fios que nos ligam à vida, torcendo-os com força de modo a traçar o destino dos habitantes dos nove mundos. O trabalho de cada uma das tecelãs se associa a um tempo específico. Assim, a anciã Urðr se volta para o passado (como “aquilo que se tornou”), a maternal Verðandi se preocupa com o tempo presente (com “aquilo que acontece”), enquanto que a virgem Skuld se preocupa tão apenas com aquilo que está por vir (com “aquilo que é necessário”). O destino dos homens e dos deuses estaria relacionado à ação coordenada das três fiandeiras uma vez que passado, presente e futuro seriam entendidos como elementos indissociáveis. De acordo com a narrativa mítica, o poder das nornas estaria acima da autoridade dos deuses devido à faculdade de intervir no destino de todos: na sorte, no azar e também na providência.  
Na crença popular nórdica, as três fiandeiras estariam associadas equivocadamente à figura da morte devido à capacidade de controlar o destino dos homens e dos deuses. Não obstante, esta leitura pode ser considerada enviesada, pois a tarefa de fiar também se relaciona com o nascimento, com a vida, com o entrelaçamento entre as distintas dimensões temporais que conferem sentido à existência humana. É importante notar que cada fio da nossa existência se faz representado por linhas com espessuras e tamanhos distintos expressando de tal modo o tempo e a qualidade da vida que levamos. Para que a vida se renove em toda a sua plenitude, as fiandeiras precisam regar continuamente a grande árvore. A despeito do louvável trabalho das fiandeiras do destino, a vida em tempos presentes carece de sentido real e abstrato. Por mais inacreditável que pareça, a única certeza que se pode inferir é que o tempo presente marcará inequivocadamente o destino de muitas gerações. (In)felizmente, o fim do mundo ao qual conhecemos está na agenda do dia... Que venha o Ragnarok!
O texto que se segue é uma análise sobre os tempos presentes e vindouros, é uma reflexão sobre a crise vivenciada no Brasil e no mundo em seus múltiplos aspectos (político, econômico, sanitário, etc.). Em tempos de obscurantismo, de negação da verdade, de ataques dissimulados à vida do outro, defender o conhecimento científico se tornou um ato revolucionário. Nesse sentido, a nossa missão enquanto grupo de extensão é mais simples do que parece: trata-se apenas de defender o óbvio. Por conseguinte, a educação pública representa para nós um bem inegociável na construção de uma sociedade livre, plural e democrática. O presente texto é, acima de tudo, um manifesto a favor da vida, em defesa da Ciência, da Pesquisa e da Universidade Pública, como per excellence, defensora da produção e da disseminação do conhecimento científico. 

Exórdio sobre o Fim de uma Era

Em artigo recente, Slavoj Zizek (2020) afirmou que a propagação do coronavírus em uma escala global propiciou a disseminação de outro vírus igualmente destrutivo a despeito de sua face ideológica. Este vírus ideológico, até então em estado latente na sociedade, emergiu do esgoto da política há alguns anos fazendo do ódio ao diferente a sua forma rotineira de fazer política: o ódio ao homossexual, ao preto, ao pobre, ao favelado, ao “macumbeiro”, às mulheres, etc. Como um espectro que ronda o Brasil e o mundo em pleno século XXI, um séquito de fundamentalistas proclama a morte ao outro sob o trivial: “bandido bom é bandido morto”. Em um passado não tão distante assim, o inimigo também recebera a alcunha por parte dos controversos cidadãos de bem de “comunistas”. Hoje, tal como antes, a classificação dos indesejáveis pelo rótulo de comunista segue na ordem do dia, em um movimento estranho que se estende da Rede Globo aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Mais do que seriedade para lidar com essa horda, é preciso uma pitada de bom humor... Rir ainda é o melhor remédio para tempos difíceis. 
Convencionou-se avocar a loucura para classificar os atos funestos do Inominável, do seu clã e da horda que o aplaude. A defesa consciente da tortura física e da aniquilação do outro nada tem a ver com a loucura. Eles sabem o que fazem, e o fazem conscientes da realidade com doses de sadismo e de crueldade. É um ato deliberado de maldade, sustentado pela lógica cínica “eles sabem o que fazem e por isso o fazem.” (Zizek, 2012)
Por décadas a fio, o tal vírus ideológico permaneceu submerso no mundo da política contaminando silenciosamente um número cada vez maior de indivíduos. O primeiro agente hospedeiro desta doença infecciosa foi aquele cidadão tosco que arrotava a sua ignorância com piadas racistas após algumas doses de bebida. Prepotente e mal resolvido com a própria sexualidade, este indivíduo não admite que o outro decida livremente sobre a sua própria vida, muito menos reconhece qualquer outra verdade que não seja a sua. O problema é que o vírus se alastrou e o ser abjeto não está mais sozinho. Ele é e se faz representado politicamente! Em certa medida, o mundo virtual se tornou um ambiente propício para a disseminação desse vírus. Ainda que tenha ocorrido uma reação profilática por parte de setores da sociedade civil, este movimento não foi suficiente para conter o avanço da agenda autoritária . 
Dentre as formas de ação do vírus, as redes sociais emergem como um espaço privilegiado para a difusão de discursos extremistas. A retórica fundamentalista se erige a partir de uma onda conspiratória com forte carga racista e misógina, e que toma o outro como "inimigo" a ser combatido. A fluidez dos marcos legais da Internet permite que notícias falsas se espalhem (quase que) impunemente destruindo reputações e ameaçando as liberdades civis. A reafirmação da identidade do “eu” demanda, neste caso, a negação da alteridade, ao se erguer uma fronteira bem definida diante do outro, então suscetível às arbitrariedades da violência policial. Por exemplo, a tipificação do negro como elemento potencialmente criminoso não tem origem em um passado recente. O racismo está entranhado em nossas sociedades, como se viu recentemente no assassinato de George Floyd por policiais da cidade de Minneapolis, sob a alegação de supostamente portar uma nota falsa de vinte dólares. 
Por sua vez, projeta-se uma reação sistemática, ainda em curso, ao vírus ideológico do fascismo. A própria mobilização popular a partir do lema “Black lives matter”, que percorreu várias cidades dos Estados Unidos e do mundo, derrubando estátuas de indivíduos controversos, com histórico ligado à escravidão, nos possibilita pensar que o fim deste mundo talvez não seja tão ruim. Zizek nos fala que este outro vírus (que chamaremos aqui de vírus contra-hegemônico), consiste em conjecturar um mundo assentado em novas formas de cooperação e de solidariedade globais. O autor chega a considerar que o coronavírus pode vir a reinventar o comunismo (sob uma nova forma) ao introduzir a confiança no povo e na ciência. O entendimento do autor acerca do que consiste o fim do mundo poderia seguir na direção do colapso da ordem capitalista internacional, ou pelo menos, sinalizar para mudanças sistêmicas. Em suma, o processo de transformação não será suave e terá, em todos os seus efeitos, um caráter radical. 
Como advertiu o crítico literário Fredric Jameson, os filmes de ficção científica se constroem a partir de uma perspectiva utópica ao (re)pensar o mundo por meio de uma nova solidariedade entre os homens. Um asteroide que está prestes a por fim a toda a vida na Terra, ou o potencial destrutivo de um vírus enseja uma nova forma de se deparar com a vida no sentido de estabelecer laços solidários entre os homens. Mais uma vez, Zizek argumenta que não se trata em “aproveitar sadicamente do sofrimento generalizado contanto que ele contribua com nossa causa. Muito pelo contrário. Trata-se de refletir sobre o triste fato de que precisamos de uma catástrofe dessa magnitude para nos fazer repensar as características básicas da sociedade em que vivemos" (2020). A pandemia revelou o que sempre fez parte da nossa realidade, mas que no passado recente, era tratado como normal. 
Talvez, a crise imposta pela pandemia nos permita pensar em novos mundos sociais possíveis para além do cenário distópico dos dias atuais. Talvez, seja o momento de refletirmos sobre as desigualdades que foram escancaradas com a pandemia, usarmos essa experiência catastrófica para pensarmos qual é o novo mundo que desejamos. Desde o início deste milênio, por meio do Fórum Social Mundial, movimentos sociais oriundos de todos os continentes uniram esforços visando elaborar estratégias de ação para uma transformação social global. 
Como modelo de cooperação global coordenada na atualidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem desempenhando um papel importante durante a epidemia do coronavírus no sentido de instruir à população com alertas de esclarecimento ao público em geral. Esta organização poderia ser ainda mais eficaz no contexto atual se tivesse um poder deliberativo sobre os respectivos governos. Outro ponto não menos importante consiste na oferta universal e gratuita à saúde pública, tal como já ocorre no Brasil, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Outras catástrofes também rondam o horizonte distópico dos dias atuais, como a destruição de florestas nativas, as secas, a invasão às terras indígenas, etc. Como resposta aos problemas, a solução não passa pelo pânico generalizado, mas pela intervenção do Estado e pela criação de uma ação coordenada global.
Um dos pontos mais problemáticos atualmente consiste em entender que a vida não será mais como antes, que o dia depois de amanhã (e não um “novo normal” como se verá mais à frente) diferirá em inúmeros aspectos do intitulado normal de até então, que as soluções para os atuais e futuros problemas não serão tão simples quanto parecem. Ainda que algumas lideranças globais tenham tratado a crise com certo cinismo e desleixo, a resposta requerida passa pela intervenção estatal e pela cooperação internacional.
Não menos importante, o impacto capitaneado pela epidemia do coronavírus enseja uma mudança comportamental que está para além da esfera estatal atingindo as interações mais elementares da nossa vida em sociedade. A disciplina imposta pela assepsia do cotidiano, que nos proíbe de tocar nas pessoas e nos objetos, que impede o beijo e o abraço, e que restringe manifestações espontâneas de afeto e de raiva, produziu em pouco mais de três meses uma transformação radical no comportamento das pessoas. Essa revolução comportamental atinge o mundo como um todo ao impor disciplina e assepsia em relação ao próprio corpo e ao corpo do outro. Os efeitos desta transformação sobre a população brasileira talvez apresente um caráter mais perverso em virtude da afetividade tipicamente latina e representativa de nossa brasilidade no conjunto de nossas relações sociais. 
Ao que tudo indica, a realidade virtual pode vir a se tornar um dos poucos lugares seguros no mundo Pós-Pandemia. Se por certo tempo, o adjetivo "viral" designava a massificação de um fenômeno digital no cotidiano social a despeito de todo potencial destrutivo embutido. O que se verifica no contexto atual é um retorno ao significado literal do termo, não apenas levando em conta a dimensão virtual, mas também a real (ZIZEK, 2020). 
O capitalismo contemporâneo se utiliza de uma retórica animista para tratar da crise vivenciada no Brasil e no mundo. Os mercados globais e a própria Bolsa de Valores são tomados como entidades vivas que perturbam o nosso dia a dia, como, por exemplo, quando os mercados ficam "nervosos" com determinada medida adotada pelo Banco Central americano impulsionando, desta forma, uma queda de 3 pontos percentuais. Diante do colapso econômico que se aproxima, não seria o momento de se repensar o papel do Estado na gestão da(s) crise(s)? Em vez de políticas de austeridade, tal como propagado por uma gama de rentistas do mercado financeiro, não seria necessário uma maior intervenção do Estado em todos os setores da sociedade? Na atual conjuntura, o fato é que o próprio capitalismo demanda uma maior organização global para não colapsar.  
O que se defende é um Estado que promova o desenvolvimento sustentável, cônscio da responsabilidade em reduzir as desigualdades sociais, oferecendo uma maior rede de proteção aos indivíduos e comunidades nativas, como indígenas e quilombolas. Este novo pacto social redunda na valorização do Sistema Único de Saúde, que apesar do sucateamento proposital da rede médica por décadas, resiste e atende a milhões de brasileiros em todas as partes do país. Ao contrário do Brasil, um cidadão americano, que se tornou o homem com maior tempo de internação no tratamento da Covid-19 (62 dias), recebeu do hospital de Seattle uma fatura de US$1,1 milhão.  
Neste sentido, a defesa de uma agenda de reformas neoliberais, sob o engodo modernizante da necessidade de implementar medidas que visem à austeridade das contas públicas, caminha no sentido contrário ao demandado pelo sistema internacional para conter os efeitos da crise. Alguns críticos poderiam objetar que a vida política poderia ser convulsionada por uma agenda totalitária apoiando-se no caos generalizado, como advertiu recentemente Noam Chomsky (2020). Apesar de tal hipótese não estar totalmente descartada, o que se verifica até o momento no Brasil e no mundo consiste na mobilização das instituições democráticas e na aglutinação de movimentos sociais visando contrapor o avanço da violência, da discriminação e do militarismo.


O Ragnarok e o dia depois de amanhã:

Para deixar tudo bem claro, algumas palavras precisam ser ditas. Primeiramente, o Ragnarok nada tem a ver com um “novo normal”. Nos últimos meses, com a eclosão da epidemia do coronavírus, se alastrou pelo mundo acadêmico uma série de reflexões a respeito do que será do mundo após o fim do isolamento social. Artigos e resenhas proliferaram em páginas na Internet, no noticiário impresso e televisivo sugerindo a feição da realidade humana pós-pandemia. De um modo geral, a ideia de “normalidade” perpassa o conjunto das análises. Se já constitui algo equívoco tentar estabelecer o “império do normal” hoje, quiçá definir o que virá a ser o “novo normal”. A única razão que talvez justifique esse ímpeto normativo decorre da necessidade em estabelecer certa estabilidade e regularidade no conjunto das relações sociais. A fluidez de tempos tão incertos em quase todos os aspectos da vida (saúde, emprego, renda, habitação, educação...) impõe ao pesquisador o desejo de conjecturar uma sociabilidade que preserve minimamente qualquer tipo de constância. 
A narrativa em torno do “novo normal” reflete a ideia de que a realidade existente até então teria sido de algum modo satisfatória. É como se a vida até o início do mês de março de 2020 possa ser entendida como razoavelmente boa, apesar de alguns aspectos desagradáveis, como o crescimento da miséria no mundo, a destruição dos ecossistemas, a degradação da fauna e da flora, a poluição da atmosfera terrestre, a ascensão de discursos extremistas que advogam pela segregação e morte das minorias, a perda de direitos sociais e trabalhistas e a criminalização da pobreza nas periferias dos centros urbanos. 
No momento da redação deste texto, o Brasil acumula a fatídica marca de 1,6 milhão de pessoas infectadas pela epidemia do coronavírus com mais de 65 mil mortes. Em todo mundo, o número de casos confirmados ultrapassa a casa de 11 milhões de pessoas, das quais 540 mil vieram a óbito. Distante da realidade dos fatos, os dados oficiais das autoridades sanitárias camuflam a carnificina que se avoluma nas grandes cidades e se interioriza pelas áreas rurais. De modo inverso, a perplexidade de parcela da opinião pública repousa não sobre a morte de milhares de seres humanos, mas pelo fato de tal estatística minar a legitimidade do seu político de estimação. A vida quantificada em termos numéricos carece de significado real – é a própria banalidade do Mal.
De modo direto, como se pode aludir a um novo normal com mais de mil mortes diárias?  Significa então, que passamos a considerar normal a morte do outro desde que o outro não seja alguém da nossa família? O novo normal seria garantir os lucros da minha empresa ainda que isto represente a morte dos indesejáveis, em especial, idosos ou indivíduos com algum tipo de comorbidade? Pode-se dar a isto o nome que quiser, menos chamá-lo de novo, e muito menos de normal. 
A pandemia nos obrigou pensar sobre a vida, a morte, o luto, as relações afetivas, o que de fato é importante e o que queremos. Planos para a vida pós-pandemia não faltam. Se por um lado os discursos de ódio e menosprezo a vida do outro se fizeram presentes, também nos causaram espanto. Os movimentos dominicais que pedem a volta da ditadura militar nos mostraram que conhecemos muito pouco a nossa história, mas recente pesquisa nos mostrou que sonhamos com a continuidade de nossa democracia. Talvez, a pandemia tenha nos revelado sonhos que andavam esquecidos.
A analogia ao Ragnarok no presente texto nada mais é do que um recurso discursivo bem-humorado a partir da narrativa mítica nórdica para refletir sobre a crise desencadeada pelo novo coronavírus. Resolvemos usar assim o termo de modo impreciso e não conceitual. O termo em voga (“novo normal”) sugere algum tipo de continuidade com a ordem pregressa, algo como um presente repaginado. Na mitologia nórdica, o Ragnarok representa o fim de uma era convulsionada pelo conflito mortal entre os deuses após uma série de eventos cataclísmicos. O caos se opunha à ordem em uma batalha épica prenunciada em verso e prosa. Não se trata, por conseguinte, de uma associação simbiótica entre o novo e o velho, ou entre o caos e a ordem. O Ragnarok deve significar a própria ruptura, o fim dos tempos em todos os seus aspectos. 


Referências Bibliográficas:
ABRANCHES, S. et al. Democracia em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ANDERSON, Perry. Brasil à parte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.
ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CHOMSKY, Noam. Não podemos deixar a Covid-19 nos levar ao autoritarismo. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/chomsky-nao-podemos-deixar-o-covid-19-nos-levar-ao-autoritarismo/>. Acesso em: 01 jul 2020.
DAVIS, Mike et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem Amos, 2020.
GIELOW, Igor. Apoio a democracia chega a 75% e bate recorde em meio a ameaças de Bolsonaro. Jornal Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/apoio-a-democracia-chega-a-75-e-bate-recorde-em-meio-a-ameacas-de-bolsonaro.shtml. Acesso em: 02 Jul. 2020. 
GUIA Pervertido da Ideologia. Direção de Sophie Fiennes. Londres: Zeitgeist Films, 2012. 
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real!. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
_____________. Bem-vindo ao deserto do viral! Coronavírus e a reinvenção do comunismo. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/12/zizek-bem-vindo-ao-deserto-do-viral-coronavirus-e-a-reinvencao-do-comunismo/> Acesso em: 01 jul 2020.