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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Os Dilemas da Sociabilidade Contida

Escrito por Erley Mairon Faria da Silva*

 

A decretação pela Organização Mundial da Saúde – OMS, de pandemia do novo coronavírus, em 11 de março deste ano, produziu enormes e sérios impactos nas coletividades e indivíduos ao redor do mundo. Desde cedo ficou claro que o método mais eficiente de combate à propagação do vírus, e provavelmente o único, era o afastamento social. Em que pese a polêmica que essa medida suscitou, os erros e acertos apontam para a eficiência do isolamento. Os governantes que compreenderam os perigos envolvidos, mesmo se arriscando a perder popularidade, ao lançarem-se na difícil tarefa de conter a sociabilidade de seus governados – chegando em muitos casos a adoção do isolamento social e do lockdown, medida mais extrema – lograram maior êxito dos que adotaram uma postura mais vacilante ou de superconfiança em suas próprias virtudes, reais ou imaginárias. Muitos deles agiram contrários ao adágio popular chinês: “Mas vale acender uma vela do que maldizer a escuridão”. Esquivaram-se, muitos deles, das ações possíveis em louca batalha retórica que nenhuma contribuição produziu. A confiança que a população devotava aos sistemas peritos[i], foi irresponsavelmente desidratada.

 

Normalidade X Excepcionalidade

 

A adoção de medidas restritivas também violou algumas lógicas, porque muitas dessas medidas encerram em seu bojo a violação de direitos e garantias individuais, tais como a contenção do direito de ir e vir, toques de recolher, fechamento de fronteiras aéreas, terrestres, fluviais e marítimas, além de controle social intenso[ii]. Todas essas medidas vão contra os direitos humanos e dispositivos constitucionais de muitos países, incluindo o Brasil. Houve uma imposição circunstancial para se abrir mão, provisoriamente, de alguns desses direitos em busca de valores maiores, tais como a preservação da saúde, da vida individual e da espécie. Não foi por razões de Estado ou só por decisão de governos autoritários que se mudou, provisoria e parcialmente, estes itens do pacto social, mas orientados pelo senso de preservação e da formação de uma consciência comunitária. Afinal, os direitos que assistem os humanos só podem ser usufruídos se o humano que o reivindica estiver vivo. Além disso, permanece a compreensão de que o interesse coletivo deve se sobrepor ao individual[iii]. Então, de uma hora para outra a paisagem social mudou, o uso de máscaras, o distanciamento social, o isolamento dos grupos de riscos, o fechamento de escolas, do comércio com permissão preferencial de atividades essenciais, o fim de atividades e locais que geram aglomerações como jogos, práticas de esportes, frequência a estádios, templos religiosos, praias e a adoção do ensino a distância e do trabalho remoto.

 

Isolamento X Economia

 

É claro que um item recorrente na pauta de discussão foi a polarização entre o isolamento social e a economia. Um falso dilema. Ainda que não seja ilógico supor que um isolamento prologando possa levar a economia à falência, uma vez mais prevaleceu para muitos a noção de que a preservação da vida e da espécie tem precedência sobre as questões econômicas, já que estas não podem ter primazia sobre a vida. Logo a primazia da sobrevivência acaba se impondo. Mas a grande lição do momento ainda estava para ser ensinada e aprendida. O Estado ressurge como o principal elemento de equilíbrio social, político e econômico. Sua interferência e protagonismos não são só possíveis, mas necessárias ao crescimento econômico, contrariando o principal dogma do receituário neoliberal, “a não-intervenção do Estado na economia”. Lição comprovada por dados econômicos que apresentaram resultados elucidatórios, reforçando o papel e importância de Estado forte. A queda na arrecadação não tomou o tombo que se esperava; o consumo se recuperou com o auxílio emergencial; as vendas experimentaram alta na internet; o desemprego oscilou e mesmo crescendo não está muito diferente dos maus resultados pré-pandemia e pós-reforma trabalhista. O fato é que o grande drama se deu na área que deveria ter recebido o mais especial dos cuidados, a saúde pública. A forma como o governo resolveu combater a pandemia foi de total descaso. E aqui, é importante enfatizar a diferença entre Estado e governo[iv], porque o governo foi errático e fomentador de polêmicas onde deveria existir coordenação, gestão e liderança. Foi incapaz de criar um comitê para gerenciamento da crise. Foi preciso a ação de outros poderes da República para recuperar alguma estabilidade institucional e impedir que ações tresloucadas e contramarchas do governo agravassem em extremo a crise, ainda assim, sem conseguir evitar efeitos colaterais profundos. Os números de infectados e mortos é a grande evidência do fracasso. O poder legislativo e judiciário que enfrentaram desgastes seguidos, conseguiram recuperar alguma credibilidade ao agir no vácuo deixado pelo poder executivo. Do camarote virtual a sociedade acompanhou os embates na arena política e se encantou com a descoberta de um serviço público que funciona mesmo na maior adversidade, e reagiu, se posicionando contra as “favas contadas” que envolviam a privatização dos Correios, freando o ímpeto do “passa a boiada”. Um decreto do poder executivo que flexibilizava e permitia a privatização dos serviços de saúde, se transformou numa grande onda em defesa do SUS, ao ponto do governo recuar e revogar o decreto após críticas contundentes, muitas delas de seus leais apoiadores. Mas este caso não parece encerrado, o governante parece não aprender com os próprios erros.

 

Educação Presencial X Educação Doméstica

 

Temas outros defendidos com ufanismo por alguns segmentos, como ensino doméstico e o ensino remoto sofreram duro revés no embate com a realidade[v]. A sociedade percebeu o engodo do ensino doméstico quando se viu impotente diante da oportunidade que a ocasião oferecia, as escolas fechadas. Numa medida autoritária, sem discussão e intempestiva, a maior parte dos sistemas públicos de ensino implantou o ensino remoto à revelia dos profissionais de educação para ver sete em cada dez alunos desistir da frequência a essas plataformas. E não adianta adotar a postura de praxe, culpar o professor. Ele foi ignorado, esquecido e preterido nos debates sobre as vantagens mirabolantes dessas plataformas onde muita gente foi convocada a dar pitacos, menos os profissionais de educação.

 

Liberdade X Segurança

 

Os limites entre liberdade e segurança foram testados a exaustão, devolvendo-nos alguma compreensão de que avaliar riscos é calcular o equilíbrio entre ambos e fugir, sempre que possível, dos extremos. É aí, na moderação que podemos encontrar algum direcionamento que torne as opções inteligíveis, e sirva de parâmetro para decisões futuras. Até onde pode ir a liberdade? É uma questão retórica, não há como se padronizar uma resposta que atenda a todos os cenários possíveis, até porque pouquíssimas coisas podem fazer isso, o que não nos tira o desejo de tentar. Liberdade e segurança estão em polos opostos, tornando impossível a posse simultânea da mesma porção de ambas. Aumentar a posse de uma é reduzir a posse da outra, o ponto máximo de uma é o mínimo da outra, de forma que estar totalmente seguro é abrir mão da liberdade e ser totalmente livre é estar em total insegurança. A interferência do poder público hoje oferece os dois. “a verdadeira libertação requer mais, e não menos, da ‘esfera pública’ e do ‘poder público’”[vi]

 

Vida X Morte

 

Alguns itinerários são inexoráveis, e a morte é o exemplo mais emblemático já que caminhamos em direção a ela. Mas quem está vivo deve sempre e, na maioria dos casos, quer lutar pela vida, por sua manutenção, por sua qualidade, por sua ampliação e por sua fruição. Ainda que seja impossível evitar a morte, não é improvável adiá-la. Buscar o extremo da liberdade pode antecipar a morte. Viver no extremo da segurança pode até retardá-la, mas um estilo de vida resultante é contido, reprimido e limitado. Pode não diferir muito de uma prisão, ainda que voluntária e da privação da autonomia. Toda sociabilidade contida e toda liberdade controlada é também uma cidadania reduzida, razão porque só se pode conceber tal situação da forma mais provisória possível. Mas a pandemia tirou de nós a possibilidade de planejar, por enquanto, em curto prazo. À medida que os números do atual calendário vão se esgotando, aumenta a sensação de que essa situação ainda está longe do fim. Já temos o Carnaval sendo adiado, os blocos carnavalescos reprogramando outras datas para a folia. Tudo isso reforça a sensação de que a crise ainda possa se estender para além das suposições mais otimistas. Então, de olho no índice de infectados, na capacidade de atendimento do serviço público de saúde e do saldo dos que perderam a batalha para o Covid-19, é forçoso adotar posturas mais cautelosas e realistas.

 

Considerações Finais

 

Os humanos como seres sociais enfrentam, durante esse período, um tensionamento mais intenso entre liberdade e segurança que para se resolver depende de fatores outros bem além dos recursos cotidianos. A redução da possibilidade de prever cenários imediatos faz aumentar a ansiedade que se soma à nostalgia. A necessidade de interação face a face com os iguais não pode ser de todo substituída pelas interações virtuais. “A compulsão da proximidade”[vii], isto é, a necessidade de encontro em situação de copresença entrou em choque com a contenção da sociabilidade e criou inusitada situação de adiamento forçado das formas comuns de prazer, de fruição como a frequência a locais habituais de interação, por exemplo. Em que pese a falta de respeito às medidas protetivas por muitos, contudo, se observa que os comportamentos descuidados são a exceção e não a regra. Mas é na interferência virtuosa do Estado e nossa crença nos sistemas peritos que nos permite  vislumbrar um cenário mais otimista, uma luz no fim do túnel. Na maior parte dos casos se observa que o exercício da liberdade individual tem ido até onde a segurança permite. Esse é outro dado positivo que aumenta o entusiasmo, porque mesmo em meio à crise, com a omissão, corrupção e desgastes que alguns governantes produziram e sofreram, e com todos os impactos emocionais resultantes, ainda é possível se obter uma resposta que se assente na racionalidade.

 

* Erley Mairon Faria da Silva possui graduação em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal Fluminense - UFF, pós-graduação no Ensino de Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e pós-graduação em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Atualmente é professor docente I de Sociologia da Rede Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Informação extraída do Lattes. 



[i]     Sistemas peritos. A vacinação, por exemplo: “a confiança em sistemas assume a forma de compromisso sem rosto, nos quais é mantida a fé no conhecimento em relação ao qual a pessoa leiga é amplamente ignorante”. In: GIDDENS, Antony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp,1991, p. 91

[ii]    BRASIL. Constituição Federal (1988). Brasília: Senado Federal, 2017. Art. 5º.

[iii]    STF. Parecer da Ministra Cármem Lúcia: “O direito à intimidade e da liberdade individual não pode sobrepor-se ao interesse coletivo. Recurso Extraordinário com Agravo em face de ADI, 761109. 2013.

[iv]   WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1999, p.34.

[v]    O Movimento Escola sem Partido, movimento criado em 2004 por Michel Nagib, movimento conservador e moralista que objetivava censurar conteúdos didáticos de acordo com visões retrógradas e crendices religiosas em oposição ao princípio constitucional de liberdade de cátedra e de expressão.

[vi]   BAUMAM, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeio: Zahar, 2001, p. 68.

[vii]   GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005, p.

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