Escrito por Erley Mairon Faria da Silva*
A decretação
pela Organização Mundial da Saúde – OMS, de pandemia do novo coronavírus, em 11
de março deste ano, produziu enormes e sérios impactos nas coletividades e
indivíduos ao redor do mundo. Desde cedo ficou claro que o método mais
eficiente de combate à propagação do vírus, e provavelmente o único, era o
afastamento social. Em que pese a polêmica que essa medida suscitou, os erros e
acertos apontam para a eficiência do isolamento. Os governantes que
compreenderam os perigos envolvidos, mesmo se arriscando a perder popularidade,
ao lançarem-se na difícil tarefa de conter a sociabilidade de seus governados –
chegando em muitos casos a adoção do isolamento social e do lockdown, medida
mais extrema – lograram maior êxito dos que adotaram uma postura mais vacilante
ou de superconfiança em suas próprias virtudes, reais ou imaginárias. Muitos
deles agiram contrários ao adágio popular chinês: “Mas vale acender uma vela do
que maldizer a escuridão”. Esquivaram-se, muitos deles, das ações possíveis em
louca batalha retórica que nenhuma contribuição produziu. A confiança que a
população devotava aos sistemas peritos[i], foi
irresponsavelmente desidratada.
Normalidade X Excepcionalidade
A adoção de
medidas restritivas também violou algumas lógicas, porque muitas dessas medidas
encerram em seu bojo a violação de direitos e garantias individuais, tais como
a contenção do direito de ir e vir, toques de recolher, fechamento de
fronteiras aéreas, terrestres, fluviais e marítimas, além de controle social
intenso[ii].
Todas essas medidas vão contra os direitos humanos e dispositivos
constitucionais de muitos países, incluindo o Brasil. Houve uma imposição
circunstancial para se abrir mão, provisoriamente, de alguns desses direitos em
busca de valores maiores, tais como a preservação da saúde, da vida individual
e da espécie. Não foi por razões de Estado ou só por decisão de governos autoritários
que se mudou, provisoria e parcialmente, estes itens do pacto social, mas
orientados pelo senso de preservação e da formação de uma consciência
comunitária. Afinal, os direitos que assistem os humanos só podem ser
usufruídos se o humano que o reivindica estiver vivo. Além disso, permanece a
compreensão de que o interesse coletivo deve se sobrepor ao individual[iii].
Então, de uma hora para outra a paisagem social mudou, o uso de máscaras, o
distanciamento social, o isolamento dos grupos de riscos, o fechamento de
escolas, do comércio com permissão preferencial de atividades essenciais, o fim
de atividades e locais que geram aglomerações como jogos, práticas de esportes,
frequência a estádios, templos religiosos, praias e a adoção do ensino a distância
e do trabalho remoto.
Isolamento X Economia
É claro que
um item recorrente na pauta de discussão foi a polarização entre o isolamento
social e a economia. Um falso dilema. Ainda que não seja ilógico supor que um
isolamento prologando possa levar a economia à falência, uma vez mais
prevaleceu para muitos a noção de que a preservação da vida e da espécie tem
precedência sobre as questões econômicas, já que estas não podem ter primazia
sobre a vida. Logo a primazia da sobrevivência acaba se impondo. Mas a grande
lição do momento ainda estava para ser ensinada e aprendida. O Estado ressurge
como o principal elemento de equilíbrio social, político e econômico. Sua
interferência e protagonismos não são só possíveis, mas necessárias ao
crescimento econômico, contrariando o principal dogma do receituário
neoliberal, “a não-intervenção do Estado na economia”. Lição comprovada por
dados econômicos que apresentaram resultados elucidatórios, reforçando o papel
e importância de Estado forte. A queda na arrecadação não tomou o tombo que se
esperava; o consumo se recuperou com o auxílio emergencial; as vendas
experimentaram alta na internet; o desemprego oscilou e mesmo crescendo não
está muito diferente dos maus resultados pré-pandemia e pós-reforma
trabalhista. O fato é que o grande drama se deu na área que deveria ter
recebido o mais especial dos cuidados, a saúde pública. A forma como o governo
resolveu combater a pandemia foi de total descaso. E aqui, é importante
enfatizar a diferença entre Estado e governo[iv],
porque o governo foi errático e fomentador de polêmicas onde deveria existir
coordenação, gestão e liderança. Foi incapaz de criar um comitê para
gerenciamento da crise. Foi preciso a ação de outros poderes da República para
recuperar alguma estabilidade institucional e impedir que ações tresloucadas e
contramarchas do governo agravassem em extremo a crise, ainda assim, sem
conseguir evitar efeitos colaterais profundos. Os números de infectados e
mortos é a grande evidência do fracasso. O poder legislativo e judiciário que
enfrentaram desgastes seguidos, conseguiram recuperar alguma credibilidade ao
agir no vácuo deixado pelo poder executivo. Do camarote virtual a sociedade
acompanhou os embates na arena política e se encantou com a descoberta de um
serviço público que funciona mesmo na maior adversidade, e reagiu, se
posicionando contra as “favas contadas” que envolviam a privatização dos
Correios, freando o ímpeto do “passa a boiada”. Um decreto do poder executivo
que flexibilizava e permitia a privatização dos serviços de saúde, se
transformou numa grande onda em defesa do SUS, ao ponto do governo recuar e
revogar o decreto após críticas contundentes, muitas delas de seus leais
apoiadores. Mas este caso não parece encerrado, o governante parece não
aprender com os próprios erros.
Educação Presencial X Educação Doméstica
Temas outros
defendidos com ufanismo por alguns segmentos, como ensino doméstico e o ensino
remoto sofreram duro revés no embate com a realidade[v]. A
sociedade percebeu o engodo do ensino doméstico quando se viu impotente diante
da oportunidade que a ocasião oferecia, as escolas fechadas. Numa medida
autoritária, sem discussão e intempestiva, a maior parte dos sistemas públicos
de ensino implantou o ensino remoto à revelia dos profissionais de educação
para ver sete em cada dez alunos desistir da frequência a essas plataformas. E
não adianta adotar a postura de praxe, culpar o professor. Ele foi ignorado,
esquecido e preterido nos debates sobre as vantagens mirabolantes dessas
plataformas onde muita gente foi convocada a dar pitacos, menos os
profissionais de educação.
Liberdade X Segurança
Os limites
entre liberdade e segurança foram testados a exaustão, devolvendo-nos alguma
compreensão de que avaliar riscos é calcular o equilíbrio entre ambos e fugir,
sempre que possível, dos extremos. É aí, na moderação que podemos encontrar
algum direcionamento que torne as opções inteligíveis, e sirva de parâmetro
para decisões futuras. Até onde pode ir a liberdade? É uma questão retórica,
não há como se padronizar uma resposta que atenda a todos os cenários
possíveis, até porque pouquíssimas coisas podem fazer isso, o que não nos tira
o desejo de tentar. Liberdade e segurança estão em polos opostos, tornando
impossível a posse simultânea da mesma porção de ambas. Aumentar a posse de uma
é reduzir a posse da outra, o ponto máximo de uma é o mínimo da outra, de forma
que estar totalmente seguro é abrir mão da liberdade e ser totalmente livre é
estar em total insegurança. A interferência do poder público hoje oferece os
dois. “a verdadeira libertação requer mais, e não menos, da ‘esfera pública’ e
do ‘poder público’”[vi]
Vida X Morte
Alguns
itinerários são inexoráveis, e a morte é o exemplo mais emblemático já que
caminhamos em direção a ela. Mas quem está vivo deve sempre e, na maioria dos
casos, quer lutar pela vida, por sua manutenção, por sua qualidade, por sua
ampliação e por sua fruição. Ainda que seja impossível evitar a morte, não é
improvável adiá-la. Buscar o extremo da liberdade pode antecipar a morte. Viver
no extremo da segurança pode até retardá-la, mas um estilo de vida resultante é
contido, reprimido e limitado. Pode não diferir muito de uma prisão, ainda que
voluntária e da privação da autonomia. Toda sociabilidade contida e toda
liberdade controlada é também uma cidadania reduzida, razão porque só se pode
conceber tal situação da forma mais provisória possível. Mas a pandemia tirou
de nós a possibilidade de planejar, por enquanto, em curto prazo. À medida que
os números do atual calendário vão se esgotando, aumenta a sensação de que essa
situação ainda está longe do fim. Já temos o Carnaval sendo adiado, os blocos
carnavalescos reprogramando outras datas para a folia. Tudo isso reforça a
sensação de que a crise ainda possa se estender para além das suposições mais
otimistas. Então, de olho no índice de infectados, na capacidade de atendimento
do serviço público de saúde e do saldo dos que perderam a batalha para o
Covid-19, é forçoso adotar posturas mais cautelosas e realistas.
Considerações Finais
Os humanos
como seres sociais enfrentam, durante esse período, um tensionamento mais
intenso entre liberdade e segurança que para se resolver depende de fatores
outros bem além dos recursos cotidianos. A redução da possibilidade de prever
cenários imediatos faz aumentar a ansiedade que se soma à nostalgia. A
necessidade de interação face a face com os iguais não pode ser de todo
substituída pelas interações virtuais. “A compulsão da proximidade”[vii],
isto é, a necessidade de encontro em situação de copresença entrou em choque
com a contenção da sociabilidade e criou inusitada situação de adiamento
forçado das formas comuns de prazer, de fruição como a frequência a locais
habituais de interação, por exemplo. Em que pese a falta de respeito às medidas
protetivas por muitos, contudo, se observa que os comportamentos descuidados
são a exceção e não a regra. Mas é na interferência virtuosa do Estado e nossa
crença nos sistemas peritos que nos permite
vislumbrar um cenário mais otimista, uma luz no fim do túnel. Na maior
parte dos casos se observa que o exercício da liberdade individual tem ido até
onde a segurança permite. Esse é outro dado positivo que aumenta o entusiasmo,
porque mesmo em meio à crise, com a omissão, corrupção e desgastes que alguns
governantes produziram e sofreram, e com todos os impactos emocionais
resultantes, ainda é possível se obter uma resposta que se assente na
racionalidade.
* Erley
Mairon Faria da Silva possui graduação em Ciências Sociais (bacharelado e
licenciatura) pela Universidade Federal Fluminense - UFF, pós-graduação no
Ensino de Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e
pós-graduação em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ. Atualmente é professor docente I de Sociologia da Rede Estadual
de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Informação extraída do Lattes.
[i] Sistemas
peritos. A vacinação, por exemplo: “a confiança em sistemas assume a forma de
compromisso sem rosto, nos quais é mantida a fé no conhecimento em relação ao
qual a pessoa leiga é amplamente ignorante”. In: GIDDENS, Antony. As
Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp,1991, p. 91
[ii] BRASIL.
Constituição Federal (1988). Brasília: Senado Federal, 2017. Art. 5º.
[iii] STF.
Parecer da Ministra Cármem Lúcia: “O direito à intimidade e da liberdade
individual não pode sobrepor-se ao interesse coletivo. Recurso Extraordinário
com Agravo em face de ADI, 761109. 2013.
[iv] WEBER,
Max. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia compreensiva. Brasília:
UNB, 1999, p.34.
[v] O
Movimento Escola sem Partido, movimento criado em 2004 por Michel Nagib,
movimento conservador e moralista que objetivava censurar conteúdos didáticos
de acordo com visões retrógradas e crendices religiosas em oposição ao
princípio constitucional de liberdade de cátedra e de expressão.
[vi] BAUMAM,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeio: Zahar, 2001, p. 68.
[vii] GIDDENS,
Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005, p.
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