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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Sérgio Buarque e a reforma administrativa do governo Bolsonaro

Escrito por Carolina Gagliano (Técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE)

 

 

VEJA – De qualquer modo, não há jeito de escapar da ideologia?

 

SÉRGIO BUARQUE – Não. E é engraçado observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou, devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte – a Regência – os grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837, opondo-se aos moderados[1]

 

 

A entrevista cujo trecho foi reproduzido acima se deu 40 anos após a publicação mais conhecida do historiador Sérgio Buarque de Holanda, o livro Raízes do Brasil. Em que pese as críticas que podem e devem ser feitas, com a devida justiça de que aquelas mais mordazes possuem décadas de observação a frente do autor, é bastante difícil a qualquer estudioso do Estado brasileiro ficar indiferente a esta obra.

Provavelmente isso se deve ao fato desta ser uma das primeiras obras que pretende pensar as possibilidades democráticas num país que, apesar de jovem, já conta com experiências bastante traumáticas, como quase quatro séculos de escravidão e um autoritarismo arraigado nas suas estruturas de poder.

A partir de uma perspectiva weberiana, Sérgio Buarque parece bastante otimista em relação ao desenvolvimento de instituições democráticas que superassem tanto a dominação do tipo tradicional, resultante de um sistema patriarcal altamente hierarquizado, quanto o patrimonialismo, que não diferencia as fronteiras entre público e privado e faz com que os negócios de Estado se assumam na prática como negócios particulares.

Aliás, cabe ressaltar que a burocracia na visão de Max Weber está longe de ser o estereótipo firmado pelo senso comum de um corpo engessado, redundante e inoperante, que dificulta a vida do cidadão comum. Ao contrário, para o sociólogo alemão seria aquela um corpo técnico qualificado, organizado hierarquicamente e submetido a normas de conduta devidamente prescritas, a exercer autoridade do tipo racional-legal sobre a organização – estatal ou não (Oliveira, 1970). 

Tais ideias, inclusive, influenciaram a reorganização da administração pública na década de 1930.  Em 1938, no governo Vargas, é criado o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de implantar uma Administração Pública burocrática no sentido weberiano, baseada na técnica e que superasse as relações patrimonialistas predominantes no trato com as questões públicas.

Posteriormente, e não por coincidência, em plena ditadura militar, o Decreto-Lei 200/1967 introduz a descentralização das atividades estatais por meio de dois tipos de administração: a direta e a indireta (através de autarquias, fundações, empresas de economia mista etc.). O argumento utilizado era a busca de uma racionalização e eficiência do Estado.

A Constituição Federal de 1988, bem como a legislação ordinária que se seguiu, avança no combate a práticas coronelistas e clientelistas, com a instituição, por exemplo, do concurso como via de admissão padrão ao serviço público e a estabilidade para os servidores com pelo menos cinco anos no cargo até então, além do estágio probatório para os futuros admitidos, previstos no regime jurídico único (RJU). O concurso até então era aplicado somente a algumas carreiras como as jurídicas, diplomáticas e das Forças Armadas. Ademais, a Carta Magna institui quatro princípios para a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade.

Na década seguinte, é instituída a Emenda Constitucional 19/1998, conhecida como Reforma Bresser-Pereira. O princípio da eficiência é acrescido aos quatro já instituídos, o que já diz um pouco sobre o fortalecimento de um viés liberalizante de enxugamento e demarcação do Estado enquanto regulador ao invés de executor, expressado na ideia de resultados com o menor custo possível.

Utilizemos esse breve histórico para trazer à lume a novel proposta de emenda à Constituição (PEC) 32, que trata da reforma administrativa no serviço público. Ela foi encaminhada pelo Poder Executivo para apreciação e votação pelo Legislativo (Câmara e Senado) no dia 2 de setembro de 2020.

O projeto contido na PEC 32/2020 talvez seja a mudança mais radical proposta desde a Constituição de 1988; não por seu caráter inovador, mas por romper com a lógica cidadã de direitos sociais contidos na Constituição, e retroceder exatamente na busca pela eliminação do patrimonialismo, que vinha sendo uma constante nas alterações normativas até então.

Partindo da premissa no mínimo questionável, para não dizer falsa, de que o Estado é ineficiente e gasta demais com servidores e, por isso, teria poucos recursos disponíveis para investimentos, a proposta pretende alterar as formas de ingresso e os vínculos de contratação para o serviço público, bem como retirar direitos e facilitar a exoneração dos servidores, aumentar o poder discricionário do chefe do Executivo na contratação, criação, transformação e extinção de cargos, ministérios, secretarias, fundações e autarquias e também incentivar a execução dos serviços públicos por contratos de desempenho a serem firmados com a iniciativa privada.

O objetivo fundamental é a redução das atribuições do Estado, apesar do verniz discursivo sobre ganhos de produtividade e eficiência. As consequências de tal medida vão muito além da precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, mas atinge todos os cidadãos, que em maior ou menor medida demandam serviços públicos de qualidade.

Como descrever a proposta em suas minúcias poderia ser um exercício longo e enfadonho para os leitores, focaremos em dois aspectos que, na nossa avaliação, abrem um flanco para práticas patrimonialistas: a limitação da estabilidade e a criação dos chamados “cargos de liderança e assessoramento”.

Caso aprovada, cinco diferentes vínculos de contratação coexistirão na administração pública: vínculo de experiência, contrato por prazo indeterminado, vínculo de prazo determinado, cargo de liderança e assessoramento e cargo típico de Estado. A rigor, apenas os últimos gozarão de estabilidade, que será conferida somente após aprovação na avaliação de desempenho, cuja definição também aguarda legislação específica.

A PEC não define quais serão os cargos típicos de Estado, relegando essa tarefa a lei complementar posterior. Imagina-se, contudo, que poucas carreiras como aquelas relacionadas às atividades de Fiscalização, Arrecadação, Finanças e Controle, Gestão Pública, Comércio Exterior, Segurança Pública, Diplomacia, Carreiras Jurídicas, Regulação, Política Monetária, Inteligência de Estado, Planejamento e Orçamento integrarão esses cargos. As demais atividades técnicas, administrativas ou especializadas, ou seja, profissionais da saúde, educação e servidores que atuam no atendimento direto aos cidadãos, serão contratados na modalidade por prazo indeterminado, submetidos a – também indefinida por ora – avaliação de desempenho.

Apesar da previsão para a contratação por prazo indeterminado, a proposta amplia o poder discricionário do chefe do Executivo (municipal, estadual, distrital e federal) em criar, transformar e extinguir os cargos de liderança e assessoramento, que seriam os atuais cargos comissionados ampliados, retirando a preferência de que estas funções sejam ocupados por servidores concursados.

Temos a seguir uma amostra de como esta reforma pode ser, na prática, desastrosa para retomarmos antigas práticas patrimonialistas de loteamento dos cargos públicos, bem como de punição daqueles que se mostrarem críticos à administração, a despeito de um discurso que fala em modernização, agilidade e eficiência. Tais práticas já estavam descritas em 1936 por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Dizia ele:

 

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização — que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades — ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.

Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial” , a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. (Holanda, 1995, pp.145-146)

 

Interessante notar que dentre as inovações propostas estão também a inclusão de novos princípios para a administração pública, dentre eles o princípio de subsidiariedade, cujas origens remontam à doutrina social da Igreja no final do século XIX. Em suma, por este princípio, “o Estado só deve atuar quando o particular não tiver condições de atuar sozinho, hipótese em que deve estimular, ajudar, subsidiar a iniciativa privada.” (Di Pietro, 2019, p. 104). A inserção deste princípio na Constituição nos parece ter um caráter muito mais a imposição de um ideário liberal do que propriamente a constatação histórica de avanços de desenvolvimento e bem-estar das pessoas a partir de sua aplicação. Como bem nos relembra a professora Marilena Chauí:

 

Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais ideias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas. (Chauí, 1980, p.5)

 

Pensando que este espaço tem por nome “Diálogos do fim do mundo”, nos parece bastante apropriada a discussão deste tema, pois em plena pandemia da COVID-19, o governo parece mais preocupado em transformar a máquina pública num loteamento político-ideológico do que cumprir devidamente com as funções de Estado na preservação da vida dos seus cidadãos.

Quando perguntado pela Revista Veja em 1976 se havia jeito de escapar da ideologia, Sérgio Buarque é categórico ao dizer que não. Como historiador que era, ao invés de desenvolver seu argumento baseado no momento presente, recorre ao passado imperial para exemplificar como alianças podiam ser construídas e posições, mascaradas, em função do momento político de temor da volta de Dom Pedro I por parte dos chamados “grupos dirigentes”. Qualquer semelhança com o Brasil de 2020 não nos parece mera coincidência.

Isso significa que Sérgio Buarque de Holanda estava errado em seu otimismo sobre a superação futura do Estado patrimonialista no Brasil? Em 2020, a resposta parece ser afirmativa. Todavia, um único ano nos parece muito pouco, em termos históricos, para fazer qualquer afirmação mais contundente sobre a disputa hodierna e futura em torno do Estado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ANDRADE, C. C. V.. Autoritarismo e descentralização: as percepções sobre o Estado na ditadura militar brasileira. In: XXI Encontro Regional de História: História, Democracia e Resistências, 2018, Montes Claros. XXI Encontro Regional de História: História, Democracia e Resistências, 2018. p. 1-9.

 

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição 32/2020. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C1EA9E424D42EC4EBF59542B3EAFE798.proposicoesWebExterno2?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020

 

BRESSER PEREIRA, L. C. A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Lua Nova, São Paulo, n. 45, p.49-95, 1998. Disponível em  <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000300004&lng=en&nrm=iso>.

 

CHAUÍ, M.. O que é ideologia. —. 2. ed — São Paulo : Brasiliense, 1980. Digitalização em 2004.

 

DI PIETRO, M. S. Z. Direito administrativo. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

 

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 1995

 

OLIVEIRA, G. A. A Burocracia Weberiana e a Administração Federal Brasileira. R. Adm. públ., Rio de laneho, 4 (2): 47-74, jul./ dez. 1970.

 

OLIVEIRA, L. H. H. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda: do patrimonialismo à democracia. Revista Mediações (UEL), UEL, v. 2, n.2, p. 27-32, 1997.

SÉRGIO Buarque de Holanda.- Entrevista de 1976. Blog Café com Sociologia, 2012. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-de/. Acesso em: 16 set 2020.

SILVA, T. A. Conceitos e evolução da administração pública: o desenvolvimento do papel administrativo. Anais do VIII Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional (2017). ISSN: 2447-4622

 

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.



[1] Trecho da entrevista com Sérgio Buarque de Holanda publicada originalmente na Revista Veja, em janeiro de 1976 e republicada em setembro de 2003. Disponível em https://cafecomsociologia.com/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-de/

 

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