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sexta-feira, 12 de maio de 2023

 

Livro O que é meu: memórias, estradas, caminhões e a politização da vida

 

Texto escrito por Flávia Mendes

 

José Henrique Bortoluci, professor de sociologia da FGV/SP,  lançou há poucas semanas o seu livro de estreia na literatura, O que é meu, publicado pela editora Fósforo. Antes mesmo de ser lançado no Brasil já era um sucesso lá fora, atraiu o interesse de editoras de 10 países, algo raríssimo entre os autores brasileiros. 

O livro narra as histórias do pai do autor, José Bortoluci, e as inúmeras viagens, aventuras e situações inusitadas que viveu como caminhoneiro desde os 22 anos, em meados dos anos 1960 cruzando o país de norte a sul. Também somos apresentados a história do próprio autor, que ascendeu socialmente graças aos estudos. Foi escrito a partir de seis entrevistas gravadas que o autor fez com seu pai após o diagnóstico de câncer, no final do ano de 2020, mas também de anotações no caderno, nota do celular, comentários e frases escutadas, das memórias afetivas do autor e do diário de sua mãe.

Escrevo entre duas devastações. Uma delas acomete o corpo do meu pai. A outra é coletiva, nacional. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais conseguimos contar. (BORTOLUCI, 2023, p. 20).

 

O autor fala no livro que inicialmente pensou em fazer uma história social dos caminhoneiros, ou uma sociologia histórica da categoria e o pai seria um dos casos, mas desiste, assim como deixa de lado a preocupação com método e estilo, que em suas palavras, viraram “penduricalhos teóricos” (BERTOLUCI, 2023. P. 26) a partir da urgência imposta pelo diagnóstico de câncer do pai.

O pai de José Bortoluci fez o exercício de memória, de resgatar como era a vida na estrada e contar para o filho, que desde a infância tinha interesse pelas histórias vividas pelo pai, que chegava a ficar quarenta, cinquenta dias fora de casa. “O pai caminhoneiro visita a casa, a esposa e os filhos.” (BERTOLUCCI, 2023. p.9).  

 Enquanto a rotina daquela família acontecia em Jaú, estado de São Paulo, com a mãe que também trabalhava para sustentar a casa e os dois filhos, o pai estava cruzando o país pelas rodovias, ajudando a ocupar a Amazônia, projeto dos militares durante a ditadura que contribuiu para o processo de destruição da floresta, crescimento do garimpo ilegal e as inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas.

O parque industrial do país se expandia e a demanda por novos modelos de caminhão era crescente, sobretudo nos anos do chamado “milagre econômico”, entre os finais dos anos 1960 e meados de 1970. Esse ilusório “milagre” teve o caminhão como sua condição de possibilidade em um país continental, quase desprovido de linhas férreas e dotado de um exíguo sistema fluvial para o transporte de cargas. (BORTOLUCI, 2023, p. 51).

 

José Henrique Bortoluci observa que a palavra ditadura pouco aparece na narrativa do pai. Quando o pai fala de militares, fala de sujeitos concretos que conheceu, alguém que conversou, que cruzou seu caminho, ou os soldados que levou na carroceria do seu caminhão no início dos anos 1970. O pouco que recorda e remete ao autoritarismo da época, é sobre o medo que existia de falar, inclusive de falar a palavra presidente. (BORTOLUCI, 2023, p. 84). Sobre a repressão, torturas e mortes o pai comenta: “a gente até ouvia falar de vez em quando, mas na estrada eu nunca vi nada disso”. (BORTOLUCI, 2023, p. 84). É interessante observar que ao mesmo tempo que não há referências críticas a ditadura e aos militares, também não há elogios, de modo que o autor chega a observar: me atrapalho quando tento revestir suas falas com o glossário do debate político ilustrado e progressista com que estou acostumado”. (BORTOLUCI, 2023, p. 83).

O pai do autor, Jaú, como era conhecido na estrada, foi um dos inúmeros trabalhadores que ajudaram na construção da Transamazônica, carregando no caminhão materiais para aquela obra, mas também o sonho de uma vida melhor.

Os ideais do empreendedorismo não são novidade entre as classes trabalhadoras brasileiras. O “sonho de não ter patrão” sempre andou de mãos dadas com o “sonho da casa própria”, e ambos impõem riscos para os trabalhadores: o fantasma da dívida, o flagelo dos juros, a precariedade das redes de proteção social, as sucessivas crises econômicas, chance real de perder tudo e não ter alternativa. Como autônomo, meu pai pagou por anos a previdência pública para conseguir se aposentar com apenas um salário mínimo, depois de décadas de trabalho fatigante.  (BORTOLUCI, 2023, p. 53).

 

O livro nos apresenta falas do José Bortoluci, chamado pelos familiares e na cidade onde mora de Didi, sobre a vida de caminhoneiro que teve, a saudade que sentia de casa, os amigos que fez na estrada, os medos, as aventuras de cruzar o país com cargas que tinham prazo para serem entregues. Ao mesmo tempo, o livro O que é meu mescla essas memórias com as análises do filho, sociólogo, que une a vida privada do pai às lembranças de sua infância, quando já notava as contradições entre o que escutava em casa e o que era contado na escola, assim como a análise sócio-política da vida do país. A politização da vida, daquilo que faz parte do seu cotidiano como pesquisador e professor, que atravessava a vida do seu pai, da sua família e de outros trabalhadores.  É esta relação entre o micro e o macro, entre as histórias de vida do pai e as desigualdades constitutivas do Brasil, que faz do livro uma obra que pode ser lida, estudada e pensada não apenas pelo viés da literatura, porque a escrita de José Bortoluci também é política. Ao narrar as histórias do pai, um senhor de quase oitenta anos que tem poucos registros de cartas, fotografias e documentos, é feito o exercício de dar voz a alguém que por sua condição de classe não teria a vida narrada.  

Como se narra a vida de um homem comum? Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de registros daqueles que constroem o mundo, que escrevem suas histórias com mãos e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada. (BERTOLUCI, 2023. P. 22)

 

O autor observa, as poucas representações artísticas sobre os caminhoneiros, apesar da importância que tiveram para a história do país, por exemplo, no período da ditadura militar e os ideais de ordem e progresso do período autoritário, mas também nos dias atuais.

Não se trata de uma questão exclusiva dessa categoria, claro. Essa carência de representações é sintoma das enormes limitações das elites culturais brasileiras em elaborarem imagens do povo que dialoguem com a vida real dos trabalhadores com seus universos culturais, suas estéticas e suas gramáticas políticas múltiplas. O “povo” geralmente aparece na arte do período como categoria abstrata, ou na fórmula repetida de um “povo pré-revolucionário”, aos moldes do marxismo da vez; ou então como manifestações de um “povo folclórico”, rural, romântico e pré-moderno. Na maioria dos casos, trabalhadores reais, em sua imensa diversidade, não correspondem em quase nada a esses modelos.  (BERTOLUCI, 2023. P. 54)

 

O distanciamento que o Bertoluci observa, entre o que a elite cultural e intelectual do país escreve, produz e pensa sobre a classe trabalhadora, é semelhante ao que alguns pesquisadores apontam como uma das problemáticas que fez com que apenas com o resultado da eleição presidencial de 2018 alguns percebessem o distanciamento que há entre a academia e a vida cotidiana da classe trabalhadora no Brasil. Entre uma grande parcela da população com seus recortes de classe, raça, gênero e religião, e o que se pensava sobre essas pessoas, o que é importante ou não para elas, como suas vidas são pensadas, vividas, sonhadas, e a relação desse cotidiano com a vida política do país. As frases do pai de  Bertoluci representam um modo de pensar que não é só dele, mas é representativo de uma parcela da sociedade brasileira, como por exemplo, a afirmação de que não importa quem venceu nas eleições “já que no outro dia a gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito”. (BERTOLUCI, 2023. P. 42).

O livro embora conte parte da vida de um senhor de mais de oitenta anos, a partir da narrativa do filho, não se desconecta do presente, do que é repetição histórica na vida do Brasil, como a violência do Estado, a violência no campo, o desmatamento na Amazônia, a ditadura e o papel dos militares, a desigualdade social e como é dura e difícil a vida das classes trabalhadoras no nosso país.

 

Referências Bibliográficas

BORTOLUCI, José Henrique. O que é meu. São Paulo: Fósforo, 2023.