Escrito e fotografado por Nathalia Ferreira Gonçales[i]
Este ensaio
fotográfico apresenta as mobilizações dos moradores de Font de la Pólvora, zona
leste da cidade de Girona, comunidade da Catalunha, em decorrência dos sucessivos
cortes de luz que estão acontecendo há alguns anos no bairro. A
institucionalização dos processos de precarização desse território, marcado
desde sua constituição por narrativas de marginalização e abandono, acentua uma
política de escassez histórica do Estado espanhol e catalão em torno da
população residente, majoritariamente de etnia cigana, e agrava o imaginário de
contravenção sobre práticas e condutas ali inscritas.
Através
de declarações públicas dos representantes políticos elaboradas em reuniões, assembleias
e coletivas de imprensa, é flagrante a constante tentativa de criminalização do
bairro em sua totalidade, como se fosse possível instituir uma dimensão
existencial propensa a condutas desviantes e práticas de infração que seriam a
causa última da interrupção prolongada de energia. Ao longo dos problemas que
emergem na vida do bairro, estes modos de habitar a falta vão compondo um campo
de representações sobre inscrições de vulnerabilidade e reinvenções de
possibilidades de vida às margens do Estado.
As
batidas policiais nos apartamentos do bairro vêm de encontro ao discurso contundente,
que pude escutar repetidas vezes no falatório cotidiano dos moradores, proferido
pela prefeita da cidade de Girona, Marta Madrenas, ao atribuir os problemas no
fornecimento de energia ao alto nível de fraudes elétricas e ao cultivo de
drogas. Em incontáveis entrevistas públicas, a prefeita definiu os cortes em
função da criminalidade espraiada por aquele bairro. “– Delincuencia!” foi o adjetivo usado pela representante política
para enquadrar a suposta conduta desviante dos moradores de Font de la Pólvora.
Certa vez uma moradora proferiu que a vida às escuras só entende
quem a vive. Somente a experiência pode conferir a dimensão material de um cotidiano
interrompido pelos cortes, pela ausência de tudo aquilo que deriva da eletricidade
no espaço doméstico. A gestão do cuidado, da comida, da limpeza, do consumo de
internet, de gestos banais de conforto e aconchego, ações corriqueiras, quase mecânicas,
que ficam suspensas quando na falta do que se poderia esperar ou prever para o dia
a dia de um lar. Amanhecer sem luz e ir dormir sem luz. É através desse
intervalo capaz de cindir a vida ao meio que as manifestações dos moradores de
Font de la Pólvora irrompem como rotas para contornar os implacáveis mecanismos
de rebaixamento e precarização que circunscrevem aquele território e as pessoas
que ali habitam.
Omissão, inação, descaso, abandono. São muitas as formas pelas quais os moradores nomeiam as “ausências ativas” (Fernandes, 2020) da administração pública. Da mesma maneira, foram muitas as manifestações públicas que transcorreram, movidas por essa força coletiva de transformar a realidade dada, impulsionadas pela necessidade de criar outras possibilidades para além da marginalização social. As inúmeras incursões por instâncias burocráticas, incluindo reuniões e plenárias, indicam um conjunto de pistas para “sobreviver na adversidade” (Hirata, 2018). De fato, os moradores aprendem a transitar por espaços de negociação, reivindicar medidas de acordo com os termos da lei, tecer comentários irônicos e sarcásticos, se revoltar quando possível, calar quando necessário. Essas pistas são compostas por um arranjo de universos embaralhados que permitem acionar diferentes repertórios de acordo com o contexto em jogo. Os cantos e gritos que ecoam pelas ruas pitoresca de Girona insistem sobre aquilo que parece inaudível aos ouvidos da cidade e, uma vez mais, os moradores repetem em coro: nós não somos delinquentes.
Referências bibliográficas:
FERNANDES, Camila. A
força da ausência. A falta dos homens e do “Estado” na vida de mulheres
moradoras de favela. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana,
Rio de Janeiro, n.36, pp. 206-230, dez. 2020.
HIRATA, Daniel. Sobreviver
na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: EdUFSCar, 2018.
[i] Professora substituta do Departamento
de Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Doutoranda e mestre no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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