Livro O que é meu: memórias, estradas, caminhões e a politização da vida
Texto escrito por Flávia Mendes
José Henrique Bortoluci,
professor de sociologia da FGV/SP, lançou
há poucas semanas o seu livro de estreia na literatura, O que é meu, publicado
pela editora Fósforo. Antes mesmo de ser lançado no Brasil já era um sucesso lá
fora, atraiu o interesse de editoras de 10 países, algo raríssimo entre os
autores brasileiros.
O livro narra as histórias
do pai do autor, José Bortoluci, e as inúmeras viagens, aventuras e situações
inusitadas que viveu como caminhoneiro desde os 22 anos, em meados dos anos
1960 cruzando o país de norte a sul. Também somos apresentados a história do
próprio autor, que ascendeu socialmente graças aos estudos. Foi escrito a
partir de seis entrevistas gravadas que o autor fez com seu pai após o
diagnóstico de câncer, no final do ano de 2020, mas também de anotações no
caderno, nota do celular, comentários e frases escutadas, das memórias afetivas
do autor e do diário de sua mãe.
Escrevo entre duas
devastações. Uma delas acomete o corpo do meu pai. A outra é coletiva,
nacional. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do
grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais
conseguimos contar. (BORTOLUCI, 2023, p. 20).
O autor fala no livro que
inicialmente pensou em fazer uma história social dos caminhoneiros, ou uma
sociologia histórica da categoria e o pai seria um dos casos, mas desiste,
assim como deixa de lado a preocupação com método e estilo, que em suas
palavras, viraram “penduricalhos teóricos” (BERTOLUCI, 2023. P. 26) a partir da urgência imposta pelo diagnóstico
de câncer do pai.
O pai de José Bortoluci fez
o exercício de memória, de resgatar como era a vida na estrada e contar para o
filho, que desde a infância tinha interesse pelas histórias vividas pelo pai, que
chegava a ficar quarenta, cinquenta dias fora de casa. “O pai caminhoneiro
visita a casa, a esposa e os filhos.” (BERTOLUCCI, 2023. p.9).
Enquanto a rotina daquela família acontecia em
Jaú, estado de São Paulo, com a mãe que também trabalhava para sustentar a casa
e os dois filhos, o pai estava cruzando o país pelas rodovias, ajudando a ocupar
a Amazônia, projeto dos militares durante a ditadura que contribuiu para o
processo de destruição da floresta, crescimento do garimpo ilegal e as inúmeras
violências sofridas pelos povos indígenas.
O parque industrial do
país se expandia e a demanda por novos modelos de caminhão era crescente,
sobretudo nos anos do chamado “milagre econômico”, entre os finais dos anos
1960 e meados de 1970. Esse ilusório “milagre” teve o caminhão como sua
condição de possibilidade em um país continental, quase desprovido de linhas
férreas e dotado de um exíguo sistema fluvial para o transporte de cargas. (BORTOLUCI,
2023, p. 51).
José Henrique Bortoluci
observa que a palavra ditadura pouco aparece na narrativa do pai. Quando o pai
fala de militares, fala de sujeitos concretos que conheceu, alguém que
conversou, que cruzou seu caminho, ou os soldados que levou na carroceria do
seu caminhão no início dos anos 1970. O pouco que recorda e remete ao
autoritarismo da época, é sobre o medo que existia de falar, inclusive de falar
a palavra presidente. (BORTOLUCI, 2023, p. 84). Sobre a repressão, torturas e
mortes o pai comenta: “a gente até ouvia falar de vez em quando, mas na estrada
eu nunca vi nada disso”. (BORTOLUCI, 2023, p. 84). É interessante observar que
ao mesmo tempo que não há referências críticas a ditadura e aos militares,
também não há elogios, de modo que o autor chega a observar: me atrapalho
quando tento revestir suas falas com o glossário do debate político ilustrado e
progressista com que estou acostumado”. (BORTOLUCI, 2023, p. 83).
O pai do autor, Jaú, como
era conhecido na estrada, foi um dos inúmeros trabalhadores que ajudaram na
construção da Transamazônica, carregando no caminhão materiais para aquela
obra, mas também o sonho de uma vida melhor.
Os ideais do
empreendedorismo não são novidade entre as classes trabalhadoras brasileiras. O
“sonho de não ter patrão” sempre andou de mãos dadas com o “sonho da casa
própria”, e ambos impõem riscos para os trabalhadores: o fantasma da dívida, o
flagelo dos juros, a precariedade das redes de proteção social, as sucessivas
crises econômicas, chance real de perder tudo e não ter alternativa. Como
autônomo, meu pai pagou por anos a previdência pública para conseguir se
aposentar com apenas um salário mínimo, depois de décadas de trabalho
fatigante. (BORTOLUCI, 2023, p. 53).
O livro nos apresenta falas
do José Bortoluci, chamado pelos familiares e na cidade onde mora de Didi,
sobre a vida de caminhoneiro que teve, a saudade que sentia de casa, os amigos
que fez na estrada, os medos, as aventuras de cruzar o país com cargas que
tinham prazo para serem entregues. Ao mesmo tempo, o livro O que é meu
mescla essas memórias com as análises do filho, sociólogo, que une a vida
privada do pai às lembranças de sua infância, quando já notava as contradições
entre o que escutava em casa e o que era contado na escola, assim como a
análise sócio-política da vida do país. A politização da vida, daquilo que faz
parte do seu cotidiano como pesquisador e professor, que atravessava a vida do
seu pai, da sua família e de outros trabalhadores. É esta relação entre o micro e o macro, entre
as histórias de vida do pai e as desigualdades constitutivas do Brasil, que faz
do livro uma obra que pode ser lida, estudada e pensada não apenas pelo viés da
literatura, porque a escrita de José Bortoluci também é política. Ao narrar as
histórias do pai, um senhor de quase oitenta anos que tem poucos registros de
cartas, fotografias e documentos, é feito o exercício de dar voz a alguém que
por sua condição de classe não teria a vida narrada.
Como se narra a vida de
um homem comum? Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de
registros daqueles que constroem o mundo, que escrevem suas histórias com mãos
e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada. (BERTOLUCI,
2023. P. 22)
O autor observa, as poucas
representações artísticas sobre os caminhoneiros, apesar da importância que
tiveram para a história do país, por exemplo, no período da ditadura militar e
os ideais de ordem e progresso do período autoritário, mas também nos dias
atuais.
Não se trata de uma
questão exclusiva dessa categoria, claro. Essa carência de representações é
sintoma das enormes limitações das elites culturais brasileiras em elaborarem
imagens do povo que dialoguem com a vida real dos trabalhadores com seus
universos culturais, suas estéticas e suas gramáticas políticas múltiplas. O
“povo” geralmente aparece na arte do período como categoria abstrata, ou na
fórmula repetida de um “povo pré-revolucionário”, aos moldes do marxismo da
vez; ou então como manifestações de um “povo folclórico”, rural, romântico e
pré-moderno. Na maioria dos casos, trabalhadores reais, em sua imensa
diversidade, não correspondem em quase nada a esses modelos. (BERTOLUCI, 2023. P. 54)
O distanciamento que o Bertoluci
observa, entre o que a elite cultural e intelectual do país escreve, produz e
pensa sobre a classe trabalhadora, é semelhante ao que alguns pesquisadores
apontam como uma das problemáticas que fez com que apenas com o resultado da
eleição presidencial de 2018 alguns percebessem o distanciamento que há entre a
academia e a vida cotidiana da classe trabalhadora no Brasil. Entre uma grande
parcela da população com seus recortes de classe, raça, gênero e religião, e o
que se pensava sobre essas pessoas, o que é importante ou não para elas, como suas
vidas são pensadas, vividas, sonhadas, e a relação desse cotidiano com a vida
política do país. As frases do pai de
Bertoluci representam um modo de pensar que não é só dele, mas é
representativo de uma parcela da sociedade brasileira, como por exemplo, a
afirmação de que não importa quem venceu nas eleições “já que no outro dia a
gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito”. (BERTOLUCI, 2023. P. 42).
O livro embora conte parte
da vida de um senhor de mais de oitenta anos, a partir da narrativa do filho,
não se desconecta do presente, do que é repetição histórica na vida do Brasil,
como a violência do Estado, a violência no campo, o desmatamento na Amazônia, a
ditadura e o papel dos militares, a desigualdade social e como é dura e difícil
a vida das classes trabalhadoras no nosso país.
Referências Bibliográficas
BORTOLUCI, José Henrique. O que é meu.
São Paulo: Fósforo, 2023.
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