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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

“DataPovo” versus Datafolha: algumas observações introdutórias sobre o 1º turno das eleições presidenciais

                          

Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)

 

A diferença de pouco mais de 5 % dos votos de Luís Inácio Lula da Silva (PT) em relação ao presidente Jair Bolsonaro (PL), índice menor do que o projetado pelos principais institutos de pesquisa do país e que culminará com a realização do 2º turno em 30 de outubro, se explica não apenas por um único fator, mas por um conjunto de fatores associados. Qualquer resposta simples para um quadro eleitoral complexo escapa do resultado manifestado nas urnas no dia 2 de outubro. Não menos importante do que a margem relativamente estreita entre os dois principais presidenciáveis consiste no êxito eleitoral capitaneado por candidatos(as) de extrema direita vinculados ao presidente Jair Bolsonaro para cargos nas bancadas estaduais, na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e para os governos estaduais, com particular atenção, para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país.

É bem verdade que uma análise no dito “calor do momento” está sujeita a alguns equívocos em termos diagnósticos acerca do processo eleitoral, algo que o pesquisador poderia evitar ao se distanciar ainda que por alguns dias do resultado das urnas valendo-se de mais dados e de informações sobre o fenômeno estudado. Aceitamos assim o risco ao nos atermos à análise de resultados considerados em certa medida parciais e inconclusos. Seria, por assim dizer, necessário mais tempo para digerir a “vontade eleitoral” expressa no pleito geral do dia 2 de outubro e realizar uma análise mais acurada acerca da guinada bolsonarista expressa nas urnas revertendo uma tendência de centro-esquerda que parecia se confirmar nas principais pesquisas de opinião.

Diante da divulgação ao longo da noite, em tempo real, dos resultados eleitorais pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seja em relação aos votos para a presidência da República, como para os demais cargos em disputa, ficava evidente o descompasso perante o que havia sido publicado às vésperas das eleições pelos principais institutos de pesquisa, notadamente, o Datafolha e o Ipec. Bem longe de desabonarmos a seriedade das pesquisas realizadas pelos referidos institutos de pesquisa, a confirmação de equívocos tão evidentes indica a necessidade urgente de atualização na metodologia utilizada e de parâmetros de pesquisa adequados à amostragem de uma sociedade dinâmica[1]. O fato é que em meio a disputa de narrativas, o chefe do Executivo, que sempre vociferou contra os institutos de pesquisa, ganhou munição adicional no embate ideológico. Dando-lhe até certo ponto alguma razão, o “DataPovo” venceu a disputa contra o Datafolha! À revelia dos descrentes, o contestado instituto Paraná Pesquisas, empresa que angariou contratos milionários do governo Bolsonaro, fora o mais fidedigno à realidade das urnas.

A seguir, destaco algumas observações gerais que merecem maior aprofundamento por parte dos profissionais da área:

a)   Nas últimas semanas, os principais jornais do país, como a “Folha de São Paulo” e “O Globo” já noticiavam em suas páginas a melhoria de percepção por parte da população brasileira em relação à economia. Até então, o olhar crescentemente positivo do eleitorado quanto ao futuro da economia não havia se revertido em possíveis votos para o atual ocupante do Palácio do Planalto. Ao que tudo indica, esta mudança de percepção, motivada ainda que artificialmente pelos efeitos da PEC nº 1/22 (batizada pela oposição como “PEC Eleitoreira” por ampliar gastos sociais às vésperas das eleições) e do uso intensivo da máquina pública, constitui um dos fatores cruciais para se entender a guinada bolsonarista na reta final da campanha.

b)   Por conseguinte, considero equivocada a tese que imputa à candidatura de Ciro Gomes uma extensa dose de responsabilidade pela não obtenção dos votos necessários para a vitória do ex-presidente Lula no primeiro turno. O crescimento bolsonarista está mais atrelado aos (recentes) índices favoráveis do governo na economia do que propriamente aos ataques do pedetista. Se é possível falar na responsabilização de Ciro Gomes, considero que o ex-ministro dos governos FHC e Lula contribuiu com a despolitização do debate público ao colocar no mesmo patamar o bolsonarismo e o “lulopetismo” (termo comumente utilizado por Ciro Gomes para detratar os governos petistas) como as duas faces do mesmo mal. A radicalização dos ataques ciristas nas últimas semanas tomando como cerne a questão da corrupção, teve efeitos despolitizantes no debate eleitoral como um todo. Não obstante, entendo que a pretensa responsabilidade negativa da campanha de Ciro Gomes sobre o resultado no primeiro turno é bem menor do que se afere.

c)    Outro ponto digno de nota consiste nos erros (nada desprezíveis) cometidos pelo ex-presidente Lula durante o primeiro turno, como a participação abaixo do esperado nos debates presidenciais alternando momentos de fragilidade nas respostas aos ataques adversários (como na réplica de Lula a Bolsonaro em debate realizado na Band o que acabou municiando o “eleitorado bolsonarista”) e a perda de controle emocional diante do controverso “Padre” Kelmon (no debate da Globo). Outros erros também foram cometidos, como o deslize na fala em entrevista realizada no Jornal Nacional sobre o agronegócio (tipificado como “fascista”) ou mesmo a crítica ao atual presidente classificado pelo petista como um ignorante e "capiau do interior de São Paulo". Coincidência ou não, Lula venceu Bolsonaro na capital de São Paulo e perdeu na maioria das cidades do interior. Em eleições do tipo “cara ou coroa”, um pequeno deslize na campanha pode favorecer à candidatura adversária.

d)   Elemento não descartável e que explica parcialmente a predileção por Jair Bolsonaro para parcela do eleitorado brasileiro consiste no sentimento antipetista, que apesar de difuso e aparentemente inferior ao momento eleitoral de 2018, tem ainda um considerável potencial de mobilização de alguns segmentos da sociedade brasileira, em particular, para aquela “classe média”, identificada outrora com a Operação Lava Jato.  Por sinal, os algozes, perante a opinião pública, do ex-presidente Lula tiveram êxito nas urnas, vide o ex-procurador Deltan Dallagnol, que se elegeu como o deputado mais votado pelo Paraná, e o ex-juiz Sergio Moro, eleito senador pelo mesmo estado.

e)   Apesar dos esforços da campanha do ex-presidente Lula em reduzir a resistência do público evangélico em relação ao Partido dos Trabalhadores, o fato é que Bolsonaro desfruta de uma vantagem considerável neste segmento da população. Conforme noticiado, uma movimentação atípica em prol da candidatura de Bolsonaro se intensificou nas igrejas evangélicas nas semanas que antecederam ao pleito presidencial. Com peso menor na disputa deste ano, a pauta de costumes se fez presente no primeiro turno e pode ser decisiva na reta final das eleições. Para consolidar a vitória sobre o seu adversário no segundo turno, Lula possivelmente fará acenos mais explícitos ao eleitorado evangélico e conservador.

Poderíamos ainda citar outros fatores adicionais, com pesos razoavelmente distintos, para entender até certo ponto o resultado inesperado das urnas no primeiro turno, como a dificuldade da campanha de Lula em se desvincular do tema da corrupção, a falta de capilaridade da esquerda na periferia dos centros urbanos, uma certa incapacidade de dialogar com alguns setores importantes da sociedade brasileira, sem contar com a instrumentalização política das redes sociais por fração significativa da base bolsonarista caracterizada pelo alto grau de engajamento.

A despeito da vantagem nada desprezível da campanha de Lula em comparação à Bolsonaro, o que se infere é que o cenário que se avizinha para o segundo turno adquire contornos de indefinição. Aos 76 anos, Lula é reconhecidamente a mais importante liderança da esquerda democrática no Brasil com a capacidade de aglutinar amplos setores da sociedade, em especial, aqueles que se beneficiaram das políticas públicas realizadas durante o seu governo. Espera-se, assim, uma campanha ainda mais radicalizada no segundo turno em que o atual presidente se valerá de uma artilharia pesada para tentar angariar a maioria dos votos dos candidatos Ciro Gomes e Simone Tebet (ou até mesmo virar alguns votos de Lula), vide a já anunciada antecipação do pagamento do Auxílio Brasil para o período que antecede ao pleito eleitoral no dia 30 de outubro.

 



[1] As explicações dos Institutos Datafolha e Ipec para a diferença considerável entre as pesquisas de opinião e os resultados das urnas decorreria, de acordo com os referidos órgãos, da migração de última hora de eleitores indecisos e de parcela dos eleitores de Ciro Gomes e de Simone Tebet que preferiram o atual presidente em relação ao antigo mandatário. O mesmo fenômeno não teria sido observado no caso do ex-presidente Lula, cuja migração visando o “voto útil” teria ocorrido gradativamente ao longo do 1º turno.