Escrito
por Carolina Gagliano (Técnica do Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos - DIEESE)
VEJA – De qualquer modo, não há jeito
de escapar da ideologia?
SÉRGIO BUARQUE – Não. E é engraçado
observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas
verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou,
devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte – a Regência – os
grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao
poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as
verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837,
opondo-se aos moderados[1].
A entrevista cujo trecho foi
reproduzido acima se deu 40 anos após a publicação mais conhecida do
historiador Sérgio Buarque de Holanda, o livro Raízes do Brasil. Em que pese as críticas que podem e devem ser
feitas, com a devida justiça de que aquelas mais mordazes possuem décadas de
observação a frente do autor, é bastante difícil a qualquer estudioso do Estado
brasileiro ficar indiferente a esta obra.
Provavelmente isso se deve ao
fato desta ser uma das primeiras obras que pretende pensar as possibilidades
democráticas num país que, apesar de jovem, já conta com experiências bastante
traumáticas, como quase quatro séculos de escravidão e um autoritarismo
arraigado nas suas estruturas de poder.
A partir de uma perspectiva
weberiana, Sérgio Buarque parece bastante otimista em relação ao
desenvolvimento de instituições democráticas que superassem tanto a dominação
do tipo tradicional, resultante de um sistema patriarcal altamente
hierarquizado, quanto o patrimonialismo, que não diferencia as fronteiras entre
público e privado e faz com que os negócios de Estado se assumam na prática como
negócios particulares.
Aliás, cabe ressaltar que a
burocracia na visão de Max Weber está longe de ser o estereótipo firmado pelo
senso comum de um corpo engessado, redundante e inoperante, que dificulta a
vida do cidadão comum. Ao contrário, para o sociólogo alemão seria aquela um
corpo técnico qualificado, organizado hierarquicamente e submetido a normas de
conduta devidamente prescritas, a exercer autoridade do tipo racional-legal sobre
a organização – estatal ou não (Oliveira, 1970).
Tais ideias, inclusive,
influenciaram a reorganização da administração pública na década de 1930. Em 1938, no governo Vargas, é criado o
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de
implantar uma Administração Pública burocrática no sentido weberiano, baseada
na técnica e que superasse as relações patrimonialistas predominantes no trato
com as questões públicas.
Posteriormente, e não por
coincidência, em plena ditadura militar, o Decreto-Lei 200/1967 introduz a
descentralização das atividades estatais por meio de dois tipos de
administração: a direta e a indireta (através de autarquias, fundações,
empresas de economia mista etc.). O argumento utilizado era a busca de uma
racionalização e eficiência do Estado.
A Constituição Federal de
1988, bem como a legislação ordinária que se seguiu, avança no combate a
práticas coronelistas e clientelistas, com a instituição, por exemplo, do
concurso como via de admissão padrão ao serviço público e a estabilidade para
os servidores com pelo menos cinco anos no cargo até então, além do estágio
probatório para os futuros admitidos, previstos no regime jurídico único (RJU).
O concurso até então era aplicado somente a algumas carreiras como as
jurídicas, diplomáticas e das Forças Armadas. Ademais, a Carta Magna institui
quatro princípios para a Administração Pública: legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade.
Na década seguinte, é
instituída a Emenda Constitucional 19/1998, conhecida como Reforma
Bresser-Pereira. O princípio da eficiência é acrescido aos quatro já
instituídos, o que já diz um pouco sobre o fortalecimento de um viés
liberalizante de enxugamento e demarcação do Estado enquanto regulador ao invés
de executor, expressado na ideia de resultados com o menor custo possível.
Utilizemos esse breve
histórico para trazer à lume a novel proposta de emenda à Constituição (PEC)
32, que trata da reforma administrativa no serviço público. Ela foi encaminhada
pelo Poder Executivo para apreciação e votação pelo Legislativo (Câmara e
Senado) no dia 2 de setembro de 2020.
O projeto contido na PEC
32/2020 talvez seja a mudança mais radical proposta desde a Constituição de
1988; não por seu caráter inovador, mas por romper com a lógica cidadã de
direitos sociais contidos na Constituição, e retroceder exatamente na busca
pela eliminação do patrimonialismo, que vinha sendo uma constante nas
alterações normativas até então.
Partindo da premissa no mínimo
questionável, para não dizer falsa, de que o Estado é ineficiente e gasta
demais com servidores e, por isso, teria poucos recursos disponíveis para investimentos,
a proposta pretende alterar as formas de ingresso e os vínculos de contratação
para o serviço público, bem como retirar direitos e facilitar a exoneração dos
servidores, aumentar o poder discricionário do chefe do Executivo na
contratação, criação, transformação e extinção de cargos, ministérios,
secretarias, fundações e autarquias e também incentivar a execução dos serviços
públicos por contratos de desempenho a serem firmados com a iniciativa privada.
O objetivo fundamental é a
redução das atribuições do Estado, apesar do verniz discursivo sobre ganhos de
produtividade e eficiência. As consequências de tal medida vão muito além da
precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, mas atinge
todos os cidadãos, que em maior ou menor medida demandam serviços públicos de
qualidade.
Como descrever a proposta em
suas minúcias poderia ser um exercício longo e enfadonho para os leitores,
focaremos em dois aspectos que, na nossa avaliação, abrem um flanco para
práticas patrimonialistas: a limitação da estabilidade e a criação dos chamados
“cargos de liderança e assessoramento”.
Caso aprovada, cinco
diferentes vínculos de contratação coexistirão na administração pública:
vínculo de experiência, contrato por prazo indeterminado, vínculo de prazo
determinado, cargo de liderança e assessoramento e cargo típico de Estado. A
rigor, apenas os últimos gozarão de estabilidade, que será conferida somente
após aprovação na avaliação de desempenho, cuja definição também aguarda
legislação específica.
A PEC não define quais serão
os cargos típicos de Estado, relegando essa tarefa a lei complementar posterior.
Imagina-se, contudo, que poucas carreiras como aquelas relacionadas às
atividades de Fiscalização, Arrecadação, Finanças e Controle, Gestão Pública,
Comércio Exterior, Segurança Pública, Diplomacia, Carreiras Jurídicas,
Regulação, Política Monetária, Inteligência de Estado, Planejamento e Orçamento
integrarão esses cargos. As demais atividades técnicas, administrativas ou
especializadas, ou seja, profissionais da saúde, educação e servidores que
atuam no atendimento direto aos cidadãos, serão contratados na modalidade por
prazo indeterminado, submetidos a – também indefinida por ora – avaliação de
desempenho.
Apesar da previsão para a
contratação por prazo indeterminado, a proposta amplia o poder discricionário
do chefe do Executivo (municipal, estadual, distrital e federal) em criar,
transformar e extinguir os cargos de liderança e assessoramento, que seriam os
atuais cargos comissionados ampliados, retirando a preferência de que estas
funções sejam ocupados por servidores concursados.
Temos a seguir uma amostra de
como esta reforma pode ser, na prática, desastrosa para retomarmos antigas
práticas patrimonialistas de loteamento dos cargos públicos, bem como de
punição daqueles que se mostrarem críticos à administração, a despeito de um discurso
que fala em modernização, agilidade e eficiência. Tais práticas já estavam
descritas em 1936 por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Dizia ele:
No Brasil,
onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o
desenvolvimento da urbanização — que não resulta unicamente do crescimento das
cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas
áreas rurais para a esfera de influência das cidades — ia acarretar um
desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.
Não era fácil
aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal
ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e
do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o
funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber.
Para o funcionário “patrimonial” , a própria gestão política apresenta-se como
assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios
que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a
interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que
prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem
garantias jurídicas aos cidadãos. (Holanda, 1995, pp.145-146)
Interessante notar que dentre
as inovações propostas estão também a inclusão de novos princípios para a
administração pública, dentre eles o princípio de subsidiariedade, cujas
origens remontam à doutrina social da Igreja no final do século XIX. Em suma,
por este princípio, “o Estado só deve atuar quando o particular não tiver
condições de atuar sozinho, hipótese em que deve estimular, ajudar, subsidiar a
iniciativa privada.” (Di Pietro, 2019, p. 104). A inserção deste princípio na
Constituição nos parece ter um caráter muito mais a imposição de um ideário
liberal do que propriamente a constatação histórica de avanços de
desenvolvimento e bem-estar das pessoas a partir de sua aplicação. Como bem nos
relembra a professora Marilena Chauí:
Um dos traços
fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como
independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais ideias
expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna
compreensíveis as ideias elaboradas. (Chauí, 1980, p.5)
Pensando que este espaço tem
por nome “Diálogos do fim do mundo”, nos parece bastante apropriada a discussão
deste tema, pois em plena pandemia da COVID-19, o governo parece mais
preocupado em transformar a máquina pública num loteamento político-ideológico
do que cumprir devidamente com as funções de Estado na preservação da vida dos
seus cidadãos.
Quando perguntado pela Revista
Veja em 1976 se havia jeito de escapar da ideologia, Sérgio Buarque é
categórico ao dizer que não. Como historiador que era, ao invés de desenvolver
seu argumento baseado no momento presente, recorre ao passado imperial para
exemplificar como alianças podiam ser construídas e posições, mascaradas, em
função do momento político de temor da volta de Dom Pedro I por parte dos
chamados “grupos dirigentes”. Qualquer semelhança com o Brasil de 2020 não nos
parece mera coincidência.
Isso significa que Sérgio
Buarque de Holanda estava errado em seu otimismo sobre a superação futura do
Estado patrimonialista no Brasil? Em 2020, a resposta parece ser afirmativa.
Todavia, um único ano nos parece muito pouco, em termos históricos, para fazer
qualquer afirmação mais contundente sobre a disputa hodierna e futura em torno
do Estado.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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C. C. V.. Autoritarismo e descentralização: as percepções sobre o Estado na
ditadura militar brasileira. In: XXI Encontro Regional de História: História,
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História: História, Democracia e Resistências, 2018. p. 1-9.
BRASIL.
Proposta de Emenda à Constituição 32/2020. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C1EA9E424D42EC4EBF59542B3EAFE798.proposicoesWebExterno2?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020
BRESSER
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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000300004&lng=en&nrm=iso>.
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WEBER,
M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF:
Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 1999.
[1] Trecho
da entrevista com Sérgio Buarque de Holanda publicada originalmente na Revista
Veja, em janeiro de 1976 e republicada em setembro de 2003. Disponível em https://cafecomsociologia.com/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-de/
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