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quinta-feira, 31 de março de 2022

58 anos do golpe e o que resta da ditadura

Texto escrito por Flávia Mendes - Dra. em Ciência Política/UFF    

    

 Amanhã, 01 de Abril de 2022 faz 58 anos que teve início a ditadura empresarial civil-militar, e o que resta desse período de regime autoritário é muito mais do que uma herança que foi deixada e esquecida. As marcas são profundas e as continuidades inúmeras. Os militares estiveram no poder por 21 anos, mas também podemos considerar que esse tempo foi maior, porque só tivemos nova Constituição em 1988 e novas eleições em 1989. Não se sustentaram no poder sozinhos, tiveram apoio de diversos setores sociais como empresários, proprietários de terras, Igreja Católica, classe média, setores conservadores da intelectualidade, maioria do congresso nacional, além, obviamente, de boa parte dos militares. Como afirmou o psicanalista Tales Ab’ Sáber “o que restou da ditadura militar foi simplesmente tudo. Tudo, menos a própria ditadura” (2010, p.193). Se observarmos o presente vemos que as marcas do Estado de Exceção e da violência de Estado se mantiveram.

    As heranças daquele período seguem presentes, porque a ditadura brasileira não passou. Não tivemos justiça de transição, a anistia que tivemos aqui foi imposta pelo governo autoritário da época que anistiou torturadores e todos que cometeram inúmeros crimes a serviço do Estado. O Brasil é o único país dentre os que viveram ditadura militar na América Latina que não julgou os assassinos e torturadores; o Exército não se posicionou a respeito do golpe; constantemente inúmeros elogios são feitos pelos oficiais da ativa e da reserva; além dos casos de elogios à barbárie e a violência da ditadura militar feitos pelo atual presidente da República e o ocultamento de cadáveres dos que foram mortos pelas Forças Armadas são algumas das inúmeras violências ditatoriais que marcaram a sociedade brasileira e que foram aos poucos naturalizadas e esquecidas (SAFATLE; TELES, 2010,10).

    Nossa atual constituição, embora apelidada de cidadã tem parágrafos inteiros que mais parecem cópia da constituição ditatorial de 1967, porque legaliza o golpe de Estado quando fala da garantia da lei e da ordem, e essa ordem é abstrata. O artigo 142 diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O que é essa ordem que deve ser mantida e garantida pelos militares?

Ordem não é um conceito neutro e sua definição operacional, em todos os níveis do processo de tomada de decisão política, envolve escolhas que refletem as estruturas política e ideológica dominantes. Portanto, a noção de (des)ordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos”. (ZAVERUCHA, 2010, p. 49).

    Ou seja, o Estado brasileiro montou uma estrutura institucional de preservação da violência da ditadura militar. Isso também ajuda a explicar o bolsonarismo, o saudosismo do período ditatorial que paira no ar e a violência estatal que não deixou de existir mesmo com o retorno a democracia.

    A democracia não fez as contas com a ditadura, e a falta de políticas de memória ajuda a manter esquecido e sem contestação o que foi aquele período, que deveria ser pensado como uma tragédia para a sociedade brasileira. A grande maioria da população, por exemplo, desconhece que somente nos primeiros meses de regime 50 mil pessoas foram presas e torturadas (ARANTES, 2010, p. 205).

    A relação entre ditadura e a contemporaneidade são mais entrelaçadas que parecem, porque para se instaurar de fato uma democracia é necessário uma transformação nas leis, mas não apenas, é necessário uma transformação nas estruturas.

A maneira insidiosa que a ditadura militar brasileira encontrou de não passar, de permanecer em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas […] ela se mede não por meio da contagem de mortos deixados para trás, mas através das marcas que ela deixa no presente, ou seja, através daquilo que ela deixará para frente (TELES; SAFATLE, 2010, p.10-11).

   A ditadura brasileira foi vitoriosa. Ela encontrou maneiras de não passar (TELES; SAFATLE, 2010) como por exemplo, com a continuidade de uma polícia militar. O que em qualquer democracia seria impensável, uma polícia treinada para confrontos armados e para a guerra. E é como guerra que alguns discursos são construídos. Se na ditadura o inimigo era o comunista, terrorista, subversivo; na democracia, por trás do discurso de paz existe um Estado que instala uma verdadeira guerra civil não declarada contra determinados grupos, os negros, pobres, jovens moradores da periferia, vendedores do varejo das drogas ilegais. Os corpos matáveis, alvos preferenciais. 
 
    O racismo estrutural ajuda na manutenção dessa política que divide os sujeitos em dois grupos, os que são pessoas, e merecem a proteção do Estado e os que são coisas e são vidas matáveis, descartáveis (AGAMBEN, 2010). Outro elemento importante que ajuda na manutenção da ditadura, além do racismo que tornou-se política de Estado, é o fato de que a tortura nunca deixou de acontecer como aparato da violência. Na ditadura ela foi institucionalizada nas delegacias, presídios, manicômios, além de toda sofisticação e especialização dos DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna).
    O Brasil, após 1985, continuou sendo um país violento, autoritário e excludente. A democracia que implementamos aqui escolheu ser assim, excluir e conviver com inúmeras violências. Mesmo depois da redemocratização, da promulgação da Constituição de 1988, o autoritarismo continuou presente.

Esse imenso atraso no acerto de contas com a ditadura e as inúmeras violências praticadas aqui, marcam a história e o presente do Brasil. Convivemos com escravização e genocídio de pessoas negras, naturalização de violências contra mulheres e LGBTs, etnocídio de populações indígenas, e essas violências “dão forma e conteúdo ao nosso país” (TELES; QUINALHA, 2020, p. 9).

Uma sociedade que nega e silencia as atrocidades cometidas durante a ditadura militar não consegue reparar, lembrar e julgar, assim como também não tem como inventar um futuro diferente, sem repetição, porque o que passou não foi ainda elaborado. O pouco que avançamos no retorno a democracia vem sendo destruído. Bolsonaro no poder é a consolidação da derrota da nossa democracia. Não à toa o processo que possibilitou a sua vitória ocorreu pouco depois da instauração da Comissão Nacional da verdade (CNV), antiga reivindicação do movimento dos familiares mortos e desparecidos políticos que teve início em 2012, durante o mandato de Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente do Brasil. O trabalho da Comissão da Verdade foi muitíssimo importante, mas não suficiente, ainda há muito que investigar e descobrir sobre o período de 1964 a 1985. Muitos foram os acordos feitos durante o processo em que a CNV apurava as violações de direitos humanos do período da ditadura, porque era necessário manter uma certa governabilidade, mas, ainda assim, foi suficiente para gerar incômodos. Quando o relatório final da Comissão foi entregue, já acontecia o processo de golpe contra a democracia que resultou no impeachment de Dilma Rousseff e os movimentos que tomaram as ruas negando ou justificando os fatos ocorridos durante o regime e alguns casos pedindo nova intervenção militar. Esses fatos já mostravam os limites da CNV e também da democracia que vivíamos até então.

Pensar no que significa esses 58 anos desdo o começo da ditadura até os dias atuais e olhar para aquilo que não demos conta e nos interpela no presente com os movimentos recentes da história, longe de servir para nos paralisar, serve para conhecer quem somos e de onde viemos para que possamos fortalecer aquilo que nos move e nos desperta à vida.


Referências bibliográficas


SÁBER, Tales Ab’. Brasil, a ausência significante política (uma comunicação). In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.


BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 48.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


TELES, Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.


TELES, Edson; QUINALHA, Renan. Espectros da ditadura: da comissão da verdade ao bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.


ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.