Arquivo do blog

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O papel da extensão universitária na comercialização de produtos da Reforma Agrária no estado do Rio de Janeiro

 

Foto: Nathalia Gonçales

Escrito por Nathalia Ferreira Gonçales[1] e Celso Alexandre Souza de Alvear[2]

 

 

A extensão universitária, sob o princípio de sua indissociabilidade com o ensino e a pesquisa, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove ações dialógicas entre universidade e outros setores da sociedade (FORPROEX, 2012). Buscamos apresentar o projeto “Construção de Ferramentas de Comercialização de produtos da Reforma Agrária no estado do Rio de Janeiro” a partir de uma perspectiva comprometida com a ampliação do trabalho realizado pelos movimentos sociais, fortalecendo a autonomia do trabalhador do campo e o desenvolvimento participativo de tecnologias engajadas com os territórios de atuação. Neste sentido, apostamos na aliança entre saberes acadêmicos e populares, por meio de uma dinâmica interdisciplinar que contribui na formação de estudantes e técnicos envolvidos em prol da pesquisa, extensão e ensino, estimulando a universidade no cumprimento de um de seus objetivos fundamentais, a saber, a produção de conhecimentos orientados para as demandas populares.

O projeto buscou desenvolver um sistema de comercialização de produtos oriundos da Reforma Agrária no estado do Rio de Janeiro, possibilitando a organização do trabalho e aperfeiçoando a experiência entre os espaços de comercialização e os consumidores através da Tecnologia Social (DAGNINO, 2014) implementada no site do Armazém do Campo (http://rio.armazemdocampo.com.br). A loja física do Armazém do Campo está localizada na Lapa, região central da cidade, sendo um espaço de comercialização organizado pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – para a venda de produtos de assentamentos da Reforma Agrária, cultivados por pequenos agricultores ou produzidos por empresas parceiras, de forma orgânica e agroecológica.

Entre as atividades realizadas pelo projeto, que buscou dialogar diretamente com os produtores, realizamos sucessivas visitas aos assentamentos do MST nas regiões de Campos dos Goytacazes, Piraí e Macaé. No total, reunimos 19 fornecedores e parceiros que contribuem com sua produção e integram a loja do Armazém do Campo. O processo de dialogar com a/o agricultor(a) que cultiva o produto foi determinante para encurtar as pontes entre campo e cidade, criando um rosto e contando uma história particular para cada mercadoria comercializada na loja. Além de reunir iniciativas de famílias assentadas e cooperativas que extraem da agroecologia sua fonte de renda, buscamos mostrar que é possível construir uma economia solidária através de uma perspectiva capaz de ampliar a percepção do consumidor para uma relação de proximidade com o produtor e sua terra. Desse modo, as cooperativas, os assentamentos, os coletivos de produção e as famílias agricultoras são os protagonistas do conteúdo que compõe o site, ganhando um espaço de destaque para apresentação da trajetória desses atores na Reforma Agrária Popular.  



       Foto: Nathalia Gonçales

Um dos elementos essenciais do sistema foi a premissa do Software Livre, ou seja, seu código deveria ser aberto ao uso, distribuição e alteração de forma gratuita, sem necessidade de pedir permissão ao desenvolvedor. Ao longo da construção da ferramenta, foram realizados diversos ciclos curtos de especificação, utilizando metodologias ágeis, com objetivo de desenvolver as funcionalidades mais urgentes, além de realizar testes participativos e verificações. Dessa forma, diferente dos métodos tradicionais de Engenharia de Software que levam um grande tempo especificando todas as funcionalidades para só depois desenvolver o sistema, nas metodologias ágeis busca-se um desenvolvimento mais interativo.

Um dos principais eixos de trabalho que mobilizaram o projeto foi a simplificação do layout do sistema, para auxiliar as atividades de comercialização de grupos com pouca ou nenhuma familiaridade com sistemas tecnológicos. Criamos um painel de administração com as funções mais utilizadas por seus usuários. Após a implantação da ferramenta no site de comercialização, a equipe concentrou esforços na elaboração de manuais com orientações para gestão do sistema, trazendo conteúdos explicativos e diretrizes para a instalação das funcionalidades. Além disso, foram realizadas diversas oficinas de capacitação para qualificar os usuários no manuseio do painel de administração. O projeto possibilitou a entrega de um sistema de comercialização desenvolvido a partir de uma perspectiva comprometida com o fortalecimento dos movimentos sociais, ampliando o lastro de atuação dessas organizações populares através do uso de novas tecnologias.


Referências bibliográficas:

 

DAGNINO, Renato. Tecnologia Social: contribuições conceituais e metodológicas. Campina Grande: EDUEPB, 2014.

FORPROEX - Fórum De Pró-Reitores De Extensão Das Instituições De Educação Superior Públicas Brasileiras Plano Nacional De Extensão Universitária. Política Nacional de Extensão Universitária. 2012. http://www.renex.org.br/documentos. Acesso em: 25 de novembro de 2022.

 



[1] Professora substituta do Departamento de Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda e mestre no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

[2] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social/Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

domingo, 27 de novembro de 2022

A Reforma do Ensino Médio e a silenciosa luta de classes entre a juventude brasileira: um diálogo sobre o que está em jogo na educação brasileira no século XXI

 

Manifestação de estudantes contra a Reforma do Ensino Médio na cidade de São Paulo em 2016. Créditos da Foto: Mídia Ninja

 

Escrito por Leonardo Almeida da Silva[1] e Matheus de Mesquita Pontes[2]

 

 

Nas últimas décadas vivemos no Brasil e no mundo em um contexto amplo de “reformas de estado”. Porém, o que percebemos é que a própria ideia de reforma é um conceito em disputa e o que tem prevalecido, no geral, são medidas que tem inviabilizado ou precarizado direitos sociais conquistados, com muita dificuldade, através de luta e mobilização popular, ao longo dos últimos séculos, sobretudo no século XX. “Reformar”, em grande medida, tem significado “precarizar” – tal qual em relação à Reforma Trabalhista (2017) e a Reforma da Previdência (2019) implementadas no Brasil nos últimos anos. Neste contexto, o campo da educação não passa ileso. As reformas ocorridas na educação brasileira, com destaque para a Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e em especial a Reforma do Ensino Médio, aprovadas entre 2017 e 2018 vêm sendo percebidas, por pesquisadores e por boa parte da classe dos profissionais de educação, pelo seu viés precarizador, tanto da qualidade da educação ofertada às classes populares, como das condições do trabalho docente na educação básica brasileira.

Abaixo segue uma entrevista, em um formato mais livre de diálogo, com Matheus de Mesquita Pontes realizada por Leonardo Almeida da Silva: dois educadores e pesquisadores do campo da educação brasileira abordando a abrangência, os objetivos, as motivações e os possíveis efeitos que as supostas “reformas” do campo educacional brasileiro, em especial a Reforma do Ensino Médio, venham a alcançar a partir da sua elaboração e recente implementação. Segue a conversa[3]:

Leonardo Almeida da Silva: Em que medida, essa chamada “Reforma do Ensino Médio” junto da implementação da Nova BNCC se inserem em um contexto maior de pseudo-reformas que significam muito mais a contração do que a ampliação de direitos sociais conquistados ao longo das últimas décadas? De certa forma, o termo “reforma” sugere uma melhora, dá a ideia de que algo será atualizado, modernizado, mas o que nós temos visto é que as reformas de estado não têm sido nesse sentido. Especialmente a Reforma do Ensino Médio, levando em conta o fato de ela ter sido elaborada e implementada por meio de uma Medida Provisória, impondo uma certa “flexibilização curricular” e com instituições privadas divulgando-a abertamente e até participando da elaboração desses documentos: qual é a sua visão e a sua interpretação sobre esses aspectos mais gerais? Quais os objetivos dessa Reforma e o que você vê que ela vai cumprir, tendo em vista esse contexto no qual ela foi apresentada?

Matheus de Mesquita Pontes - Não é necessário sermos economistas ou cientistas políticos para observarmos que, ao final do século XX e princípios do século XXI, o sistema capitalista vem passando por crises econômicas cada vez intensas e em períodos cada vez mais curtos de tempo. Ou seja, em ciclos mais curtos a economia capitalista – observando-se o Produto Interno Bruto (PIB) das grandes potências como Estados Unidos, França, Japão e até mesmo de países emergentes – conseguimos notar que desde 2008 a economia desses países vive um processo de estagnação e até de retração econômica. Até mesmo países que tiveram um acelerado crescimento econômico no final do século XX e inícios do Século XXI, que é o caso chinês – o qual ainda conta com uma projeção dos grandes organismos internacionais de que até a década de 2030 venha a ultrapassar os Estados Unidos enquanto principal potência econômica mundial – até a própria China, que a partir do ano de 2008 tinha o crescimento do PIB por volta de 8% ou 9% ao ano passa a ter uma projeção de crescimento bem menor, ainda antes da crise pandêmica, previa-se um crescimento tímido de 6% ou 5% ao ano. Enfim, estes dados já demonstravam uma grande perspectiva de estagnação econômica global. Essa crise do sistema capitalista é percebida, então, tanto nos países onde o sistema de economia de mercado é mais fortalecido, como em países periféricos como o Brasil. Desse modo, percebo que há um conjunto de ações do grande capital no intuito de dar fôlego ao sistema capitalista, e aqui eu quero citar três práticas que são corriqueiras e já bem observadas ao longo deste breve século XXI:

1) a realização de conflitos bélicos pontuais;

2) o reordenamento da dinâmica produtiva dentro das fábricas inserindo novas tecnologias no intuito de diminuir gastos com força de trabalho: automatização, robotização e inteligência artificial e

3) a retirada de direitos conquistados historicamente pelos trabalhadores através de contrarreformas estruturais no setor público com consequente beneficiamento do setor privado.

Este contexto, em especial o terceiro ponto para o qual chamo atenção, não deixa de fora o que ocorre quando observamos o setor educacional. Vejamos como os fatos se sucederam para adentrarmos à abordagem sobre a Reforma do Ensino Médio.

Depois da queda de Dilma Roussef, a partir do ano de 2016, observa-se que um dos setores em que mais se investiu em, digamos, “contrarreformas” de estado foi a Educação, na tentativa de reestruturar a educação brasileira no sentido das grandes demandas da economia de mercado.

Para quem se lembra dos debates de 2014 quando a Dilma consegue o seu segundo mandato, na polarização entre Dilma e o PSDB, na época representado pelo candidato Aécio Neves, e em especial nos debates de segundo turno, a temática da reforma da educação brasileira, em especial da reforma da estrutura do Ensino Médio brasileiro, já tomava a pauta de discussão e o que observávamos era seu viés neoliberal. Naquele contexto, o Partidos dos Trabalhadores (PT) já propunha uma redução de disciplinas, o que em certo grau hoje tem alguma ressonância nesse modelo de Reforma do Ensino Médio que está em vigor. Já o candidato do PSDB, tendo como modelo as experiências do partido no governo do estado de São Paulo e também atendendo a demanda dos grandes organismos internacionais, propunha cursos mais curtos e de viés tecnicista para a educação em nível médio no Brasil.

Dilma consegue a reeleição, mas o seu segundo mandato é muito fragilizado devido à grave crise econômica no país, fruto também de uma grande recessão internacional. Dilma cai, mas o que está por trás é a implementação mais profunda de contrarreformas de estado para pretensamente dar fôlego para a economia nacional mais alinhados aos interesses de mercado.

Nos primeiros meses do governo Temer – que era o vice de Dilma em uma lógica de conciliação de classes – é logo emplacada a Medida Provisória nº 746 que impõe a Reforma do Ensino Médio. Na época questionou-se a utilização de Medidas Provisórias para tal fim, mas o fato é que o governo Temer fez uso deste expediente para reestruturar a educação brasileira interligando-a aos marcos orientativos dos grandes organismos internacionais como o FMI, e em especial o Banco Mundial, bem como o grande empresariado que têm o intuito de formar a juventude brasileira sobre novos marcos e preceitos. E quais preceitos são esses? Os de que a juventude tem que se profissionalizar de forma muito precoce para se inserir no mercado de trabalho e com uma formação, de certa forma, fragmentada, e sem a perspectiva de longa permanência em ambientes de trabalho, isto é, formar a juventude brasileira para a informalidade e para constantes e prolongados momentos de desemprego na vida desse futuro trabalhador. Aponta-se ainda para a permanente necessidade de o jovem passar por capacitações profissionais para se readequar ao modelo precário de trabalho e também se adequar ao avanço tecnológico cada vez mais aguçado nessa sociedade digital que vivemos e experimentamos atualmente.

 Para além da Reforma no Ensino Médio vamos observar também um arcabouço de normativas produzidas pelo Conselho Nacional de Educação para impulsionar esse tecnicismo que muito parece com a Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira de 1961 – época do regime militar. Além disso, a dinâmica de contrarreformas não fica presa somente nessas que eu citei até agora, iremos observar que depois, quando Bolsonaro chega ao poder ainda sobre as narrativas em torno de moralizar o país e o discurso de combate à corrupção, na verdade o que está aí também é o aprofundamento da agenda neoliberal mantendo a dinâmica do governo Temer e do seu programa Ponte para o Futuro, o qual era o arcabouço neoliberal do governo Temer

Assim sendo, as reformas na educação fazem parte de um bojo de contrarreformas com o intuito principal de criar uma nova identidade e um novo perfil de classe trabalhadora no futuro, qual seja, o de uma classe trabalhadora uberizada com praticamente nenhum acesso aos direitos trabalhistas ou previdenciários existentes e de uma juventude que tem que “se virar”. E esse “se virar” significa, na estrutura normativa trazida pela Reforma do Ensino Médio, que a juventude tem que ser empreendedora, inovadora. Contudo, fica a essa juventude o ônus de inserir-se no mercado de trabalho de diversas maneiras diferentes do trabalho fixo e formalizado, tal qual o conhecíamos, dado que a tendência no século XXI é que este tipo de trabalho não tenda a ocorrer, dado o momento de desmonte dos direitos sociais e das políticas públicas que temos assistido.

Leonardo Almeida da Silva - “Interessante mesmo notar que a Reforma do Ensino Médio não está isolada, mas faz parte de um contexto maior de reformas ou contrarreformas, como você destacou, e que estão ligadas com transformações do sistema capitalista no século XXI. Sobre o que você levanta do debate de 2014, o que se falava sobre educação era que os dados apontavam para um “gargalo” no Ensino Médio e que ali estava o problema da educação brasileira, em especial por causa da evasão escolar nesse nível de ensino. Assim, as soluções eram pensadas nesse sentido: a proposta do PT flertava com uma ideia de retirada de disciplinas e a do PSDB trazia essa visão tecnicista. De direito é Dilma quem vence, mas de fato, por conta do impeachment que sucedeu um conjunto das chamadas “pautas-bomba” no Congresso, acaba por ser executado o programa econômico defendido na campanha pelo PSDB, partido que será um pilar importante de chegada e de sustentação de Temer no poder, ao ocupar alguns ministérios. Não exatamente o Ministério da Educação, o qual será ocupado pelo Democratas, um partido historicamente aliado do PSDB e que vai implementar a Reforma do Ensino Médio numa velocidade muito grande. Assim, com desemprego em alta nos últimos anos, o deslocamento de grandes fábricas como foi o caso da Ford que fechou suas fábricas no país, tudo isso faz chamar atenção para o fato de que temos nossa mão de obra alocada majoritariamente no setor de serviços e na informalidade, o que se dá esse nome, como você falou, da ideia de empreendedorismo, mas que é exatamente para mascarar a condição de precariedade do mundo do trabalho para os mais jovens atualmente.

Em sua visão, essa reforma é uma adequação no sentido desse tipo de mão de obra precarizada? Ela representa uma “visão estratégica” para o desenvolvimento do país ou representa uma falta de visão sobre nosso papel e potencial para o mundo atual? Formar esse tipo de mão de obra como você falou: mais rápida, mais barata, em menos tempo, para o setor de serviços e que exige menos qualificação em detrimento do preparo para o ensino superior, para a ciência, depois para a pós-graduação, para inovação, para pesquisa e desenvolvimento, o que demandaria mais tempo e investimentos maiores. Na sua visão os conteúdos da reforma vão em qual sentido: eles significam de fato uma visão estratégica do país de se colocar em um mundo como um exportador de commodities e ponto final, ou os conteúdos da reforma representam, de fato, uma falta de visão das nossas elites?

Matheus de Mesquita Pontes - Por mais que no período dos governos PT tenhamos tido uma ampliação das frentes de trabalho e do trabalho formal, ainda tínhamos levas muito expressivas da juventude brasileira que abandonava o Ensino Médio para poder trabalhar e gerar renda para suas famílias. Assim, a evasão escolar  por retenção, de acordo com os dados de 2014 e 2015, era de que um terço da juventude acabava abandonando o Ensino Médio e os dados são muito altos no Brasil se a gente pegar os dados do IBGE, vemos que muita gente que ainda não concluiu o ensino fundamental, que não concluiu o Ensino Médio, aqui não temos os dados de forma exata, mas sabemos que estes são números bastante elevados e é nessa retórica da ineficiência da educação brasileira, principalmente jogando a culpa nos trabalhadores da educação, que no ano de 2016 será usada uma Medida Provisória, bem como muita propaganda pública, através dos canais de comunicação privados, para supostamente reformar o Ensino Médio apressadamente.

Na época a Justiça chegou a proibir uma reforma com essa abrangência através de uma Medida Provisória, afirmando que esta deveria tramitar pelo parlamento brasileiro, contudo essa propaganda sistemática que apontava que a reforma do Ensino Médio facilitaria o acesso da juventude às frentes de trabalho e emprego – lembrando que nos anos de 2015 e 2016 a crise econômica acaba se aguçando no Brasil você tem muito desemprego, muita diminuição da renda das famílias – assim a propaganda gerava uma ilusão da possibilidade do jovem em um curto período de tempo através do Ensino Médio de perfil supostamente profissionalizante poderia ter acesso a uma frente de trabalho, tudo isso faz com que, em fevereiro de 2017, o Congresso Nacional acabe aprovando com poucas modificações, a estrutura do Ensino Médio brasileiro que se encontrava no texto original da Medida Provisória.

Essa Reforma do Ensino Médio prevê uma formação muito fragmentada para a juventude brasileira. O conhecimento de perfil mais cientificista, aquele voltado a formar o sujeito para o exercício da cidadania e dos conhecimentos científicos acumulados pela humanidade ao longo desses séculos e através dos componentes curriculares tradicionais consolidados como a história, a filosofia, química, a física, a sociologia, a biologia, essas disciplinas seriam e acabaram sendo normatizadas através de uma nova Base Nacional Comum Curricular que é a BNCC, instituída pela Lei 13415/17, mas a finalização da BNCC acaba acontecendo ao final do governo Temer em um processo já de transição para o governo Bolsonaro. A BNCC é aprovada pelo Conselho Nacional de Educação depois de um conjunto de versões, no final de 2018, normatizando não somente os currículos do Ensino Médio, que foi o que mais deu trabalho, mais disputa científica, mais rejeição das organizações científicas no Brasil e também dos grandes sindicatos, mas para além de normatizar o Ensino Médio que foi o grande ponto mais polêmico, também normatizou o currículo do Ensino Fundamental e da Educação Infantil, muito calcado nas competências, abordando “competências” em um sentido muito tecnicista do termo.

No caso do Ensino Médio, para essas disciplinas científicas, existe um limite de carga horária, pois elas devem ser distribuídas nos três anos do Ensino Médio num total de 1800 horas e o restante da carga horária, que tem que ser de 3000 horas, é para os chamados itinerários formativos. Tem-se os cinco itinerários formativos da área de Linguagem, da área de Ciências Exatas, a Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e um itinerário formativo específico para Educação Técnica e Profissional, mas sempre frisando que, por mais que exista um itinerário específico para a formação técnica-profissional, os demais itinerários têm também o de concorrer para a formação profissional desses jovens, para inseri-los no mercado de trabalho, dando menor ênfase à dimensão de uma formação cidadã.

Por trás das narrativas do governo Temer e do seu então ministro da educação Mendonça Filho, que é do Democratas, um partido que segue rigidamente uma pauta liberal no Brasil, o intuito seria a formação com um viés mais profissionalizante. Entretanto, seguindo o Plano Nacional de Educação (2014-2024) que ainda está em vigência, o qual é um plano decenal, a perspectiva é de gradativamente a carga horária do Ensino Médio aumentar do mínimo de 3000 horas ao máximo de 4000 e 300 horas criando a educação de tempo integral. Contudo, isso é uma contradição, porque o governo, neste mesmo período aprova a Emenda Constitucional nº 95 impondo um “teto de gastos” para as duas décadas seguintes, e paradoxalmente prevê um maior tempo da nossa juventude dentro das unidades escolares. Entretanto, esse tempo a mais da juventude nos bancos escolares, através da escola de tempo integral, o que é uma reivindicação histórica da classe trabalhadora brasileira, dos educadores e da própria juventude, com a Reforma de 2017, não é para que esse jovem tenha acesso às disciplinas de perfil científico que mais adiante vão ser normatizadas pela BNCC, porque ali tem um limite, tem um teto de 1800 horas. A carga horária que aumenta é das disciplinas voltadas aos chamados itinerários formativos e que têm uma grande flexibilidade na questão dos currículos, pois caberá às redes estaduais e municipais e à própria iniciativa privada – a qual também pode ofertar esses itinerários formativos – fazer a curricularização desses itinerários de acordo com as demandas do setor produtivo, isto é, do grande capital. E, como eu já disse, com intuito de colocar o estudante o mais breve possível no mercado de trabalho.

O que também está por trás nesta discussão é que tanto o ministro Mendonça Filho, do governo Temer, como os outros três principais ministros do governo Bolsonaro – Ricardo Vélez Rodríguez, Weintraub e Milton Ribeiro – tiveram o objetivo de criar uma nova cultura na nossa política educacional convencendo as famílias brasileiras que não seria mais necessário o jovem fazer um Curso Superior tampouco pós-graduação para a acessar o mundo do trabalho. Tentaram colocar que, para a ascensão econômica e social das famílias, bastaria um curso técnico para que, de acordo com a narrativa governamental dos últimos quatro ministros da educação, as famílias e os jovens ascendessem no mundo do trabalho e, consequentemente, na sua vida econômica e social.

Além disso, um outro grande fetiche da propaganda governamental no governo Temer era o de que o estudante teria um certo poder de escolha para optar pelo itinerário formativo e estudar de acordo com suas “habilidades”. “Habilidades” é um termo que permeia muito a própria Lei 13415/17, bem como a BNCC e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais, tanto para o Ensino Médio, como também as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional e Tecnológica (EPT) que foram aprovadas no início de 2021 pelo Conselho Nacional de Educação. A Lei 13415/17 estimula um perfil de educação fragmentado visando os itinerários formativos. Nestes, o estudante pode começar a fazer o itinerário e de acordo com seu suposto interesse e escolha, fazendo menção a uma ideologia de um pretenso “protagonismo juvenil”, permitindo que o jovem estudante troque o seu itinerário formativo, o que demonstra o ápice da fragmentação e a falta de perspectiva e de interesse do governo em uma formação de perfil holístico e integral do jovem brasileiro. Dessa forma, no caso dos impactos da Lei 13415/17 para Educação Profissional, a gente observa que a experiência dos Institutos Federais com o modelo de educação integrada que conjuga as disciplinas científicas com os conhecimentos do mundo do trabalho profissional, de forma que esses conhecimentos interajam, mesmo que ainda não estivesse se dando de forma plena nos IF’s, nós ao menos estávamos vivendo e construindo esta experiência, entretanto, com a Lei 13415/17, mesmo essa experiência em construção é colocada em risco.

Certamente os governos Temer e Bolsonaro, especialmente, desejavam um modelo de educação próximo aquilo que alguns países da OCDE vêm aplicando no intuito de aprofundar a EPT. É claro que a EPT no Brasil tem essa particularidade nessa proposta atual, qual seja, com uma formação fragmentada como nessa Reforma do Ensino Médio, o que traz algumas particularidades que apontam esse perfil de uma formação não-holística, como por exemplo o fim da obrigatoriedade da disciplina de língua espanhola que anteriormente era de oferta obrigatória em todas as unidades de ensino de nível médio. Neste caso, o estudante tinha a opção de fazer ou não a disciplina, mas esta, obrigatoriamente, tinha de ser ofertada, contudo, com a Lei 13415/17, o Espanhol torna-se uma disciplina optativa e nessa dinâmica de ajuste fiscal, a tendência é que gradativamente desapareça de boa parte dos currículos das redes que ofertam o Ensino Médio, o que é muito ruim politicamente para o Brasil, no que se refere ao desenvolvimento das relações diplomáticas, econômicas, culturais e sociais com os nossos países vizinhos.

Uma outra particularidade para atender o grande interesse da educação privada no Brasil é a abertura do uso do Ensino a Distância (EaD) no Ensino Médio brasileiro. A lei 13415/17 abre essa possibilidade, mas a normatização disso vem um pouco depois, em 2018, através das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em especial com o itinerário informativo que foi feito pelo Conselho Nacional de Educação, o qual prevê que 20% do Ensino Médio ofertado de forma matutina ou vespertina possa ser via EAD, 30% para os cursos de Ensino Médio noturno pode ser EaD, e no caso de Educação de Jovens e Adultos, o EJA, até 80% da carga horária pode ser ofertada no ensino a distância. Neste caso do EJA isso é muito mais dramático, porque a gente tem a consciência de que boa parte do jovem que está na EJA já foi excluído em determinado momento de sua vida do acesso à educação e é provável também que este jovem tenha dificuldades com relação à acessibilidade digital. Assim, abrir a possibilidade para que 80% da carga horária do EJA seja via EaD é aprofundar as desigualdades sociais que já existem entre a juventude brasileira.

Leonardo Almeida da Silva – Para concluirmos: você imagina que as escolas particulares – em especial as de ponta, as de mais alto custo – irão readequar seus modelos aos dessas Reformas ou vão manter, em grande medida, o modelo atual, no sentido de continuar preparando parte dos filhos das elites para o ingresso no Ensino Superior? A Reforma do Ensino Médio acentua essa dualidade: a escola pública, de um modo geral, preparando os filhos da classe trabalhadora para o setor de serviços uberizado e precarizado e as escolas particulares de mais alto custo preparando os filhos das elites para o ingresso no Ensino Superior e posteriormente a pós-graduação e os melhores concursos públicos e postos de trabalho no setor privado, aumentando ainda mais o fosso de desigualdades existente atualmente?

Matheus de Mesquita Pontes - Sim, a Reforma do Ensino Médio deve contribuir para perpetuar as desigualdades sociais existentes no país. É bem provável que as escolas privadas de médio e pequeno porte passem por um processo de falência, fato que já estava acontecendo mesmo antes da pandemia e que se intensificou de 2020 para cá, dado que muitas escolas de médio e pequeno porte acabaram fechando as suas portas e a tendência é que os grandes conglomerados de educação, que não ofertam somente a educação básica, mas também o Ensino Superior, são esses os que têm a tendência de permanecer neste mercado educacional.

Penso que a tendência seja a de que essas grandes corporações privadas que ofertam a educação básica e o Ensino Médio venham a ofertar de forma conjunta os 4 itinerários informativos, dado que a Lei 13415/17 abre essa possibilidade de ofertar em conjunto os quatro itinerários formativos de perfil, digamos, científicos: Ciências Humanas, Matemática, Linguagem e Ciências da Natureza, inclusive em tempo integral, o que já acontece em grandes unidades escolares destas redes. Então, estes não teriam grandes dificuldades. O grande ponto é que a classe média empobrecida no Brasil com a dinâmica da precarização do trabalho e da crise econômica dos últimos anos tem tendido a não conseguir manter os seus filhos nessas unidades escolares.

O movimento que percebo é o da classe média mais robusta economicamente, junto da grande elite, são os que conseguirão manter seus filhos nessas escolas de ponta do grande empresariado do mercado educacional. Por outro lado, as grandes corporações da educação que ofertam o Ensino Superior também vislumbram abocanhar uma parte do orçamento da educação nesse novo formato de Ensino Médio, pois as IPES, as Instituições Privadas de Ensino Superior, pela pressão que exerceram sobre o governo federal, também poderão ofertar cursos técnicos de nível médio. Somente até o ano de 2020 as IPES solicitaram ao governo federal e ao MEC a abertura de mais de 3000 cursos técnicos nas suas unidades de ensino.

Leonardo Almeida da Silva – É possível que o ENEM continue cobrando a universalidade dos conteúdos do Ensino Médio, sendo que quem terá acesso a estes componentes curriculares ao longo de todo o Ensino Médio serão os estudantes destas escolas das grandes corporações privadas que você menciona?

Matheus de Mesquita Pontes - Sim, o ENEM vai continuar avaliando somente as disciplinas vinculadas à BNCC naquele teto de 1800 horas. Já em relação aos componentes curriculares existentes em qualquer outro dos cinco itinerários formativos não existe ainda uma normatização através do Conselho Nacional de Educação sobre como eles serão avaliados e, com relação a eles, em certo grau, não há a perspectiva de que adentrem como áreas cobradas no ENEM. O que sabemos é que, na prática, quem tiver a possibilidade de perpassar os quatro itinerários formativos de perfil mais científico – Língua Portuguesa, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Matemática – quem tiver mais contato com esses itinerários formativos ao longo do Ensino Médio, em um modelo mais próximo do formato que tínhamos até então, serão estes os que terão sempre a possibilidade de ter um melhor desempenho no ENEM.

 

Referência

COSTA, Marilda de Oliveira & SILVA, Leonardo Almeida da. Educação e Democracia: Base Nacional Comum Curricular e novo ensino médio sob a ótica de entidades acadêmicas da área educacional. Revista Brasileira de Educação. v. 24,  2019. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v24/1809-449X-rbedu-24-e240047.pdf



[1] Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense e doutor em Ciência

Política pela mesma universidade. Professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro

entre 2010 e 2018 e da rede federal (IFMT-Campus Cáceres) entre 2018 e 2020. Professor de

Sociologia na Universidade do Estado de Mato Grosso e colaborador no Mestrado em

Educação no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu) da mesma universidade,

na disciplina Políticas Educacionais, Estado e Sociedade entre 2018 e 2022. Membro do

Projeto de Extensão Diálogos do Fim do Mundo, da Universidade Federal Fluminense (UFF-

Campos dos Goytacazes).

[2] Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás Campus Avançado de Catalão

(2004), mestrado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (2008) e doutorado em

História pela Universidade Federal de Goiás (2018). Professor do Ensino Básico, Técnico e

Tecnológico (EBTT) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso

(IFMT-Campus Cáceres) desde 2010. Dirigente Sindical no Sindicato Nacional dos Servidores

Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE)-MT.

[3] A entrevista foi realizada via Google Meet em 19/06/22.

 


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Reconhecer resultado eleitoral não é mera formalidade

Fonte: https://g1.globo.com. Foto: REUTERS/Adriano Machado


Vitor Vasquez (UFPI)



    Jair Bolsonaro demorou quase dois dias para se pronunciar após a derrota eleitoral que sofreu no último 30 de outubro. No breve pronunciamento feito dia 01 de novembro, o atual presidente não contestou o resultado eleitoral, mas tampouco foi objetivo em reconhecê-lo. Não parabenizou seu adversário Lula e afirmou que as manifestações contrárias ao resultado das urnas que paralisaram rodovias no país à fora eram “fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”. Ou seja, ao mesmo tempo em que não contestou a decisão dos eleitores, deixou no ar um questionamento sobre a lisura do pleito.
    Reconhecer o resultado de eleições não é mera formalidade ou questão de etiqueta. Na verdade, o gesto é fundamental para o bom funcionamento de uma democracia na medida em que legitima um de seus principais pilares. Segundo Schumpeter (1961), eleições nada mais são do que um método utilizado para se escolher representantes. Método bastante difundido, aliás. Eleições são usadas para seleção de síndico, representante discente, líderes de categorias de classe e por aí a fora, inclusive para definir a presidência da República no Brasil. No entanto, para que tal método seja efetivo, ele deve ser legitimado por todos que dele participam, incluindo representados e postulantes a representantes.
    A questão da legitimação ganha ainda mais relevância em regimes democráticos. De acordo com Przeworski (1997), o reconhecimento dos resultados eleitorais, ao garantir a possibilidade de alternância no poder, evita que conflitos políticos sejam resolvidos de maneira violenta. Para o autor, a mera possibilidade crível de troca de governo já produz esse efeito de resolução pacífica de divergências políticas, mas, quando isso ocorre pelas vias eleitorais, as consequências são ainda mais positivas.
    Para ilustrar seu argumento, Przeworski primeiro propõe uma situação hipotética em que o acesso ao governo ocorre por sorteio, como numa loteria. Ou seja, a definição de quem vai governar e a sua permanência no poder independeriam das vontades dos cidadãos. Não haveria, portanto, relação entre eleição e representação. O autor sustenta que, mesmo sob estas condições, os adversários derrotados no sorteio atual prefeririam esperar pacificamente a nova rodada de loteria, pois suas chances de ascender ao poder seriam reais e probabilisticamente consideráveis.
    Assim, a resolução violenta de conflitos seria evitada pelo simples fato de que as forças políticas, quando sabem que suas chances de ascender ao poder são críveis, aguardam sua vez de governar. Mas a possibilidade de alternância no poder garantiria não apenas o aceite do resultado, mas também que o vencedor faça um governo moderado. Isto ocorreria por duas razões. Primeiro porque o ocupante atual do governo sabe que, em algum momento do futuro, ele perderá esse posto. Ao governar de forma radical, prevalecendo apenas as suas preferências, incentivaria seus adversários a agir da mesma maneira quando for a vez deles. Por isso, todos deveriam preferir governar moderadamente para induzir os adversários a agir de forma análoga. Segundo porque, como os competidores sabem que em algum momento voltarão ao cargo, eles evitam motivos para rebeliões, o que é mais provável em governos mais radicais. Porém, para que tudo isso esteja no horizonte, é fundamental que as regras do método, neste caso a loteria, sejam legitimadas pelos rivais políticos. 
    Mas, se apenas a escolha por sorteio basta, por que eleições são instituições políticas tão caras a regimes democráticos? Para responder a esta pergunta é preciso reter que o principal incentivo garantido pela definição por sorteio é a garantia de alternância no poder. Isto é, todos os adversários sabem que sua hora de governar chegará. 
    A alternância também é promovida por eleições, desde que haja limites para reeleição e que as disputas eleitorais sejam limpas, justas, regulares e competitivas. Porém, além de promover alternância no poder e, por isso, incentivar líderes a governar de forma moderada, Przeworski afirma que eleições reduzem a probabilidade de que conflitos políticos sejam resolvidos de forma violenta e, para que isso ocorra é fundamental que eleitores e adversários aceitem o resultado das urnas. Aceitar o resultado eleitoral torna o ato de votar uma legitimação da democracia. Isso significa que o indivíduo aceita participar daquele processo decisório e está de acordo com suas regras. Além disso, devemos considerar que votar revela informações sobre paixões, valores e interesses. Por isso, se você desafia um resultado eleitoral, você desafia paixões, valores e interesses da maioria dos eleitores.
    Przeworski sabe que eleições sozinhas não são capazes de resolver conflitos políticos. Elementos como economia e contexto político e social também influenciam nestas questões. Porém, a probabilidade de que conflitos políticos sejam resolvidos de forma pacífica em países onde há eleições livres e competitivas e que promovam alternância no poder é bem maior. Para tanto, porém, as forças derrotadas eleitoralmente devem aceitar o resultado e agir em conformidade a ele, assumindo que outras oportunidades de assumir o poder chegarão, mas somente serão viabilizadas pelas urnas. Qualquer alternativa diferente disso é trilhar para algum regime distante do democrático. O ponto, portanto, é que eleições são instituições indissociáveis dos regimes democráticos, sendo uma condição mínima essencial para que outros aspectos normativos como justiça, dignidade, segurança e liberdade também possam ser atendidos.
    Ao não aceitar explicitamente o resultado da disputa presidencial, Bolsonaro coloca em xeque a própria democracia brasileira. Questiona inclusive os resultados do primeiro turno, quando seu atual partido, PL, elegeu 99 deputados federais e 129 deputados estaduais, maiores números nos dois âmbitos. E faz isso sinalizando aos seus eleitores que todo o esforço de campanha foi em vão, sugerindo que não reconheçam o governo eleito. Uma radicalização nesse sentido pode até mesmo gerar um cenário de violência, pois insinua que a resolução de conflitos políticos pela via democrática não é algo válido. Não se trata de aceitar os resultados a todo custo, afinal, eleições, para produzir seus efeitos, devem ser limpas e justas. Mas, para questioná-las é preciso responsabilidade e provas contundentes, caso contrário, além de choro de mau perdedor, as consequências das dúvidas colocadas são perigosas à democracia. E é o que temos visto atualmente, com inúmeros casos de manifestações golpistas. Por isso, devemos estar atentos visando garantir que a alternância realmente ocorra, mas também com o objetivo de manter a credibilidade do nosso arcabouço eleitoral.

Referências bibliográficas

PRZEWORSKI, A. Una defensa de la concepción minimalista de la democracia. Revista Mexicana de Sociologia, vol. 59, n. 3, p. 3-36, 1997.

SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro, RJ: Fundo de Cultura, 1961. 


terça-feira, 15 de novembro de 2022

O golpismo na agenda do bolsonarismo: como chegamos até aqui

 

                                                  Créditos da Foto: Sergio Lima/Poder 360

Escrito por Rafael Polari de Alverga Kritski[i]

 

Transcorridas duas semanas desde a vitória do ex-presidente Lula na eleição presidencial, chama atenção a resiliência de protestos que demandam uma intervenção militar perante o resultado do pleito. A crença em informações falsas e teorias conspiratórias, o ensejo autoritário, racismo aberto e utilização de recursos imagéticos que remetem ao nazismo são algumas de suas características estruturantes. Contudo, essas manifestações não devem surpreender: nos últimos anos, consolidou-se uma corrente de extrema-direita no Brasil, a qual tem como marco embrionário exatamente o golpe de Estado ocorrido em 2016. Isto é, combinam-se uma agenda política extremista à direita com demandas autoritárias e golpistas.

O segundo e interrompido mandato de Dilma Rousseff foi atravessado por grandes protestos – principalmente nas capitais estaduais e federal – que demandavam sua deposição. Sendo mais preciso, a oposição não reconheceu o resultado de 2014 e fez de tudo para inviabilizar a gestão: nos dias seguintes ao pleito, o PSDB, então presidido pelo candidato derrotado Aécio Neves, entrou com pedido de auditoria da votação, que se sustentava em denúncias de supostas fraudes expostas em redes sociais. Portanto, não há novidade nesse tipo de recurso e há uma continuidade entre o golpismo de 2014-2016 e o de 2022.

Considero que há uma linha de continuidade entre àquelas manifestações e as atuais, mesmo que marcada por tensões e contradições. Entre 2014 e 2016, os protestantes concentravam um perfil de eleitores de Aécio, brancos, idosos e com renda familiar acima de 10 salários mínimos. Sua pauta difusa se concentrava sob o eixo de destituição da presidenta, num gradiente que variava do apelo ao impeachment ou cassação da chapa até o pedido por intervenção militar ou estrangeira. Estes, mais violentos, eram minoritários no conjunto, mesmo que mais histriônicos. Ali, políticos da direita partidária e entidades federativas de classe financiavam e convocavam os protestos, que foram decisivos para a criação de um aparente clima de maioria favorável à derrubada de Dilma. Isto é, um polo da elite política forjada durante a Nova República insuflou um movimento radical à direita e antidemocrático quando este serviu aos seus propósitos.

Contudo, essa corrente de extrema-direita e autoritária não arrefeceu durante o governo Temer. Pelo contrário: seguindo uma tendência global de emergência de emergência da extrema-direita, seja pela radicalização das direitas tradicionais e/ou pela emergência de novos atores políticos anteriormente periféricos no debate público, houve um profundo rearranjo entre as elites políticas e a extrema-direita chegou ao poder a partir da eleição de Jair Bolsonaro. Sua figura, mitificada pelos seus apoiadores, amalgamou esse movimento em torno de si, gestando uma identidade coletiva para os participantes desses protestos. Não à toa, desde então, são comumente reunidos no vocábulo “bolsonarismo” – o que é um tema de debate.

De lá pra cá, os bolsonaristas se radicalizaram, sempre em sintonia com o intento autoritário – não concretizado, mas desejado – do presidente contra o poder judiciário, a imprensa e partidos e movimentos de esquerda. Os casos de violência política aberta aumentaram, além de um alinhamento evidente de parcelas da burocracia do Estado, sobretudo forças armadas, polícias estaduais e operadores do poder Judiciário a esse movimento. Isto é, o chamado bolsonarismo se alastrou e se solidificou na sociedade civil ao mesmo tempo em que se encrustou no Estado brasileiro em diversas esferas.

Além disso, esse movimento tem a capacidade de ampliar para além de si: mesmo com a piora nas condições de vida da maioria da população e uma gestão genocida da pandemia do coronavírus, Bolsonaro atingiu sólido resultado eleitoral, ficando apenas dois milhões de votos atrás de Lula. Contudo, duas questões têm de ser levadas em conta: a volatilidade de uma parcela do eleitorado que migrou para Jair desde o primeiro turno, considerando que haviam apenas duas candidaturas competitivas; e o uso da máquina pública para uma indústria de compra de votos. Afirmar que o orçamento da união foi todo girado para a tentativa de reeleição, sobretudo nas semanas que antecederam o segundo turno, não é ser superlativo.

Renova-se, então, uma pergunta que tem sido constante nos últimos anos: qual é o tamanho real do chamado bolsonarismo? Essa indagação talvez nunca encontre uma resposta definitiva, considerando a dificuldade de estabelecer os marcadores para um apoio genérico ao Bolsonaro como esse movimento. É necessário, então, estabelecer algumas características para sabermos o que desejamos encontrar. Considero o chamado bolsonarismo uma expressão do neofascismo contemporâneo, que, resumidamente, em minha concepção, se assenta num pressuposto de exclusão – não só política, mas violenta – de determinados agrupamentos sociais identificados como inimigos, sob marcadores ideológicos, de raça, gênero e classe. Por isso, o golpismo atual faz parte de seu repertório: afinal, não é o movimento que tem de se adequar ao sistema político e aos princípios da democracia liberal, mas, por sua natureza antipolítica e violenta, o ordenamento político é que teria de ser alterado para o reestabelecimento de uma hierarquia formal entre cidadãos. É disso que se trata.

Até aqui, as vigílias em frente aos quartéis ou símbolos militares parecem reunir esse movimento, sem angariar apoio no conjunto da sociedade. Creio que, de 2014 pra cá, esse movimento passou por uma depuração: as parcelas menos extremistas foram se distanciando – ou sendo distanciadas, considerando a paranoia presente no discurso delirante –, de modo que o grupo foi ficando cada vez mais coeso em torno da maior radicalidade, mesmo que ampliando socialmente para outras camadas da sociedade. Sua maior expressão nesses atos golpistas, que, vale destacar, estão longe de serem espontâneos, mas sim fruto de muito financiamento obscuro. Portanto, não parece ter tamanho e força para emplacar uma tentativa real de golpe de Estado.

Ainda assim, não é possível ignorar sua presença na cena política brasileira. Utilizando uma palavra que está na moda, o golpismo e o fascismo foram “normalizados”. Há uma complacência – ou mesmo colaboração – dos agentes de repressão em relação aos manifestantes, assim como se espraia em espaços como a imprensa comercial a necessidade de pacificação e unificação do país, isto é, esterilizando o conflito político e propondo uma nova transição pelo alto. Imprensa comercial, aliás, que em duas semanas já age novamente com virulência contra Lula e o PT.

Então, evidencia-se que o Brasil inicia um momento político marcado pela novidade, mas também pela conservação da marca destes últimos oito anos, de uma violenta extrema-direita que não desaparecerá apenas a partir da mudança de governo, mesmo se este obtiver ótimos resultados e aprovação. O chamado bolsonarismo não é um entulho removível, mas uma corrente política que só desaparecerá a partir da construção de uma outra hegemonia, combatendo seus aspectos ideológicos – e suas raízes profundas no traço escravocrata do Brasil –, buscando suas fontes de financiamento e sustentação institucional. Caso contrário, um golpe de Estado, que se fixou novamente como uma ideia em nossa vida política, mesmo que como um espectro, sempre estará à nossa porta.



[i] Professor substituto do Departamento de Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutorando e mestre em Ciência Política pela UFF (PPGCP-UFF). Contato: rafaelkritski@gmail.com