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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Liberal na economia e conservador nos costumes: o casamento entre Paulo Guedes e Damares Alves que são mais parecidos do que imaginamos


Escrito por Flávia Mendes - Doutoranda em ciência política/UFF e professora de sociologia 


Já faz algum tempo que a frase “liberal na economia e conservador nos costumes” têm sido escutada em diversas ocasiões e lugares diferentes: das redes sociais aos ministros que compõe o atual governo, passando obviamente pelas fake news que fizeram sucesso nas últimas eleições presidenciais. Mas o que exatamente significa essa frase e qual a relação dela com o atual governo? Nesse breve texto vou tentar responder a essas perguntas mais na tentativa de propor uma reflexão e debate que apresentando dados conclusivos

Já se passaram quase dois anos desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente da república, mas cientistas políticos, historiadores, jornalistas e diversos analistas ainda se perguntam a mesma frase que martelou na cabeça de todos os defensores da democracia naquele fatídico domingo de 28 de Outubro de 2018: como Bolsonaro se elegeu? Essa pergunta, que ainda não foi completamente respondida, já que as variáveis são muitas e é necessário um certo distanciamento dos acontecimentos para que algumas análises sejam feitas, tem toda relação com a pergunta que fiz anteriormente. O governo Bolsonaro é liberal na economia e conservador nos costumes, e foi assim que ele se apresentou nas eleições e assim ele foi eleito. Paulo Guedes foi o primeiro nome que Bolsonaro anunciou ainda durante as eleições que iria compor o governo. O currículo e fama de ultraliberal do chamado posto Ipiranga garantiu a Bolsonaro os votos da Faria Lima ou, em bom português, agradou o mercado. A elite econômica do país apoiou a eleição de Jair Bolsonaro porque o ultraliberal Paulo Guedes era a garantia de que todas as reformas seriam aprovadas. Esse apoio confirmou e escancarou diante de todos que não há por parte dos mais ricos do Brasil compromisso com a democracia, com a Constituição, com os direitos humanos e nenhum valor civilizacional. Eles que já tinham apoiado o golpe contra a presidenta Dilma Roussef dois anos antes, só reafirmaram que o que lhes interessa em qualquer situação é o quanto vão lucrar. Não importa se para isso a pobreza vai aumentar, o número de desempregados vai crescer, o número de pessoas em situação de rua também, se a vergonhosa desigualdade social brasileira vai aumentar, se há risco de golpe militar, se a constituição será rasgada, se a Amazônia será queimada, se Bolsonaro faz afirmações violentas e absurdas sobre todos que não são como ele: homens, héteros, brancos e ricos, ou, se fala coisas que ofende e discrimina mais da metade da população em tom de menosprezo e deboche. Nada importa desde que os bilionários fiquem mais bilionários.

Acontece que a agenda política do Bolsonaro não é apenas ultraliberal, mas também extremamente conservadora, autoritária e retrógrada: as pautas identitárias, que interessam às minorias – mulheres, negros e LGBTs – já eram anunciadas aos quatro ventos que não só não avançariam, mas também, se possível, teriam direitos já adquiridos retirados. Não à toa que o maior movimento contra Bolsonaro durante as eleições foi o ato “Ele não” organizado nas redes sociais pelas mulheres e que encheu as ruas de diversas cidades do país. A outra identidade do governo Bolsonaro é o conservadorismo religioso da bancada evangélica, que não é composta apenas por Deputados oriundos de Igrejas evangélicas, mas também católicos, espíritas e simpatizantes. A ministra que representa essa segunda agenda é Damares Alves do Ministério da Mulher, família e direitos humanos. Vale ressaltar que até o governo passado se chamava apenas Ministério dos Direitos Humanos, o que significa que família é uma pauta importante nesse governo e a minha hipótese é que neste ponto está a união entre o liberalismo e o conservadorismo. Se afirmar liberal na economia e conservador nos costumes faz todo sentido.

Damares que chocou a quase todos no começo do governo Bolsonaro narrando diálogos no pé de goiaba com Jesus e afirmando no dia de sua posse como Ministra que nesta nova era “menino veste azul e menina veste rosa,” e por algum tempo teve seu papel no governo classificado como “cortina de fumaça” porque sua função seria distrair a oposição e a população com suas afirmações inusitadas quando o que interessa de fato – leia-se as reformas na economia – estaria sendo aprovado sem ninguém perceber, na verdade ela é tão quadro técnico neste governo quanto Paulo Guedes. As pautas da Damares não são menores, os votos que Bolsonaro conseguiu através dos grupos que se sentem representados pela Damares não são poucos, e mais do que isso, não são opostos aos interesses do Paulo Guedes.

Quando Damares afirma que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, ela constrói numa frase simples a narrativa de que homem é homem e mulher é mulher, logo, a pauta de gênero dos movimentos feministas e LGBTs não tem espaço. Quando seu ministério reivindica na nomenclatura a palavra família, ela sinaliza para os religiosos e outros grupos conservadores que família é aquele modelo tradicional de pai, mãe e filhos, e o que estiver fora desse modelo de família é “ideologia de gênero”. Uma leitura simplista que esvazia toda a discussão sobre gênero e sexualidade, afirma que esta ideologia existe e tem interesse principalmente nas escolas porque ali pode influenciar e formar sujeitos para que se tornem gays, trans ou feministas que rejeitam o lar, o casamento e a maternidade. Não é meu objetivo aqui explicar todo equívoco e projeto político que existe por trás dessa narrativa que surgiu dentro da Igreja Católica e nas últimas décadas ganhou espaço nos discursos de políticos conservadores de vários países, mas ela se encontra com o neoliberalismo no ponto em que o Estado ao diminuir e recuar no seu papel de promover políticas públicas, transfere o papel do cuidado para as famílias. Se não é o Estado quem vai garantir aposentadoria e acesso à saúde para os idosos, alguém tem que fazer isso. Se o Estado não garante creches e escolas para as crianças, alguém tem que cumprir esse papel, e esse alguém serão os membros das famílias. Por exemplo, quando argumentam que quem educa é a família e a escola serve apenas para passar conteúdo, o tempo e as funções da escola são reduzidas. Se professor não é educador porque “quem educa é a família”, essa escola é perfeita para o modelo neoliberal, ela é mais barata, mais pobre e custa menos dinheiro nas políticas públicas para educação. Da mesma maneira, convencer a sociedade que as feministas são “mal amadas” e não querem casar, é um discurso perfeito para manter as mulheres presas na estrutura patriarcal do casamento onde o papel do cuidado com a casa, os filhos e o marido recai sobre a mulher. Esse trabalho não remunerado feito pelas mulheres, é trabalho, e retira responsabilidades do Estado.

O discurso feminista e de gênero atrapalha esse projeto neoliberal na medida que revindica do Estado condições igualitárias para as mulheres, sobretudo para as que são mães possam trabalhar e estudar. Afirma e reivindica que as mulheres são donas dos seus corpos e devem decidir se querem ou não ter filho, se querem ou não ser mãe, casar, e assumir todo papel do cuidado que na nossa sociedade patriarcal ainda é delegado às mulheres. As pautas de identidade de gênero também reivindicam que pessoas do mesmo sexo possam casar, se relacionar e amar, possam ser o que quiserem ser. Essa liberdade de ser quem se é, de ser quem quiser ser, é lida como um individualismo que esvazia e atrapalha o consenso que os ultraliberais gostariam que tivesse na sociedade, aquele que diz que o país vai bem quando a economia vai bem.

Obviamente que o discurso público tenta mascarar as perversidades de cada reforma, fala em desoneração, flexibilização, família, “Deus acima de todos”, mas sabemos bem que por trás o que existe é o esvaziamento de direitos para os trabalhadores, a precariedade na vida e no trabalho da maioria dos brasileiros, a conivência com as inúmeras violências que acontecem dentro do espaço doméstico e são sofridas por mulheres, crianças e LGBTs. Não à toa, Paulo Guedes naquela reunião ministerial que foi ao ar depois do rompimento do ex-ministro Sérgio Moro com o presidente Jair Bolsonaro, falava de contratar jovens aprendizes – leia-se jovens pobres – para trabalharem em obras de reconstrução do país, como estradas, ganhando R$200,00, tendo aulas de Organização Social e política do Brasil – OSPB, disciplina escolar do período da ditadura militar – para aprenderem a ter disciplina. Ter disciplina leia-se trabalharem ganhando pouco sem reclamar e se possível agradecendo a Deus a benção alcançada de ter algum trabalho.

Se Damares não é cortina de fumaça, mas ao contrário, é base deste governo, porque suas pautas são fundamentais para garantir votos e apoio, tampouco Paulo Guedes é apenas corpo técnico, mas também e, sobretudo, parte da ideologia conservadora que é necessária para levantar a bandeira de Deus e família com ar de quem tem as melhores das intenções mas responsabiliza, violenta e massacra os indivíduos. Liberal na economia e conservador nos costumes é antes de tudo, um projeto que a fim de garantir todas as liberdades para o mercado, retira dos indivíduos a necessária liberdade de serem quem quiserem ser.



Referências:

CÁSSIO, Fernando; FILHO, Marco Antônio Bueno. “Professor”de Jair, Paulo Guedes é o mais bolsonarista dos ministros. Blogosfera.uol, 2020. Disponível em: https://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2020/07/08/professor-de-jair-paulo-guedes-e-o-mais-bolsonarista-dos-ministros/ Acesso em 15 Set. 2020.


G1- Política. Veja as propostas de Paulo Guedes, assessor econômico da campanha de Jair Bolsonaro. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/21/veja-as-propostas-de-paulo-guedes-assessor-economico-da-campanha-de-jair-bolsonaro.ghtml Acesso em: 15 Set. 2020.


MIGUEL, Luís Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero" - Escola Sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis revista. v.7, n.15, Rio de Janeiro, p.590-621, 2016.


PAINS, Clarissa. ‘Menino veste azul e menina veste rosa’, diz Damares Alves em vídeo. O Globo, 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024 Acesso em: 15 Set. 2020.


PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Entrevista: “Damares e Guedes são parte do mesmo projeto político”, diz pesquisador. The Intercept Brasil, 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/09/01/entrevista-lucas-bulgarelli-damares-guedes-conservadorismo/ Acesso em: 15 Set. 2020.






quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Sérgio Buarque e a reforma administrativa do governo Bolsonaro

Escrito por Carolina Gagliano (Técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE)

 

 

VEJA – De qualquer modo, não há jeito de escapar da ideologia?

 

SÉRGIO BUARQUE – Não. E é engraçado observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou, devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte – a Regência – os grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837, opondo-se aos moderados[1]

 

 

A entrevista cujo trecho foi reproduzido acima se deu 40 anos após a publicação mais conhecida do historiador Sérgio Buarque de Holanda, o livro Raízes do Brasil. Em que pese as críticas que podem e devem ser feitas, com a devida justiça de que aquelas mais mordazes possuem décadas de observação a frente do autor, é bastante difícil a qualquer estudioso do Estado brasileiro ficar indiferente a esta obra.

Provavelmente isso se deve ao fato desta ser uma das primeiras obras que pretende pensar as possibilidades democráticas num país que, apesar de jovem, já conta com experiências bastante traumáticas, como quase quatro séculos de escravidão e um autoritarismo arraigado nas suas estruturas de poder.

A partir de uma perspectiva weberiana, Sérgio Buarque parece bastante otimista em relação ao desenvolvimento de instituições democráticas que superassem tanto a dominação do tipo tradicional, resultante de um sistema patriarcal altamente hierarquizado, quanto o patrimonialismo, que não diferencia as fronteiras entre público e privado e faz com que os negócios de Estado se assumam na prática como negócios particulares.

Aliás, cabe ressaltar que a burocracia na visão de Max Weber está longe de ser o estereótipo firmado pelo senso comum de um corpo engessado, redundante e inoperante, que dificulta a vida do cidadão comum. Ao contrário, para o sociólogo alemão seria aquela um corpo técnico qualificado, organizado hierarquicamente e submetido a normas de conduta devidamente prescritas, a exercer autoridade do tipo racional-legal sobre a organização – estatal ou não (Oliveira, 1970). 

Tais ideias, inclusive, influenciaram a reorganização da administração pública na década de 1930.  Em 1938, no governo Vargas, é criado o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de implantar uma Administração Pública burocrática no sentido weberiano, baseada na técnica e que superasse as relações patrimonialistas predominantes no trato com as questões públicas.

Posteriormente, e não por coincidência, em plena ditadura militar, o Decreto-Lei 200/1967 introduz a descentralização das atividades estatais por meio de dois tipos de administração: a direta e a indireta (através de autarquias, fundações, empresas de economia mista etc.). O argumento utilizado era a busca de uma racionalização e eficiência do Estado.

A Constituição Federal de 1988, bem como a legislação ordinária que se seguiu, avança no combate a práticas coronelistas e clientelistas, com a instituição, por exemplo, do concurso como via de admissão padrão ao serviço público e a estabilidade para os servidores com pelo menos cinco anos no cargo até então, além do estágio probatório para os futuros admitidos, previstos no regime jurídico único (RJU). O concurso até então era aplicado somente a algumas carreiras como as jurídicas, diplomáticas e das Forças Armadas. Ademais, a Carta Magna institui quatro princípios para a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade.

Na década seguinte, é instituída a Emenda Constitucional 19/1998, conhecida como Reforma Bresser-Pereira. O princípio da eficiência é acrescido aos quatro já instituídos, o que já diz um pouco sobre o fortalecimento de um viés liberalizante de enxugamento e demarcação do Estado enquanto regulador ao invés de executor, expressado na ideia de resultados com o menor custo possível.

Utilizemos esse breve histórico para trazer à lume a novel proposta de emenda à Constituição (PEC) 32, que trata da reforma administrativa no serviço público. Ela foi encaminhada pelo Poder Executivo para apreciação e votação pelo Legislativo (Câmara e Senado) no dia 2 de setembro de 2020.

O projeto contido na PEC 32/2020 talvez seja a mudança mais radical proposta desde a Constituição de 1988; não por seu caráter inovador, mas por romper com a lógica cidadã de direitos sociais contidos na Constituição, e retroceder exatamente na busca pela eliminação do patrimonialismo, que vinha sendo uma constante nas alterações normativas até então.

Partindo da premissa no mínimo questionável, para não dizer falsa, de que o Estado é ineficiente e gasta demais com servidores e, por isso, teria poucos recursos disponíveis para investimentos, a proposta pretende alterar as formas de ingresso e os vínculos de contratação para o serviço público, bem como retirar direitos e facilitar a exoneração dos servidores, aumentar o poder discricionário do chefe do Executivo na contratação, criação, transformação e extinção de cargos, ministérios, secretarias, fundações e autarquias e também incentivar a execução dos serviços públicos por contratos de desempenho a serem firmados com a iniciativa privada.

O objetivo fundamental é a redução das atribuições do Estado, apesar do verniz discursivo sobre ganhos de produtividade e eficiência. As consequências de tal medida vão muito além da precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, mas atinge todos os cidadãos, que em maior ou menor medida demandam serviços públicos de qualidade.

Como descrever a proposta em suas minúcias poderia ser um exercício longo e enfadonho para os leitores, focaremos em dois aspectos que, na nossa avaliação, abrem um flanco para práticas patrimonialistas: a limitação da estabilidade e a criação dos chamados “cargos de liderança e assessoramento”.

Caso aprovada, cinco diferentes vínculos de contratação coexistirão na administração pública: vínculo de experiência, contrato por prazo indeterminado, vínculo de prazo determinado, cargo de liderança e assessoramento e cargo típico de Estado. A rigor, apenas os últimos gozarão de estabilidade, que será conferida somente após aprovação na avaliação de desempenho, cuja definição também aguarda legislação específica.

A PEC não define quais serão os cargos típicos de Estado, relegando essa tarefa a lei complementar posterior. Imagina-se, contudo, que poucas carreiras como aquelas relacionadas às atividades de Fiscalização, Arrecadação, Finanças e Controle, Gestão Pública, Comércio Exterior, Segurança Pública, Diplomacia, Carreiras Jurídicas, Regulação, Política Monetária, Inteligência de Estado, Planejamento e Orçamento integrarão esses cargos. As demais atividades técnicas, administrativas ou especializadas, ou seja, profissionais da saúde, educação e servidores que atuam no atendimento direto aos cidadãos, serão contratados na modalidade por prazo indeterminado, submetidos a – também indefinida por ora – avaliação de desempenho.

Apesar da previsão para a contratação por prazo indeterminado, a proposta amplia o poder discricionário do chefe do Executivo (municipal, estadual, distrital e federal) em criar, transformar e extinguir os cargos de liderança e assessoramento, que seriam os atuais cargos comissionados ampliados, retirando a preferência de que estas funções sejam ocupados por servidores concursados.

Temos a seguir uma amostra de como esta reforma pode ser, na prática, desastrosa para retomarmos antigas práticas patrimonialistas de loteamento dos cargos públicos, bem como de punição daqueles que se mostrarem críticos à administração, a despeito de um discurso que fala em modernização, agilidade e eficiência. Tais práticas já estavam descritas em 1936 por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Dizia ele:

 

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização — que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades — ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.

Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial” , a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. (Holanda, 1995, pp.145-146)

 

Interessante notar que dentre as inovações propostas estão também a inclusão de novos princípios para a administração pública, dentre eles o princípio de subsidiariedade, cujas origens remontam à doutrina social da Igreja no final do século XIX. Em suma, por este princípio, “o Estado só deve atuar quando o particular não tiver condições de atuar sozinho, hipótese em que deve estimular, ajudar, subsidiar a iniciativa privada.” (Di Pietro, 2019, p. 104). A inserção deste princípio na Constituição nos parece ter um caráter muito mais a imposição de um ideário liberal do que propriamente a constatação histórica de avanços de desenvolvimento e bem-estar das pessoas a partir de sua aplicação. Como bem nos relembra a professora Marilena Chauí:

 

Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais ideias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas. (Chauí, 1980, p.5)

 

Pensando que este espaço tem por nome “Diálogos do fim do mundo”, nos parece bastante apropriada a discussão deste tema, pois em plena pandemia da COVID-19, o governo parece mais preocupado em transformar a máquina pública num loteamento político-ideológico do que cumprir devidamente com as funções de Estado na preservação da vida dos seus cidadãos.

Quando perguntado pela Revista Veja em 1976 se havia jeito de escapar da ideologia, Sérgio Buarque é categórico ao dizer que não. Como historiador que era, ao invés de desenvolver seu argumento baseado no momento presente, recorre ao passado imperial para exemplificar como alianças podiam ser construídas e posições, mascaradas, em função do momento político de temor da volta de Dom Pedro I por parte dos chamados “grupos dirigentes”. Qualquer semelhança com o Brasil de 2020 não nos parece mera coincidência.

Isso significa que Sérgio Buarque de Holanda estava errado em seu otimismo sobre a superação futura do Estado patrimonialista no Brasil? Em 2020, a resposta parece ser afirmativa. Todavia, um único ano nos parece muito pouco, em termos históricos, para fazer qualquer afirmação mais contundente sobre a disputa hodierna e futura em torno do Estado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ANDRADE, C. C. V.. Autoritarismo e descentralização: as percepções sobre o Estado na ditadura militar brasileira. In: XXI Encontro Regional de História: História, Democracia e Resistências, 2018, Montes Claros. XXI Encontro Regional de História: História, Democracia e Resistências, 2018. p. 1-9.

 

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição 32/2020. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C1EA9E424D42EC4EBF59542B3EAFE798.proposicoesWebExterno2?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020

 

BRESSER PEREIRA, L. C. A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Lua Nova, São Paulo, n. 45, p.49-95, 1998. Disponível em  <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000300004&lng=en&nrm=iso>.

 

CHAUÍ, M.. O que é ideologia. —. 2. ed — São Paulo : Brasiliense, 1980. Digitalização em 2004.

 

DI PIETRO, M. S. Z. Direito administrativo. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

 

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 1995

 

OLIVEIRA, G. A. A Burocracia Weberiana e a Administração Federal Brasileira. R. Adm. públ., Rio de laneho, 4 (2): 47-74, jul./ dez. 1970.

 

OLIVEIRA, L. H. H. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda: do patrimonialismo à democracia. Revista Mediações (UEL), UEL, v. 2, n.2, p. 27-32, 1997.

SÉRGIO Buarque de Holanda.- Entrevista de 1976. Blog Café com Sociologia, 2012. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-de/. Acesso em: 16 set 2020.

SILVA, T. A. Conceitos e evolução da administração pública: o desenvolvimento do papel administrativo. Anais do VIII Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional (2017). ISSN: 2447-4622

 

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.



[1] Trecho da entrevista com Sérgio Buarque de Holanda publicada originalmente na Revista Veja, em janeiro de 1976 e republicada em setembro de 2003. Disponível em https://cafecomsociologia.com/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-de/

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A vida no mundo “pós” pós-pandemia

Escrita por Leonardo Almeida da Silva (Sociólogo e Cientista Político. Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT-Cáceres).

 

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Eduardo Galeano

 

            O sociólogo Boaventura de Sousa Santos costuma dizer que cientistas sociais, no geral, antes de terem conceitos mais consolidados ou melhor elaborados sobre um certo fenômeno ou acontecimento, tendem a colocar o prefixo “pós” naquilo que é novo e, por consequência, ainda desconhecido. Dizer “pós”-“alguma coisa” é indicar que se trata de um fenômeno sobre o qual ainda há muito mais desconhecimento do que conhecimento a respeito. Geralmente trata-se de fenômenos sociais que já existem e influenciam a vida em sociedade, mas seguem como que ávidos por dossiês em artigos de revistas científicas para discuti-lo, pôsteres e mesas-redondas em Congressos e até mesmo teses, livros e profissionais que dediquem suas carreiras ou parte delas a compreendê-lo. E assim poderíamos falar da “pós” modernidade, da “pós” democracia, “pós” qualquer outra coisa. Peguemos o “pós-Guerra”, por exemplo. Era inicialmente um termo para designar um mundo que seria diferente de antes e durante a II Guerra Mundial, contudo, não se sabia ainda o mundo que restaria e ressurgiria após 1945. Bastava, portanto, colocar o “pós” para designar um momento e uma realidade diferentes e ainda desconhecidos, do qual a única certeza inicial era a de que seria diferente daquele passado ainda bem recente. Desse modo, atualmente, 75 anos depois, “pós-Guerra” tornou-se uma ideia, ou mesmo um conceito, muito mais preciso e consolidado do que em finais da década de 1940.

            Entretanto, os grandes acontecimentos históricos geram muito mais do que discussões, debates, livros e linhas de pesquisa acadêmicas. Eles impactam decisivamente a vida em sociedade, a economia, as instituições. Alteram as expectativas e provocam reações, perdas e prejuízos, bem como podem acarretar em ganhos para alguns e na inexorabilidade de transformações sociais que serão negativas para outros. A grande questão é que, se acerca de um fenômeno novo, mesmo os cientistas sociais ainda não conseguem descrever suas características e abrangência com muita precisão, que dirá o conjunto da sociedade, o qual vive – de modo muito diferenciado entre si – o antigo e o novo, o “atual” e o “pós” sem fronteiras espaço-temporais definidas. Assim sendo, é a partir da compreensão de que há uma fusão do mundo pandêmico com o “pós-pandêmico” neste ano de 2020, um espaço-tempo alargado e indeterminadamente prolongado, que arriscamos essa reflexão.

            Dito isto, decorre que perguntamo-nos incessantemente: o que será do mundo e de nossas vidas após essa pandemia de escala global, em um mundo que parecia se tornar cada vez mais conectado? É possível arriscar uma série de mudanças e transformações em diversas áreas da vida em sociedade e não iremos nos furtar de apontá-las. Contudo, o que talvez haja de mais novo e característico em termos de mudanças em curso, seja o imediatismo para que tais transformações sejam apontadas, catalogadas e definidas. Quem se dedica a estudar o comportamento humano busca descortinar o mundo pós-pandemia com o mesmo vigor que cientistas, médicos e pesquisadores da área da saúde buscam uma vacina. Ainda poucas semanas após a Organização Mundial de Saúde elevar no dia 11 de março o avanço da contaminação pela Covid-19 ao estado de pandemia, muitos de nós já nos debruçávamos em pensar como seria o mundo pós-pandemia. E cá continuamos, seguindo e fazendo o mesmo!

            Para muitos de nós, os efeitos da pandemia – fossem, por exemplo, na área de educação ou mesmo em relação ao comércio – resultariam de um período de isolamento social mais ou menos prolongado: alguns dias ou semanas de aulas seriam perdidos, bem como certas compras e eventos que já estavam programados precisariam ser adiados por algumas semanas ou meses. Só que, nestes pontos, não demorou muito para percebermos que estávamos enganados.

            Classe, raça e gênero, sim, tornaram as consequências da contaminação pelo vírus e os efeitos do isolamento social e da retração econômica mais intensos para determinados segmentos das mais variadas sociedades mundo afora, seguindo o padrão das estruturas de desigualdade pré-existentes e impactando de maneira mais decisiva trabalhadores informais, refugiados, mulheres, pessoas em privação de liberdade, povos tradicionais, idosos, negros, dentre outros. Assim, o ano de 2020 abre e fecha janelas de oportunidades e possibilidades ambíguas e bifurcadas em várias áreas e na maioria dos países do mundo ao mesmo tempo. Por mais complexo que seja não resistirmos ao imediatismo e aderirmos à onda de precisar como seria esse “pós”, podemos aqui nos arriscar a falar de algumas áreas e alguns destes efeitos e das descobertas que já acreditamos termos feito nessa fusão que compulsivamente promovemos entre a pandemia e o seu dia seguinte, caso haja.

            Para dar exemplo, vamos priorizar e falar primeiro da educação. Se em relação à saúde aconteceu e ainda acontece de pessoas serem submetidas a um tratamento com cloroquina, medicamento sobre o qual estava comprovado apenas seus efeitos colaterais e em nada os efeitos desejados, na área de Educação se aplicou um similar malabarismo mental na proposição da educação ou ensino à distância, o EaD: “se não há provas de que funciona, também não há provas de que não funciona”. Neste sentido mesmo que o ano letivo de 2020 não termine, a aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio ocorrerá em janeiro de 2021, tendo sido adiada, após muita pressão popular, em cerca de dois meses apenas. Na Educação Básica e Superior, instituições privadas correram para implementar sistemas de ensino remoto para não deixar os seus clientes sem receber seus serviços e continuar com a cobrança de mensalidades. Quanto às instituições públicas de ensino, já precárias em tempos não-pandêmicos, continuaram a deixar os jovens de classes populares para trás – agora turbinado pelo viés da desigualdade do acesso às tecnologias de informação e comunicação – o que vamos notar que impactará seriamente indicadores de qualidade como a evasão e retenção de alunos.

            Contudo, esse otimismo ingênuo do “pós” abriu uma janela para que vislumbrássemos a importância do papel da escola e do professor para a sociedade. Muitos pais, mães e responsáveis, sobretudo os da classe média, passaram a conhecer melhor e mais de perto seus filhos: aquelas crianças e jovens com quem conviviam muito pouco tempo, mesmo nos finais de semana e nas férias, mas que agora estavam ali, em tempo integral e em jornada tripla, necessitando de seu suporte, ao mesmo tempo em que se descobre que o mundo moderno nos fez acostumar com residências demasiado pequenas, resultado da especulação imobiliária e de tamanho tempo que desperdiçamos fora de casa, seja no trânsito, ou realizando atividades para complementar a renda, em especial nos grandes centros urbanos. Muitos de nós acabamos por descobrir que nossas residências não foram feitas para que nós passássemos o dia inteiro – acordados, estudando, trabalhando e acompanhados – nelas. Que dirá ainda das famílias de mais baixa renda nessas mesmas grandes cidades, onde as residências são muito menores e com precariedades, como a escassez de serviços básicos, além da violência, muito maiores, e necessitando realizar o isolamento social e manter a renda familiar da mesma forma, mas com condições materiais praticamente inviáveis.

            Se o reconhecimento às professoras e professores for para além dos parabéns e homenagens no dia 15 de outubro, caso se dê em termos concretos, ou seja, na garantia do direito à formação continuada, na valorização da carreira e do salário, em melhores condições de trabalho e na possibilidade de se dedicar a uma única escola, por exemplo, temos grandes chances de avançar. Porém, dados os mais de 5600 planos de carreira para professores e profissionais da educação que temos nas nossas três esferas de poder, tal valorização só seria possível a partir de um debate mais aprofundado sobre a federalização da carreira docente de norte a sul do país, mas até agora, o mundo “pós-pandêmico” ainda não parece preparado para essa conversa.        

            Já em relação à economia, o imediatismo do “pós” nos levou a perceber consensos importantes a respeito da participação do Estado na economia. Digamos que, se o ideário neoliberal correspondesse a papéis ou ações no mercado financeiro, nesse momento, ele estaria passando pela sua maior desvalorização e tendência de queda na história. Nosso desastre é que ocorre que o Brasil segue, em alguma medida, como que comprando esses títulos podres do neoliberalismo, quando busca dar prosseguimento a uma tal “agenda de reformas” extremamente anacrônica que visa atrair investimento de mercados privados, mas que na prática só enfraquece a prestação dos serviços públicos mais elementares e mantém a concentração da renda e a hegemonia do capital concentrado basicamente em cinco instituições financeiras.

            Grande parte dos países da Europa e a China, por exemplo, não foram nessa linha. Nosso dilema segue porque, comprovadamente, os dogmas do neoliberalismo não têm capacidade nem instrumentos para superar essa crise. Nesse sentido, a fusão do mundo pandêmico com o pós-pandêmico demonstraram que “não há alternativa”: precisamos de uma regulação global emergencial e coordenada do capital, para que se contenham outras tragédias, como a atual, do colapso dos sistemas de saúde, do colapso (e não “mudanças”) do clima, além do colapso social legado pela concentração de renda crescente nas últimas quatro décadas de prevalência da ideologia neoliberal. Contudo, e mais uma vez, as condições sociais e políticas do Brasil “pós-pandêmico”, não nos prepararam ainda suficientemente para esta conversa. Ao menos o debate sobre uma renda básica de cidadania, sobretudo a rapidez com que este chegou à cena pública, foi uma grata surpresa. Contudo, este pode e deve vir acompanhado de um debate mais amplo sobre a necessidade da progressividade no sistema tributário e a uma noção de proteção e seguridade social mais ampliada.

            Pra não dizer que não falamos da saúde. O debate nesta área tem eixos importantes sendo deslocados nesse momento. O mais importante julgo que seja o fato de que os negacionismos, mesmo que não saiam derrotados, de certo modo são colocados em quarentena. O desejo por uma vacina ou mesmo a preocupação com comorbidades modificam a cena que tínhamos em mente acerca do “antigo normal”. Que isso se desdobre em demandas por políticas públicas de saúde eficazes, valorização profissional e democratização das carreiras médicas, enfim, na consolidação de sistemas de saúde públicos, universais e gratuitos é algo que a vida no mundo “pós-pandêmico” nos permite sonhar discretamente de modo mais concreto, dado que a crise atual começou e precisa terminar através de descobertas e do fortalecimento de áreas da saúde. 

            Em síntese, a pandemia do novo coronavírus trouxe consigo e disseminou talvez até em maior intensidade e abrangência, o medo. Seja o medo de perder a vida ou um ente querido ou mesmo o emprego ou boa parte da renda. O medo traz incertezas porque desestabiliza expectativas, faz cancelar projetos pessoais e mina utopias, em que pese um pseudo-otimismo por parte dos brasileiros[1] por um mundo melhor após a pandemia. Acontece que pessoas com medo e minadas por incertezas, não mudam o mundo, pois se ocupam menos com sonhos e com utopias. Pessoas com medo não recuperam a economia. E muitos, mesmo que neguem e não demonstrem o medo da contaminação pelo vírus – com ou sem “histórico de atleta” – tem medo de começar a ter que ter medo do vírus, caso a própria pessoa, ou alguém próximo, ou mesmo sua vida financeira, venham a ser afetadas e até mesmo destruídas pelo vírus que ainda não passou, mas que segue fora do controle, por mais que ele e seus efeitos se tornem conhecidos a cada dia.

            De certo modo, a fusão da pandemia com a pós-pandemia uniu o presente ao futuro e antecipou diversas distopias, como a da predominância de novas tecnologias sobre todas as áreas da vida ou mesmo o dos negacionismos científico e social. Ao contrário de fatalismo, imobilismo e paralisia, a antecipação destas distopias podem nos levar ao limite de que, se não temos mais expectativas de que as mudanças podem ser promovidas de modo gradual e seguro – o que significa mantendo aquelas estruturas de desigualdade pré-existentes – insurgências mais abruptas podem se colocar como alternativas mais (ou unicamente) viáveis. Em um mundo de incertezas é mais provável querermos arriscar, dado que temos pouco a perder. Se, de repente, mudaram as perguntas quando pensávamos que tínhamos todas as respostas, parafraseando Eduardo Galeano, visualizamos que inclusive nossas respostas, na verdade, estavam erradas. Além de a distopia da fusão entre pandemia e “pós-pandemia” demonstrar que as nossas respostas estavam erradas, mostra também que ainda não sabemos muito bem as perguntas. Trabalho para os historiadores do século XXII quando olharem para nossa época. O que eles depreenderão de nós dependerá, em larga medida, das utopias que hoje ainda conseguimos enxergar para não deixarmos de caminhar e seguirmos para uma era ou uma forma de sociabilidade que seja digna de ser chamada muito mais do que de “pós”.

 

 



[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/73-dizem-que-serao-pessoas-melhores-no-mundo-pos-pandemia-mostra-datafolha.shtml Acesso em 07/09/2020.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Governamentalidade perversa em tempos de pandemia: o empuxo ao pior

 


Bárbara Breder Machado(UFF)[1]

Texto revisado por: Flávia Mendes (UFF) e  Dulcinéia Medeiros (UDTF)

 

 

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 50 mil mortos e ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados.[2] (...)

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 62 mil mortos pelo COVID-19 e ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados[3] (...)

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 120 mil mortos pelo COVID-19 e ultrapassa a barreira de 3 milhões de infectados[4].  (...)

 

Este ensaio foi escrito em três meses e, neste processo, a retificação dos dados objetivos do número de mortos pela COVID-19 no Brasil não foi apenas um simples ato de atualização para referenciar o presente trabalho. É, em si mesmo, um analisador. Pois, ainda que os números comprovem o aumento substancial de produção de cadáveres neste átimo temporal, as praias do Rio de Janeiro seguem batendo recorde de banhistas. Período, no qual deveríamos estar, segundo normativas da OMS, em isolamento social. Porém, os bares e restaurantes reabertos no Rio de Janeiro, estão lotados de clientes aglomerados que dispensam máscaras e ignoram os protocolos sanitários. Cenário que se repete em diversas outras cidades pelo Brasil.

Longe de ser falta de informação ou acesso ao conhecimento, queremos defender aqui o argumento de que a conduta destes indivíduos corrobora o encaminhamento genocida da política brasileira. E marca o acirramento do que aqui pretendemos esboçar a partir da senda foucaultiana como governamentalidade[5] perversa.

Pareados como uníssono nas afirmações cínicas: - “E daí?”/  “eu não sou coveiro” / “pessoas morrem”[6]/ “vou abrir o comércio, morra quem morrer”[7] estas frases fazem reativar a análise Arendtiana sobre o julgamento de Eichman em Jerusalém e traz à cena a noção da banalidade do mal, a qual Roudinesco, retoma para pensar a partir de Freud a localização no psiquismo um universal da diferença perversa em cada um.

Retomando as análises de Zizek pretendemos dar algum contorno possível para a compreensão da lógica cínica de operação que coloca em cena o discurso perverso, tal como Lacan o concebe. Abrindo-nos a possibilidade de reler a afirmação freudiana de que a neurose é o negativo da perversão. E que, por isso, o pior captura a todos nós, na medida em que, trata-se de uma parte obscura de nós mesmos[8]. De algum lugar, opera em nós e orienta nossas condutas, para além da racionalidade (a tempos destituída de seu lugar central da motivação humana). “os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos” (Roudinesco, 2008, p.13)

Para iniciar a articulação das chaves teóricas aqui postas, partiremos da célebre troca de correspondência entre Freud e Einstein no período do fim da segunda grande guerra. O físico recorria ao psicanalista para entender o motivo que levou a civilização retornar ao nível da barbárie, e consultava sobre possíveis medidas profiláticas para que não viéssemos mais enquanto sociedade a descer a estes níveis. Convocação esta a que Freud responde que, na verdade, a civilização nunca esteve em condição elevada e que nos habita o empuxo a destruição e a agressividade.

 

Destaco aqui algumas passagens:

 

Questões que Einstein coloca a Freud:

 

“Este é o problema: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra (...) Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando”. (30 de julho de 1932)

Resposta de Freud a Einstein:

“Passo agora a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, de que neles exige em atividade alguma coisa um instinto de ódio e de destruição que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um pulsão dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. (...) Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada (...) Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. (...) A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha” (setembro de 1932)

 

Se outrora, Freud, em seu tempo recebera a “alcunha” de pessimista, para nossos, poderíamos classificá-lo como realista. Pois sua obra soube pontuar aquilo que temos tentado, sem sucesso tamponar, e de certo modo “esconder”, sobre o pretenso racionalismo, celebrado pela perspectiva da rational choice. Não somos motivados somente pela consciência, o aparelho psíquico não se reduz a razão. A segunda tópica freudiana indica que grande parte da psique humana é inconsciente.  O ódio nos habita, (também) nos forma e conduz nossas ações, localizado através do constructo teórico denominado pulsão de morte. E é ela quem conduz os corpos bronzeados na beira da praia, enquanto milhares de outros se fecham em covas. É ela quem ilumina os rostos sorridentes, vívidos de uma euforia patológica nos bares, enquanto um universo incontável de famílias choram seus mortos.

 

“a pulsão destruidora, dizia Freud é a condição primordial de toda a sublimação, uma vez que é característica do homem –se é que esta existe – não é senão a aliança do próprio homem, da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização, uma espécie de passagem da natureza à cultura. (Roudineco, 2008, p. 100)

 

Aqueles que rompem a quarentena por escolha[9] e circulam nas vias públicas não parecem apresentar qualquer indício de culpa, dado que ali estão e publicizam através de posts nas redes sociais os “rolês de quarentena”. Querem ver-se sendo vistos. Isto faz parte do jogo da pulsão escópica, tal como o gozo exibicionista. Parecem não temer ou se importar pela transgressão da lei, sem qualquer remorso publicam suas fotos e denunciam, eles mesmos, seus atos transgressores. Deliberadamente se transformam em vetores, disseminadores de vírus numa lógica “homem-bomba” de flerte com a morte.

Fomentados pelo discurso em empuxo ao pior, lançam-se em um jogo macabro muito similar ao de “roleta russa”, a espera que a sorte ou azar o atinjam, arriscam-se e agudizam a vulnerabilidade daqueles que estão em grupo de risco. O racismo aí se expõe como intensidade, tal como o etarismo e o elitismo que insistem em legitimar através de seus discursos e práticas como vidas nuas, corpos matáveis: Trabalhador, negro, pobre, mulheres, moradores de periferia. E na esteira, os trabalhadores da linha de frente do combate ao covid-19. E isto sem culpa ou mínimo constrangimento.

O que nos indica que os referenciais simbólicos da lei sofreram grave erosão, ruíram como areia (tal como a da praia), diante de nossos olhos, não sendo mais capaz de estabelecer efeito de freio ao gozo. Elemento necessário para a vida em sociedade.  A transgressão tem via aberta, à luz do dia, sem pudor ou sanções. Cenário que se abre pela gestação da pandemia realizada pelo viés genocida.

Enquanto os demais países realizam a gestão da crise, aqui testemunhamos atônitos e inibidos, a gestação da crise e sua transformação em verdadeira arma biológica. E a correlata produção do terror, terreno instável, insegurança, medo e vulnerabilidade que produzem o cenário profícuo para o crescimento de medidas autoritárias. E encontra porto e ressonância na multidão, que deliberadamente opera como vetor e arrisca-se na curva de pico de contágio. Sem política pública, que direcione ao coletivo, sem balizas, que oriente as condutas e desejos ao bem comum, orientada pela pulsão de vida, o que resta é a lógica perversa.

Freud localiza que uma das funções da castração, além da renúncia pulsional, é a união do desejo à lei, abrindo possibilidade da vida em sociedade. No caso em tela, percebemos que a um certo desatar deste laço civilizatório  e o desejo não se encontra mais balizado pela lei, em efeito, abre-se em seu lugar à via franca à transgressão. Funcionamento clássico da perversão, enquanto estrutura clínica.

O perverso, diferente do neurótico não abre mão do prazer, recusa-se a submeter-se, em resposta atua com o mecanismo do desmentido e não da aceitação do recalque como ocorre na estrutura neurótica.  “O perverso dedica-se ao menos em fantasia ser objeto do gozo do Outro” (Fink, p.144, ano)

Não é verdadeiro afirmar que a aqueles que se recusam ao isolamento social ao romper um pacto de responsabilidade coletivo, sejam em suas estruturas clínicas, perversos, em absoluto. Isto seria psicologizar gravemente a questão. Nosso questionamento está centrado na afirmação freudiana de que a perversão sendo o negativo da neurose é “ativada” ou “acionada” em tempos em que os referenciais simbólicos estão em derrocada, dado o direcionamento da governamentalidade que opera como discurso perverso. O que promove o desatar o desejo da lei e produzindo graves conseqüências sociais, na medida em que, direciona condutas orientadas pela pulsão de morte. Logo, em oposição à construção e as expectativas civilizatórias.

Assim, o que a psicanálise proporciona é uma desnaturalização dos processos humanos que não são regidos somente pela ordem biológica, mas que respondem a outros domínios. Neste sentido, a inserção do homem na chamada “civilização”, não se faz sem ônus para o indivíduo e para a própria sociedade, que é estruturada de forma artificial, assim como a lei. O que o perverso nos mostra é que esta estruturação é frágil e pode ser ultrapassada a qualquer momento, suspendendo qualquer ilusão, que insistimos em depositar na estrutura de ordenação social, na expectativa de sermos salvaguardados das intempéries da natureza, inclusive, das ações humanas. Portanto, se a constituição da psique é conflitiva e está estruturada em um domínio de tensão de forças, o espectro social também se formará sobre este terreno.

            Partindo do escopo teórico da psicanálise, encontramos em  Zizek a chave para compreensão da operação do cinismo. Ao ressaltar o caráter cínico do discurso da sociedade contemporânea, Zizek, aborda o papel da ideologia na sedimentação da realidade social. Para o autor, é a fantasia ideológica que estrutura a realidade. Isto quer dizer que, a realidade é estruturada, fundada e confeccionada através da fantasia, que por sua vez, emerge em resposta a instauração da lei social - com o encontro (sempre) traumático com o real. O que não podemos perder de vista é que a concepção de lei proposta por Zizek, é a pertinente ao campo psicanalítico, o que promove a entrada em cena de um escopo teórico peculiar, que nos é vital adentrar, a fim de compreender de forma sólida a correlação entre a fantasia e a ideologia.

            A fantasia política tem como função preencher certa lacuna deixada pela instauração da lei, ou seja, a instauração da falta no campo do Outro. Ou ainda, pela consolidação do campo simbólico, que promove a emergência do sujeito no campo humano propriamente dito. É importante ressaltar, que a instauração da lei, correlata a emergência da fantasia promove a regulamentação do gozo e a produção de verdade. Entretanto, devemos ter em mente o caráter inconsciente da fantasia, na medida em que, rege a realidade e atividade humana, em um desconhecimento constitutivo. Isto quer dizer que, existe um desconhecimento acerca da fantasia, sobre a qual pouco se pode saber. O desconhecimento consciente da fantasia é proporcional ao poder de conformação, da fantasia, que trabalha como uma “matriz psíquica, que funciona como uma espécie de filtro em relação ao mundo externo” (COUTINHO JORGE, 2010, pág. 10). 

Entretanto, na lógica cínica a operação se dá de forma mais específica, pois não se trata de um desconhecimento, o acesso ao saber está franco, porém este apresenta amalgamado com a verdade, aos moldes totalitários.  Em seu documentário “Guia pervertido da ideologia”(2012), Zizek formula esta relação com a fantasia da seguinte forma: “eles sabem o que fazem e por isso o fazem”. O que é consonante com a análise aqui proposta, tanto a questão pública quanto o cidadão que se recusa ao isolamento social como meio de combate à pandemia sabem o que fazem. “o discurso do mestre exclui a fantasia. É isto exatamente o que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego” (Lacan, p.114, 1992)

Desta forma, a lógica cínica, está articulada com o conceito lacaniano de discurso do mestre, que se estabelece em moldes perversos, ao submeter o outro a puro objeto. Neste caso, descartáveis e passíveis de serem aniquilados pelo covid-19.

Conceber como natural as mortes que poderiam ser evitadas seja pela aplicação de políticas públicas de gestão da pandemia, seja pela circulação voluntária no espaço público presentifica a necropolítica e fazer girar, portanto, a lógica perversa que promove a aniquilação do outro, rebaixado à dimensão de objeto.

Neste eixo, nos interessa o encontro que Mbembe faz girar entre o pensamento foucaultiano e o Arenditiano justo na localização da política da raça como o constructo que viabiliza o fomento da política da morte. Segundo o autor:

“Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é a “condição para a aceitabilidade do fazer morrer”” (p.18)

 

            Nosso grifo pretende destacar a condição de naturalização das mortes passíveis de serem efetivadas, que pode nos ajudar a compreender a expressão “novo normal” forjada no Brasil 2020. O que o momento pandêmico faz mover neste país está para além das conseqüências sanitárias decorrentes do cororonavírus. Estabelece-se aíuma espécie do retorno de um passado violento recalcado, que justamente por não ter sido elaborado, olhado de frente como empreitada coletiva, está destinado à repetição.

            Queremos sustentar nestas linhas que o racismo, a misoginia e o moralismo cristão, pilares do processo de colonização, e que pautam a negação da alteridade sustentam, ainda hoje, o discurso de ódio que permite a naturalização das vidas tidas como “indignas de serem vividas”. A lógica da governamentalidade perversa que se impôs como na esfera política é, ao mesmo tempo, fruto destes vetores enraizados na subjetividade brasileira que se fez hegemônica e, também, fruto desta.

Ou seja, se por um lado a entrada do bolsonarismo no poder se deve ao efeito catalisador destes vetores de ódio que pululam no imaginário social, por outro, a nutre através do discurso de ódio veiculado como arma de guerra.

            Da mesma forma, o uso político da pandemia do COVID-19 além de oferecer território propício para a aplicação de medidas autoritárias, dado a gestão do medo, também pode ser entendida como estratégia de guerra. Que se utiliza de arma biológica, tal como gás sarin, antraz e outras armas bioquímicas.

Os chamados “cloroquiners” ou “bolsominion” sectários do presidente, atuam na vida ordinária como “algoritmos do pior”, ao utilizar as redes sociais como ferramentas de guerra: uso estratégico da desinformação e veiculação de discurso de ódio via fake news. Ao passo que na vida cotidiana, atuam como verdadeiros homens-bomba, Kamikazes contemporâneos, ao insistirem na transgressão do isolamento social.

            Arriscam-se ao contato social, ao mesmo tempo em que vulnerabilizam, ainda mais, certos grupos populacionais que não dispõe de medidas protetivas ao vírus. Sabemos que o cuidado de higiene básica são essenciais para a preservação da vida neste momento. E sabemos igualmente que grande parcela da população sequer dispõe de água encanada e itens como sabão, máscaras e luvas, elementos necessários para previnir o contato com o coronavírus.

Desta forma, os “homens-bomba-do-Leblon” e os kamikazes-bronzeados-do-Arpoador”[10] destilam além do discurso de ódio, as armas bioquímicas pela cidade, sendo assim semeadores da morte avalizada pelo Estado genocida. A ramificação dos atos de execução nos chamam atenção pela frivolidade, e pela ausência de culpa das ações mortíferas dos “roles”, que lançam a narrativa cínica da “imunidade de rebanho” como álibi. O que faz ecoar em sua premissa “a necessidade de alguns morrerem para que outros fiquem imunizados” a definição de Mbembe:  “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é” (p.41). Argumento comum que apresenta o “homem comum” que presentifica aquilo que Hanna Arendt classifica como “banalidade do mal”.

A diferença, no entanto é que, em 2020, as ações micro-fascistas não são orquestradas objetivamente pelo Estado, no sentido em que não são “ordens burocráticas” que estão sendo cumpridas. Senão, um alistamento voluntário, em alguns casos, alienados, que levam ao pior. Materialização ultracontemporânea da modalidade global do necropoder: a saber, que o direito de matar já não constituem o monopólio exclusivo dos Estados, e o exército regular já não é o único a exercer essa função (Mbembe p.52). Nestas linhas, o autor refere-se ao poder paralelo, das milícias e das associações paramilitares, que no Brasil, parece somar-se a este novo contingente de “soldados” alistados voluntariamente a circular pela cidade, colocando a si mesmos e aos demais em risco.

            Explicamos: parece-nos que existe uma adesão à lógica cínica (que a psicanálise pode nos ajudar a compreender), pois, diferente do que aponta Mbembe em seu ensaio, o suicídio e assassinato aqui, não estão na lógica do sacrifício e redenção. Não se trata de encarar à morte como via de afirmação da liberdade, tal como estabelece o giro hegeliano. Em absoluto, aqui a sideração pela morte e o empuxo ao pior, materializados na produção de mais de 100 mil cadáveres faz a criação de um contingente de mercenários, dispostos a operar a necropolítica ordinariamente e muitos deles associados a partir de sua alienação.

Seja a alienação pensando ao esclarecimento racional do caráter mortífero de seus atos tendo em vista a produção das fake news em larga escala, criando através da desinformação uma desorientação da população em geral, dado a ausência de políticas de enfrentamento.

Seja a alienação na chave perversa. Não se trata de uma ação que desconhece suas conseqüências. Neste sentido, a alienação se encontra na impossibilidade de vislumbrar outra forma de sociabilidade que não passe pela relação de domínio. Seja ter o outro como objeto, ou ser em si mesmo dominado[11].

Desta forma, acreditamos esta ser uma nova forma de constituição de “máquina de guerra”. Esta, em tela de análise, possui como combustível a moral veiculada pelo cristofascismo[12] que promove a adesão irrestrita e cega destes sectários. “tecnologias de destruição tornam-se mais táteis, mais anatômicas e sensoriais, dentro do qual escolha se dá entre a vida e a morte (...) agora representada pelo massacre” (Mbembe. P.59).

Repetimos: Em 30 de agosto de 2020 o Brasil registra mais de 120 mil mortos, dados subnotificados. “As maneiras de matar variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente reduzidos à condição de simples esqueletos.” (Mbembe.p.60) 

Mbembe segue a reflexão sobre as formas possíveis de matar questionando a diferença de fazê-lo via tanque de guerra, helicóptero mísseis ou o próprio corpo. Aqui, ele se refere ao homem-bomba, mas nos faz refletir sobre o uso letal do corpo assintomático em relação ao COVID-19 daqueles que intencionalmente transgridem o isolamento social. “O homem-bomba não veste nenhum uniforme de soldado e não exibe nenhuma arma” (...) “a esse respeito é significativo o local em que a emboscada é colocada: o ponto de ônibus, a cafeteria, a discoteca, o mercado, a guarita, a rua, em suma, espaços da vida cotidiana” (p.63) poderíamos incluir: os bares do Leblon, as praias do Rio de Janeiro... O autor também destaca o caráter invisível da arma, que dissimulada faz parte do corpo... o que no nosso caso em tela, toma proporções literais. “O corpo não esconde apenas a arma. Ele é transformado em arma, não em sentido metafórico, mas no sentido verdadeiramente balístico” (Mbembe p.63). 

Uma guerra “corpo-a-corpo”, porém, que se difere terminantemente ao sacrifício e redenção entendido na chave Heideggeriana da morte como “libertação do terror da servidão”.  O caso brasileiro, o alistamento ao empuxo ao pior parece-nos atender (e a tender), justo ao oposto, a saber, a lógica da servidão voluntária tal como posto pro Étienne de La Boétie, submetendo-se ao tirano e dando a ele meios necessários para perpetuar sua opressão.

Assim, a política de empuxo ao pior, a transgressão da lei, e ao mais-de-gozar, produz como efeito, a dilaceração dos laços sociais. E tem trazido à luz, a face obscura de nós mesmos, materializada na banalidade do mal, culminando nos números cada vez mais elevados de produção de corpos.

 

***

 

O pensador argentino, Jorge Alemand tem promovido o debate acerca do que chamou de conjecturas sobre a esquerda lacaniana. Seu intento gira em tornoda possibilidade de pensar um projeto emancipatório a partir da psicanálise francesa. Projeto este que não se pretende todo e completo, senão, parcial, circunstancial e articulado segundo a conjuntura particular que se apresenta. Seu argumento central é que este campo de saber pode oferecer recursos que façam frente ao movimento circular do capitalismo que possui exigências impossíveis de domar. Sob a justificativa da crise, o que se presentifica é o Estado de Exceção, que promove a proliferação de vidas nuas, indivíduos matáveis.

O que se desdobra a partir daí, é a exigência do sacrifício e da renúncia em prol do acúmulo de poucos; enquanto o mercado acumula o indivíduo renuncia. Como vimos, há um ponto de gozo que une o indivíduo ao discurso, sendo ele mesmo engrenagem do sistema, participante ativo desta lógica, e por isso, comprometido com ela.

A gravidade deste sistema é que cada vez mais, o capitalismo não necessita dos laços sociais e tem ampliado os efeitos de exceção, produzindo excluídos em massa e o esmaecimento da política.  Alemand ressalta que é necessário pensar em um projeto emancipatório que leve em conta a dimensão humana, no sentido de dar lugar ao que falha, ao que manca; em última instância ao inconsciente e seus efeitos. E propõe o conceito de solidão comum, como ponto de partida.  Entendendo como comum não o caráter homogêneo e igualitário entre os homens, e sim o lugar onde a diferença pode se abrir como tal. (Machado, 2015)[13]

            Portanto, para pensar as implicações políticas da teoria psicanalítica, trazemos à cena a chamada “ferida narcísica” denominada por Freud ao afirmar que o “Eu não é senhor em sua própria morada”, referindo-se ao componente inconsciente presente na formação psíquica. Neste sentido, é preciso ter em conta a complexidade do aparelho  psíquico e principalmente, compreender que ela não está referida a lógica cartesiana, fundamentada na razão. Portanto, a referência behaviorista que o comportamento é a expressão direta da psique humana e passível de adaptação ao meio social é deficitária. Na medida em que o que está em jogo não é um organismo em oposição a realidade ou ainda, uma concepção “desajustada” a realidade. E sim, uma realidade que se forma em correlação a construção de subjetividade.

Portanto, precisamos ter em vista que, tanto a análise do cenário político atual, quanto a construção de políticas públicas aplicadas, têm de levar em conta a complexidade, e a tensão existente no aparelho psíquico, sob pena de fracasso. Ou seja, é necessário que a coluna de sustentação das práticas que visam transformação social ou comportamental, não esteja direcionada, ingenuamente, somente a simples conscientização e ampliação de informações a população. Tendo em vista que não é somente a razão que se há de atingir; É necessário, portanto, compreender a dinâmica subjetiva envolvida nas realidades sociais que se objetiva transformar, neste caso, chamar a responsabilização sob esta escolha e tratá-la como tal.

Neste caso em tela, é importante ressaltar que a transgressão que o perversos colocam em jogo ao recusar-se abrir mão de gozo, é também uma tentativa de fazer valer a lei. Em outras palavras: seu objetivo menos evidente é dar existência à Lei: fazer com que exista o Outro como lei. “O perverso, por outro lado, não deseja em função da lei. Isto é, não deseja aquilo que foi proibido, em vez disso ele tem de fazer a lei existir” (Fink, p.201. ano). E neste sentido, resta-nos a colocar a questão se a transgressão promovida nestes tempos de pandemia, no Brasil, não se trataria de um apelo perverso para a instauração da lei, ainda que para isso seja necessária a transposição de seu limite. Dado que no âmbito da governamentalidade perversa os referenciais simbólicos que deveriam sustentar o recalcamento (e seguir fazendo valer o enlace do desejo à lei) estão em ruínas. E funcionam, pelo contrário como imperativo de gozo e empuxo ao pior, fazendo esgarçar o tecido civilizatório.

É nesta direção que a análise sobre a estrutura perversa nos encaminha: em certa medida de que a transgressão da lei cumpre certa função de retirá-lo do lugar de objeto do Outro, e de algum modo, funciona como uma tentativa de restaurá-la, ainda que passado seu limite. Sendo o perverso aquele de desmente a castração, que barra o acesso a via direta de gozo, interdição necessária para a vida em comum, nos parece que aqueles que estão nas ruas, atuam nesta mesma lógica: recusam-se a abrir mão de suas satisfações, ainda que o preço a ser pago seja colocar sua própria vida em risco e aumentar o número de morte que poderiam ser evitadas[14].    

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AGAMBEM, Giorgio: Estado de Exceção 2004, Boitempo, São Paulo/SP

ALEMAN, Jorge. Horizontes neoliberales en la subjetividad. Buenos Aires: Gramma Ediciones, 2016

ARENDT, Hannah: Origens do Totalitarismo. Antisemitismo, imperialismo, totalitarismo, Cia de Bolso, São Paulo, SP 2015

COUTINHO, Jorge: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. VOL.2 A clínica da fantasia; ZAHAR, Rio de Janeiro 2010;

DE LA BÓETIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Editora Martin Claret, 2015, 3ª reimpressão

 

FREUD, Reflexões sobre o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1980;

________ Por que a Guerra? (1932) Rio de Janeiro, Imago 1980;

 

FOUCAULT, História da Sexualidade VOL. 1 A vontade de saber, Graal, São Paulo, 2005

____________ Ditos e escritos vol.1: “Problematização do Sujeito: Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise”. Ed. Forense universitária, Rio de Janeiro, 2011

LACAN, Jacques O seminário, livro 17 o avesso da psicanálise. 2007, Zahar

MBEMBE, Achille, Necropolítica, 2018, n-1edições.

MACHADO, Bárbara Breder: Política e Psicanálise (des)encontros entre Foucault e Lacan, Universidade Federal Fluminense, 2015.

ROUDINESCO, Elisabeth: “A parte obscura de nós mesmos”

Documentário: FIENES, Sophie, Guia pervertido da Ideologia, 2012

 



[1] Professora adjunta do Departamento de Psicologia UFF/ESR 

[2]  Junho 2020

[3] Julho 2020       https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020

[4] Agosto 2020        https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020

[5] Por ‘governamentalidade’ entendo o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específi ca, ainda que complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por forma maior de saber a economia política, por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Segundo, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e desde muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros: soberania, disciplina, e que, por uma parte, levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, de outra parte] , ao desenvolvimento de toda uma série de saberes (Foucault, 2004a , p. 111-112).

[6]Falas do presidente da República em 2020 sobre as mortes evitáveis pela pandemia de coronavírus. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm. acessado em 03/07/2020

[7]Fala do prefeito de Itabuna, Bahia ao declarar a reabertura do comércio em 30/06/2020 disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/07/02/video-prefeito-de-itabuna-diz-que-comercio-sera-reaberto-a-partir-de-9-de-julho-morra-quem-morrer.ghtml acessado em 03/07/2020

[8]                    Elisabeth Roudinesco, 2008

[9]                    (dado que muitos trabalhadores estão impedidos de deixar seus postos de trabalho)

[10]                 Vale ressaltar que a referência a cidade do Rio de Janeiro trata-se de uma metáfora. Na medida em que a transgressão do isolamento social acontece em diversas outras cidades do país.

[11]                 Argumento desenvolvido em “diálogos interdisciplinares e indisciplinados sobre pandemia. No blog diálogos do fim do mundo  disponível em: https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2020/08/dialogos-indisciplinados-e.html

[13]                 MACHADO, Bárbara Breder: “Política e Psicanálise (des) encontros entre Lacan e Foucault, Universidade Federal Fluminense, 2015

[14] Sobre a imagem, trata-se de colagem de dois noticiários disponíveis em: Banhista lotam paria do Leblon, no Rio de Janeiro: decreto municipal liberou os ambulantes e o banho de mar, mas não a permanência na areia (Wilton Junior/Estadão Conteúdo) https://exame.com/brasil/a-pandemia-acabou-praias-lotam-no-final-de-semana-veja-fotos/ Homem derruba cruzes e ataca homenagem a vítimas da Covid-19 no Riohttps://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/homem-derruba-cruzes-e-ataca-homenagem-a-vitimas-da-covid-19-no-rio.shtml