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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ESPECIAL 200 ANOS FRIEDRICH ENGELS


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Deslocados e destituídos da natureza

Cabo Domingo


Como argumentado no texto anterior, pensamos que as múltiplas crises que estamos vivendo no contexto da pandemia de COVID-19 são, primeiramente, consequências da racionalidade que o homem burguês estabelece com a natureza a partir da modernidade. Segundo essa racionalidade o controle total da natureza é condição sine qua non para o progresso e se encontra intimamente vinculada com o discurso científico.

Dita racionalidade e uma visão positivista da ciência são dois dos fundamentos da mentalidade burguesa e, também, pilares do modo de produção capitalista. A ideia desse texto é fazer alguns apontamentos para uma genealogia dessa racionalidade e demonstrar que é a partir dela que se constituem algumas dificuldades para pensar a pandemia. Em síntese: a “colonialidade da natureza” e o discurso científico que a sustenta impossibilitam ver o que podemos chamar de dimensão primeira da pandemia: sua alta plausibilidade. Por quê nos quedamos boquiabertos com o que estamos vivendo agora? Foi uma das perguntas que nos fizemos no texto anterior. Qualquer resposta a essa pergunta deveria contemplar, pelo menos, três dimensões do imaginário social: 1. A de que o homem é superior ao vírus (porque é superior à natureza) e tem ao seu lado a ciência: logo, um vírus mortal é possível, mas pouco provável, 2. A de que tal vírus mortal pode causar danos em grande escala: é possível, mas pouco provável, afinal sempre aparece um remédio, uma vacina…. 3. Aquela em que o Estado, do tipo mais ou menos “bem estar”, ou seja, algo responsável, com um corpo de técnicos comprometidos com a causa pública e arquirrival do neoliberalismo aparecerá: é possível, mas não provável.

A maioria das reflexões elaboradas desde qualquer campo do pensamento crítico estabelece algum tipo de causalidade entre o colapso ambiental e a pandemia, entretanto essas causalidades ainda estão sendo pensadas a partir de uma concepção burguesa de mundo, na qual a relação entre homem e natureza se dá a partir de uma descontinuidade entre ambos. Na qual a distinção entre humanos e não humanos são de natureza e não de grau.

Como demonstra Romero (2001) na mentalidade cristã feudal não é possível observar uma descontinuidade entre homem e “natureza”, o homem está imerso na natureza e não a reconhece como algo exterior a ele. Ambos são criações divinas e estão sujeitos aos desejos, mistérios e leis de Deus. As causalidades são de ordem sobrenatural e por tanto não são cognoscíveis. Para Romero (o. cit.) a conformação da mentalidade burguesa marca uma ruptura com o pensamento cristão feudal estabelecendo uma nova forma de compreender a “si” e ao mundo, observa-se uma mudança nas imagens do homem, da natureza, da sociedade, da política, da economia e da história.

O processo de secularização (outro tema…) é entendido como fundamental na conformação dessa nova mentalidade pois rompe a identidade entre real e irreal (sobrenatural), típica do pensamento medieval. Essa ruptura é fruto do estabelecimento de uma “relação prática” com uma realidade operativa. Em outras palavras, a atitude burguesa se preocupa com mecanismos práticos para relacionar-se com o mundo imediato, com problemas de ordem cotidiana. Para a burguesia o que se torna cada vez mais relevante é saber quais ações resultam em determinadas reações e criar mecanismos para solucionar problemas relativos à suas expectativas. Ao suprimir a dimensão sobrenatural a “realidade” se torna cognoscível. 

O homem passa a ser concebido como sujeito capaz de conhecer e passível de ser conhecido. A palavra “natureza” começa a ser grafada com maiúscula representando sua condição de “ente” com existência própria, essa passa a ser “objeto de estudo” (para os fisiocratas, por exemplo) e de contemplação (como se pode observar na literatura, principalmente a da época da expansão colonialista). O domínio sobre a natureza se intensifica: lembremos da dimensão que Polanyi dá à vinculação do homem com a terra e como o “moinho satânico” a triturou.

Gudynas afirma que existe uma ideologia do progresso que engloba diferentes paradigmas sobre o desenvolvimento e, consequentemente, várias ideias sobre a natureza e seu papel nas estratégias de desenvolvimento. Tal afirmação de Gudynas (op. cit) pode ser perfeitamente observada na conquista da América, desde a chegada dos conquistadores ao “novo continente” a relação orgânica entre o domínio da natureza e a ideia de “progresso” mudou várias vezes de forma, mas manteve a natureza como uma cesta de recursos (Gudynas, op. cit. 10). A famosa frase de Eduardo Galeano "O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra", ainda que careça de algumas precisões, é ilustrativa do que estamos apontando, seja sob a ótica mercantilista ou sob a ótica liberal o que vemos è a conformação de uma colonialidade da natureza sem a qual não poderia haver desenvolvimento do modo de produção capitalista. A natureza colonial de dito modo de produção já é conhecida por lo menos desde Rosa Luxemburgo. 

Quando começamos a ouvir sobre os casos em China não nos preocupamos, era possível, mas pouco provável, quando na verdade deveria ser: é possível e altamente provável. As epidemias e pandemias seguirão sendo cada vez mais frequentes e possivelmente mais letais. 

Uma das grandes dificuldades na contenção e controle do coronavírus vieram das dificuldades e demoras em implementar o lockdown, nem falar das oposições. A isso se somam as dificuldades em transformar todas as “práticas higiênicas sobre o corpo” em uma rotina 24/7 de “práticas de desinfecção”, que como tais exigem artefatos inacessíveis ou escassos para grande parte da população mundial, como água e sabão.

O vírus foi destituído da natureza em seu nascimento, ele é filho da ciência, não foi nomeado por qualquer homem, ou qualquer mulher. Pertence ao mundo do científico, da saúde, da técnica, dos doutores e suas vacinas. Sua origem na zoonosis, o contágio pelo ar, o habitar em nossos corpos somados às fotos da “recuperação da natureza” (ocasionada pelo lockdown) que invadiram as redes nos mostra que outra vez vemos a fronteira entre homem e natureza mudando, ao mesmo tempo em que permanece. O vírus continua fora da natureza, porque foi pensado em chave de normalidade e normalização, por isso se insiste tanto em uma “nova normalidade”. A busca por essa “nova normalidade” não foi exatamente marcada por uma preocupação pela sustentabilidade de artefatos médicos e sanitários, dos barbijos produzidos em países que não cumprem leis ambientais... Mas afinal, que tem tempo para pensar no “meio ambiente”? Em primeiro lugar o mais importante: diferenças de grau de natureza.


Bibliografia

Descola, Philippe. Alèm da Natureza e cultura. in Tessituras, Pelotas, v. 3, n. 1, p. 7-33, 2015

Romero, José Luis. Estudio de la mentalidad burguesa, Breviarios, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2001. 

Gudynas, Eduardo. Ecologia, Economia y Etica del Desarrollo Sostenible - CLAE, Montevideo, 2004




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Algumas considerações sobre fake news e as eleições municipais de 2020

 



 

As fake news são notícias falsas disseminadas em meios de comunicação com a intenção de chamar a atenção, desinformar e obter vantagens (BRAGA, 2018), atingindo e difamando a imagem de algo, de alguém ou de um grupo de pessoas, ou mesmo de um pensamento. É notório que a disseminação dessas notícias falsas se intensifica no período eleitoral. Sabemos que este tipo de prática é facilmente espalhado pelas mídias digitais, como foi possível atestar no processo eleitoral brasileiro de 2018.

O fenômeno das fake news vem crescendo e alguns de seus exemplos vêm se tornando plataforma política, como demonstram algumas figuras públicas, certos políticos e criadores de conteúdo em meios digitais (como o Youtube). Isso pode afetar disputas e resultados eleitorais e impactar princípios democráticos, como vem sugerindo especialistas de várias áreas do conhecimento acerca, por exemplo, das eleições presidenciais de 2016 que resultaram na vitória de Donald Trump (nos Estados Unidos) e das eleições de 2018 no Brasil [1]. Em pelo menos seis ações judiciais no Tribunal Superior Eleitoral - TSE, a chapa formada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e o vice, Hamilton Mourão, esteve envolvida no compartilhamento em massa de disparos de mensagens via WhatsApp e na difusão de notícias falsas durante o processo eleitoral de 2018 [2].

Se nesse período as campanhas eleitorais ocorreram vultosamente através do meio digital, nas eleições de 2020 elas foram ainda mais intensas, já que, além da consolidação do uso das redes sociais como busca de informação popular, a pandemia ocasionada com o novo Corona Vírus limitou certos eventos de campanha eleitoral que promoviam aglomerações.

É possível afirmar que, após essas experiências eleitorais e uma pressão da sociedade civil sobre o combate às fake news, vem crescendo a maior atenção ao fenômeno, tanto por parte de estudiosos de diversas áreas (por exemplo, Ciência Política, Antropologia, História, Linguística, Comunicação, Psicologia, Neurociências, Direito etc), como vindo das instituições democráticas e estatais, tais como o Poder Legislativo, ou o Judiciário (com novos protocolos vindos do TSE).

Em 2020, a Justiça Eleitoral desenvolveu e aperfeiçoou mecanismos de combate a essas desordens informativas disseminadas em redes sociais e em ferramentas de troca de mensagens, investindo em propagandas e campanhas de fiscalização e combate a estas notícias falsas nos meios de comunicação (como o rádio e a televisão) e em plataformas digitais. Além disso, promoveu cursos para servidores dos Tribunais Regionais, com a participação das plataformas Facebook, Instagram e WhatsApp, que aderiram ao Programa de Enfrentamento à Desinformação com Foco nas Eleições 2020 do TSE [3].

Este ano, os eleitores tiveram a sua disposição pelo menos três meios para denunciar irregularidades como as notícias falsas. As denúncias puderam ser registradas no Pardal, ou encaminhadas ao Ministério Público Eleitoral (MPE) e às Ouvidorias da Justiça Eleitoral. O Pardal é um aplicativo desenvolvido para este tipo de informação, onde o cidadão, após baixar a ferramenta, pode fazer fotos ou vídeos e enviá-los para a Justiça Eleitoral. De acordo com a localidade da denúncia, a interface web disponibilizada nos sites dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) permite que estes acompanhem e analisem as denúncias. 

 

 “Entre as situações que podem ser denunciadas, estão o registro de uma propaganda irregular, como a existência de um outdoor de candidato – o que é proibido pela legislação –, e a participação de algum funcionário público em um ato de campanha durante o horário de expediente. Para este ano, foram implantadas algumas novidades, como a disponibilização de um link específico para que o denunciante possa registrar as denúncias diretamente no Ministério Público Eleitoral de cada unidade da Federação, além de maior rigor na identificação do denunciante”[4].

 


Segundo o site do TSE, só o Whatsapp baniu mais de mil contas no país após denúncias recebidas em seus canais em 2020.  Foram mais de quatro mil e quinhentas denúncias acolhidas no período de 27 de setembro a 15 de novembro neste ano. E estes números podem aumentar, pois o segundo turno ainda nem terminou [5].

Outros atores sociais parecem também ter aprendido com a experiência das eleições passadas e suas fake news. É o caso de figuras políticas que foram alvo destas falsas notícias, como a candidata a prefeita de Porto Alegre, Manuela D’Ávila (PCdoB) e o candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL), ambos chegando ao segundo turno nestas disputas eleitorais de 2020.

É possível ver uma atitude mais combativa em relação às fake news direcionadas aos candidatos, se comparada com as posturas de suas candidaturas nas eleições de 2018, quando estes participaram do pleito presidencial. Ou mesmo comparando com a candidatura de Fernando Haddad (PT), que disputou o segundo turno com Bolsonaro (PSL) na ocasião.

Mentiras ligando o candidato petista à defesa do incesto, por exemplo, foram compartilhadas por figuras como Olavo de Carvalho no seu canal de Youtube, que realizou uma interpretação distorcida do livro de Haddad, apelando para a revolta de seus seguidores [6]. A candidatura petista lançou uma nota desmentindo a afirmação, que foi compartilhada por alguns veículos midiáticos e ratificada por sites de checagem de notícias que desmentiram a afirmação de Carvalho. A mesma postura foi tomada a partir de outros boatos. A tendência foi seguida por outros candidatos, também alvos de fake news, como Manuela que era a candidata vice de Haddad e Boulos, também candidato a presidente. Contudo, não foram suficientes no que diz respeito à exclusão de vídeos e links com notícias falsas, ou à interrupção dos compartilhamentos em massa.

Os processos judiciais também não causaram o êxito esperado a tempo, além de terem sido escassos, se comparados com o então candidato do PSL, campeão em número de processos acusando oponentes de propagarem fake news (foram 42 ações de Bolsonaro, e 22 de Haddad) [6].

Após o pleito de 2018, Manuela passou a rebater várias fake news criadas contra a sua imagem, desmentindo e apresentando argumentos e provas contrárias às notícias falsas em suas redes sociais. Chegou até a criar conteúdo específico sobre o tema em seu canal de Youtube, com entrevistas e vídeos de respostas. Neste ano, antes do dia da votação do primeiro turno, a candidata conseguiu a remoção de 91 links com mentiras a seu respeito, graças ao ordenamento do TRE-RS (Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul) direcionado ao Facebook, Instagram, Twitter e ao YouTube [8].

Boulos, em 2020, também aderiu à exposição das fake news em suas redes sociais, apresentando esta postura em sua campanha eleitoral, ao dar mais visibilidade ao boato, correndo o risco de levar a mentira até onde ela ainda não havia chegado. No entanto, essa divulgação veio acompanhada de contra argumentações claras e com provas. É possível ver ao longo de sua candidatura em São Paulo vídeos rebatendo fake news relacionadas aos seus pais, ao seu envolvimento no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST e à postura desse movimento social. Ele até mesmo rebate essas acusações diretamente às pessoas nas ruas que, em entrevistas, reproduzem esses boatos.

Estas práticas mostraram-se estratégias de campanha bem sucedidas, pois, ao invés de esconder o boato e deixá-lo às margens, circulando nas bolhas de seus adversários, os candidatos expõem para um número cada vez maior de pessoas aquela informação equivocada atrelada a um contra argumento, expondo e causando desconforto àqueles que reproduziram o conteúdo falacioso.

As medidas e fatos apresentados acima mostram que as chamadas fake news são mais bem combatidas em conjunto, partindo de ações de educação, fiscalização e debate público. Estas medidas contribuíram para um cenário eleitoral com menos desinformação. É o que afirmou o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, antes da votação do primeiro turno: “Ainda temos dois dias até as eleições. Mas, talvez, nos últimos tempos, esta tenha sido a eleição com menor incidência de notícias fraudulentas” [9].

As eleições de 2020 já apresentaram avanços, mas ainda há muito a se pensar e a fazer para combater e diminuir este mal presente em nosso meio, sobretudo no “tempo da política” (PALMEIRA, GOLDMAN, 1996).

 

[1] Diversos artigos sobre o assunto foram produzidos, (ALLCOTT, GENTZKOW, 2017), (BOVET, MAKSE, 2019), (ARDUINO, MORAES, 2019), (SARLET, SIQUEIRA, 2020), dentre outros.

[2] Matéria “Eleição de 2020 terá mesmos problemas de fake news de 2018, dizem especialistas”, disponivel em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53187041.

[3] Como é possivel ver nas matérias “Facebook, Instagram e WhatsApp participam de curso do TSE sobre combate às fake news nas Eleições 2020” e “TSE faz campanha contra a desinformação: “Se for fake news, não transmita”, disponíveis em https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Setembro/facebook-instagram-e-whatsapp-participam-de-curso-do-tse-sobre-combate-as-fake-news-nas-eleicoes-2020 e https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Julho/tse-faz-campanha-contra-a-desinformacao-201cse-for-fake-news-nao-transmita201d.

[4] “Eleitor conta com vários canais para denunciar fake news e outras irregularidades nas Eleições 2020”, disponível em https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Outubro/eleitor-conta-com-varios-canais-para-denunciar-fake-news-e-outras-irregularidades-nas-eleicoes-2020.

[5] Matéria “WhatsApp bane mais de mil contas no país após denúncias recebidas em canal do TSE”, disponivel em https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/whatsapp-bane-mais-de-mil-contas-no-pais-apos-denuncias-recebidas-em-canal-do-tse.

[6] “Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro”, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html.

[7] Segundo matéria “Haddad foi o maior alvo de ações por suspeita de propagar fake news, seguido de Bolsonaro”, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/12/haddad-foi-o-maior-alvo-de-acoes-por-suspeita-de-propagar-fake-news-seguido-de-bolsonaro.shtml.

[8] Ver em “Justiça ordena exclusão de 91 links com mentiras sobre Manuela D'Ávila”, disponível em https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/11/10/justica-redes-sociais-novente-links-fake-news-manuela-davila.htm.

[9] Segundo matéria “Eleições 2020: Barroso aponta 'nível mínimo' de fake news nas campanhas municipais”, disponível em https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/noticia/2020/11/13/eleicoes-2020-barroso-aponta-nivel-minimo-de-fake-news-nas-campanhas-municipais.ghtml.

 

BIBLIOGRAFIA

ALLCOTT, Hunt. GENTZKOW, Matthew. Social Media and Fake News in the 2016 Election.  Journal of Economic Perspectives—Volume 31, Number 2—Spring 2017—Pages 211–236.

ARDUINO, Luiz Guilherme de Brito. MORAES, Vânia de.  A Transmissão de fake news como um recurso de propagabilidade durante a campanha eleitoral de 2018. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vitória - ES – 03 a 05/06/2019.

BOVET, Alexandre & MAKSE, Hernán. Influence of fake news in Twitter during the 2016 US presidential election. Nature Communications. 2019.

BRAGA, Renê Morais da Costa. A indústria das fakenews e o discurso de ódio. In: PEREIRA, Rodolfo Viana (Org.). Direitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio: volume I. Belo Horizonte: Instituto para o Desenvolvimento Democrático, 2018. p. 203-220.

PALMEIRA, Moacir. GOLDMAN, Marcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1996. 

SARLET, Ingo & SIQUEIRA, Andressa. (2020). LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SEUS LIMITES NUMA DEMOCRACIA: o caso das assim chamadas “fake news” nas redes sociais em período eleitoral no Brasil. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS. 6. 534-578. 10.21783/rei.v6i2.522.

 


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Os Dilemas da Sociabilidade Contida

Escrito por Erley Mairon Faria da Silva*

 

A decretação pela Organização Mundial da Saúde – OMS, de pandemia do novo coronavírus, em 11 de março deste ano, produziu enormes e sérios impactos nas coletividades e indivíduos ao redor do mundo. Desde cedo ficou claro que o método mais eficiente de combate à propagação do vírus, e provavelmente o único, era o afastamento social. Em que pese a polêmica que essa medida suscitou, os erros e acertos apontam para a eficiência do isolamento. Os governantes que compreenderam os perigos envolvidos, mesmo se arriscando a perder popularidade, ao lançarem-se na difícil tarefa de conter a sociabilidade de seus governados – chegando em muitos casos a adoção do isolamento social e do lockdown, medida mais extrema – lograram maior êxito dos que adotaram uma postura mais vacilante ou de superconfiança em suas próprias virtudes, reais ou imaginárias. Muitos deles agiram contrários ao adágio popular chinês: “Mas vale acender uma vela do que maldizer a escuridão”. Esquivaram-se, muitos deles, das ações possíveis em louca batalha retórica que nenhuma contribuição produziu. A confiança que a população devotava aos sistemas peritos[i], foi irresponsavelmente desidratada.

 

Normalidade X Excepcionalidade

 

A adoção de medidas restritivas também violou algumas lógicas, porque muitas dessas medidas encerram em seu bojo a violação de direitos e garantias individuais, tais como a contenção do direito de ir e vir, toques de recolher, fechamento de fronteiras aéreas, terrestres, fluviais e marítimas, além de controle social intenso[ii]. Todas essas medidas vão contra os direitos humanos e dispositivos constitucionais de muitos países, incluindo o Brasil. Houve uma imposição circunstancial para se abrir mão, provisoriamente, de alguns desses direitos em busca de valores maiores, tais como a preservação da saúde, da vida individual e da espécie. Não foi por razões de Estado ou só por decisão de governos autoritários que se mudou, provisoria e parcialmente, estes itens do pacto social, mas orientados pelo senso de preservação e da formação de uma consciência comunitária. Afinal, os direitos que assistem os humanos só podem ser usufruídos se o humano que o reivindica estiver vivo. Além disso, permanece a compreensão de que o interesse coletivo deve se sobrepor ao individual[iii]. Então, de uma hora para outra a paisagem social mudou, o uso de máscaras, o distanciamento social, o isolamento dos grupos de riscos, o fechamento de escolas, do comércio com permissão preferencial de atividades essenciais, o fim de atividades e locais que geram aglomerações como jogos, práticas de esportes, frequência a estádios, templos religiosos, praias e a adoção do ensino a distância e do trabalho remoto.

 

Isolamento X Economia

 

É claro que um item recorrente na pauta de discussão foi a polarização entre o isolamento social e a economia. Um falso dilema. Ainda que não seja ilógico supor que um isolamento prologando possa levar a economia à falência, uma vez mais prevaleceu para muitos a noção de que a preservação da vida e da espécie tem precedência sobre as questões econômicas, já que estas não podem ter primazia sobre a vida. Logo a primazia da sobrevivência acaba se impondo. Mas a grande lição do momento ainda estava para ser ensinada e aprendida. O Estado ressurge como o principal elemento de equilíbrio social, político e econômico. Sua interferência e protagonismos não são só possíveis, mas necessárias ao crescimento econômico, contrariando o principal dogma do receituário neoliberal, “a não-intervenção do Estado na economia”. Lição comprovada por dados econômicos que apresentaram resultados elucidatórios, reforçando o papel e importância de Estado forte. A queda na arrecadação não tomou o tombo que se esperava; o consumo se recuperou com o auxílio emergencial; as vendas experimentaram alta na internet; o desemprego oscilou e mesmo crescendo não está muito diferente dos maus resultados pré-pandemia e pós-reforma trabalhista. O fato é que o grande drama se deu na área que deveria ter recebido o mais especial dos cuidados, a saúde pública. A forma como o governo resolveu combater a pandemia foi de total descaso. E aqui, é importante enfatizar a diferença entre Estado e governo[iv], porque o governo foi errático e fomentador de polêmicas onde deveria existir coordenação, gestão e liderança. Foi incapaz de criar um comitê para gerenciamento da crise. Foi preciso a ação de outros poderes da República para recuperar alguma estabilidade institucional e impedir que ações tresloucadas e contramarchas do governo agravassem em extremo a crise, ainda assim, sem conseguir evitar efeitos colaterais profundos. Os números de infectados e mortos é a grande evidência do fracasso. O poder legislativo e judiciário que enfrentaram desgastes seguidos, conseguiram recuperar alguma credibilidade ao agir no vácuo deixado pelo poder executivo. Do camarote virtual a sociedade acompanhou os embates na arena política e se encantou com a descoberta de um serviço público que funciona mesmo na maior adversidade, e reagiu, se posicionando contra as “favas contadas” que envolviam a privatização dos Correios, freando o ímpeto do “passa a boiada”. Um decreto do poder executivo que flexibilizava e permitia a privatização dos serviços de saúde, se transformou numa grande onda em defesa do SUS, ao ponto do governo recuar e revogar o decreto após críticas contundentes, muitas delas de seus leais apoiadores. Mas este caso não parece encerrado, o governante parece não aprender com os próprios erros.

 

Educação Presencial X Educação Doméstica

 

Temas outros defendidos com ufanismo por alguns segmentos, como ensino doméstico e o ensino remoto sofreram duro revés no embate com a realidade[v]. A sociedade percebeu o engodo do ensino doméstico quando se viu impotente diante da oportunidade que a ocasião oferecia, as escolas fechadas. Numa medida autoritária, sem discussão e intempestiva, a maior parte dos sistemas públicos de ensino implantou o ensino remoto à revelia dos profissionais de educação para ver sete em cada dez alunos desistir da frequência a essas plataformas. E não adianta adotar a postura de praxe, culpar o professor. Ele foi ignorado, esquecido e preterido nos debates sobre as vantagens mirabolantes dessas plataformas onde muita gente foi convocada a dar pitacos, menos os profissionais de educação.

 

Liberdade X Segurança

 

Os limites entre liberdade e segurança foram testados a exaustão, devolvendo-nos alguma compreensão de que avaliar riscos é calcular o equilíbrio entre ambos e fugir, sempre que possível, dos extremos. É aí, na moderação que podemos encontrar algum direcionamento que torne as opções inteligíveis, e sirva de parâmetro para decisões futuras. Até onde pode ir a liberdade? É uma questão retórica, não há como se padronizar uma resposta que atenda a todos os cenários possíveis, até porque pouquíssimas coisas podem fazer isso, o que não nos tira o desejo de tentar. Liberdade e segurança estão em polos opostos, tornando impossível a posse simultânea da mesma porção de ambas. Aumentar a posse de uma é reduzir a posse da outra, o ponto máximo de uma é o mínimo da outra, de forma que estar totalmente seguro é abrir mão da liberdade e ser totalmente livre é estar em total insegurança. A interferência do poder público hoje oferece os dois. “a verdadeira libertação requer mais, e não menos, da ‘esfera pública’ e do ‘poder público’”[vi]

 

Vida X Morte

 

Alguns itinerários são inexoráveis, e a morte é o exemplo mais emblemático já que caminhamos em direção a ela. Mas quem está vivo deve sempre e, na maioria dos casos, quer lutar pela vida, por sua manutenção, por sua qualidade, por sua ampliação e por sua fruição. Ainda que seja impossível evitar a morte, não é improvável adiá-la. Buscar o extremo da liberdade pode antecipar a morte. Viver no extremo da segurança pode até retardá-la, mas um estilo de vida resultante é contido, reprimido e limitado. Pode não diferir muito de uma prisão, ainda que voluntária e da privação da autonomia. Toda sociabilidade contida e toda liberdade controlada é também uma cidadania reduzida, razão porque só se pode conceber tal situação da forma mais provisória possível. Mas a pandemia tirou de nós a possibilidade de planejar, por enquanto, em curto prazo. À medida que os números do atual calendário vão se esgotando, aumenta a sensação de que essa situação ainda está longe do fim. Já temos o Carnaval sendo adiado, os blocos carnavalescos reprogramando outras datas para a folia. Tudo isso reforça a sensação de que a crise ainda possa se estender para além das suposições mais otimistas. Então, de olho no índice de infectados, na capacidade de atendimento do serviço público de saúde e do saldo dos que perderam a batalha para o Covid-19, é forçoso adotar posturas mais cautelosas e realistas.

 

Considerações Finais

 

Os humanos como seres sociais enfrentam, durante esse período, um tensionamento mais intenso entre liberdade e segurança que para se resolver depende de fatores outros bem além dos recursos cotidianos. A redução da possibilidade de prever cenários imediatos faz aumentar a ansiedade que se soma à nostalgia. A necessidade de interação face a face com os iguais não pode ser de todo substituída pelas interações virtuais. “A compulsão da proximidade”[vii], isto é, a necessidade de encontro em situação de copresença entrou em choque com a contenção da sociabilidade e criou inusitada situação de adiamento forçado das formas comuns de prazer, de fruição como a frequência a locais habituais de interação, por exemplo. Em que pese a falta de respeito às medidas protetivas por muitos, contudo, se observa que os comportamentos descuidados são a exceção e não a regra. Mas é na interferência virtuosa do Estado e nossa crença nos sistemas peritos que nos permite  vislumbrar um cenário mais otimista, uma luz no fim do túnel. Na maior parte dos casos se observa que o exercício da liberdade individual tem ido até onde a segurança permite. Esse é outro dado positivo que aumenta o entusiasmo, porque mesmo em meio à crise, com a omissão, corrupção e desgastes que alguns governantes produziram e sofreram, e com todos os impactos emocionais resultantes, ainda é possível se obter uma resposta que se assente na racionalidade.

 

* Erley Mairon Faria da Silva possui graduação em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal Fluminense - UFF, pós-graduação no Ensino de Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e pós-graduação em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Atualmente é professor docente I de Sociologia da Rede Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Informação extraída do Lattes. 



[i]     Sistemas peritos. A vacinação, por exemplo: “a confiança em sistemas assume a forma de compromisso sem rosto, nos quais é mantida a fé no conhecimento em relação ao qual a pessoa leiga é amplamente ignorante”. In: GIDDENS, Antony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp,1991, p. 91

[ii]    BRASIL. Constituição Federal (1988). Brasília: Senado Federal, 2017. Art. 5º.

[iii]    STF. Parecer da Ministra Cármem Lúcia: “O direito à intimidade e da liberdade individual não pode sobrepor-se ao interesse coletivo. Recurso Extraordinário com Agravo em face de ADI, 761109. 2013.

[iv]   WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1999, p.34.

[v]    O Movimento Escola sem Partido, movimento criado em 2004 por Michel Nagib, movimento conservador e moralista que objetivava censurar conteúdos didáticos de acordo com visões retrógradas e crendices religiosas em oposição ao princípio constitucional de liberdade de cátedra e de expressão.

[vi]   BAUMAM, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeio: Zahar, 2001, p. 68.

[vii]   GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005, p.