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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Entre a Política e a Economia: o liberalismo heterodoxo de Schumpeter

 

Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)

 

Nota introdutória: Este texto foi concebido como um material de apoio para os meus alunos de Ciências Sociais. As reflexões sobre a atualidade do pensamento político schumpeteriano se estendem para além da sala de aula e permeiam o debate acadêmico contemporâneo.

 

 

Considerado como um dos mais importantes economistas da primeira metade do século XX, o pensador austríaco Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) se notabilizou não apenas por seus escritos econômicos, como também ofereceu uma contribuição original para a área de Ciência Política ao propor uma leitura inovadora sobre as possibilidades da democracia contemporânea em uma época marcada por uma série de transformações tecnológicas. Rotular ou mesmo classificar o pensamento schumpeteriano dentre as principais correntes hegemônicas do pensamento econômico consiste em tarefa quase impossível. Schumpeter é assim um inclassificável, ou melhor dizendo, é dono de um liberalismo heterodoxo que se diferencia, por um lado, do liberalismo clássico, e por outro, da própria Escola Austríaca, que tem como um dos seus principais expoentes o controverso Friedrich Hayek (1899-1902).

Dentre as obras publicadas por Schumpeter ao longo de sua vida estão A natureza e a essência da economia política (1908) e a História da análise econômica (1954). Contudo, nada supera a notabilidade que o autor conquistou após a publicação do clássico Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942). Com o fim da Segunda Guerra, em uma época marcada pela crescente polarização ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, Schumpeter apresenta uma perspectiva incomum ao defender a eficiência do sistema capitalista e a inevitabilidade histórica do socialismo, sem contudo, prescindir do avanço das conquistas democráticas da atualidade. De modo nada convencional, Schumpeter se afasta dos economistas neoclássicos ao contestar o suposto quadro estacionário do capitalismo indicando a alternância entre fases de expansão e de retração na economia de mercado.

Nas primeiras décadas do século XX, a Ciência Econômica passou por uma fase de institucionalização enquanto área de saber acadêmico. De um modo geral, uma parte considerável das análises do processo econômico decorriam de modelos matemáticos, em detrimento de abordagens que faziam uso da linguagem. Compreendida como um domínio científico, a Economia passou a estudar a realidade a partir da observação, da construção de hipotéses, do uso do método dedutivo e da própria verificação dos resultados da pesquisa. Em certa medida, Schumpeter se volta contra a corrente hegemônica no pensamento econômico ao formular interpretações à respeito do desenvolvimento capitalista sem se valer de uma metodologia quantitativa. No período em questão estava em voga no campo liberal a tese de que as forças do mercado seriam capazes de promover o equilíbro econômico ao atuarem de forma livre sem qualquer embaraço governamental. Ao contrário do apregoado pelo ideário liberal, as economias reais viviam passando por sucessivas crises, como se deu com a queda da bolsa de valores de Nova Iorque no ano de 1929. Para explicar a ocorrência das crises cíclicas no âmbito da sociedade capitalista, liberais e marxistas se entrincheiraram em campos antagônicos criando assim alguns paradigmas justificadores. De um lado, o pensamento marxista atribuía a ocorrência das crises às contradições intrínsecas do próprio capitalismo, ao passo que os pensadores liberais as derivavam das constantes intervenções do Estado na economia. De modo original, Schumpeter argumentava que a dinâmica da economia capitalista não transcorria de modo linear, mas era marcada por rupturas e descontinuidades em um processo que culminava em transformações estruturais. As mudanças do capitalismo tinham como cerne a inovação, considerada como uma variável endógena do sistema econômico.

Um conceito paradigmático no âmbito das Ciências Humanas, e particularmente, na área de Ciências Econômicas, é o conceito de destruição criativa. Ao enfatizar a importância da inovação tecnológica para o desenvolvimento econômico, Schumpeter caracterizou o fenômeno da destruição criativa como a capacidade que o sistema capitalista possui de revolucionar a si próprio, em um processo ininterrupto, de modo que novas estruturas acabam por substituir progressivamente estruturas obsoletas: “Esse processo de destruição criativa é o fato essencial do capitalismo. O capitalismo consiste nesse processo e é nele que toda empresa capitalista tem de viver”[1]. De modo nada estático, a empresa capitalista sob o olhar do economista austríaco se renova constantemente em um processo dinâmico ao qual ocorre um rearranjo na cadeia produtiva. A substituição por novas estruturas abrange tanto a inovação tecnológica propriamente dita, como também a criação de um bem ou a qualidade de um bem, ou mesmo a elaboração/atualização de um novo método produtivo. Para Schumpeter, o processo de destruição criativa se constitui como uma variável endógena do sistema capitalista capaz de criar não apenas soluções inteligentes e criativas, mas também problemas decorrentes, como o aumento do desemprego. Não obstante, o otimismo em relação ao processo de destruição criativa era tamanho que Schumpeter presumia, sem qualquer base comprobatória, que o capitalismo levaria à eliminação da pobreza na medida que aumentaria a renda média e o padrão de vida do cidadão comum.   

 Contrapondo-se à doutrina clássica, que entendia a Democracia como a consumação do bem comum através da expressão da vontade geral, Schumpeter segue em certa medida o corolário proposto pela Teoria das Elites ao defender realisticamente a democracia como um método político[2]. Nas palavras de Schumpeter, “o método democrático é o sistema institucional para chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de uma luta competitiva pelo voto do povo”[3]. A partir de uma perspectiva restritiva, o economista austríaco define a democracia como uma disputa pelo poder em que diversos grupos políticos concorrem em eleições periódicas e livres tendo em vista a aquisição do voto popular. As contendas políticas seriam equacionadas pela aceitação das regras do jogo entre os candidatos e partidos em disputa.

Ao contrário da perspectiva utilitarista de John Stuart Mill que entendia a democracia como um valor em si, Schumpeter concebeu a democracia de modo instrumental, ou seja, como um método político. A democracia se caracterizaria como um certo arranjo institucional utilizado para se alcançar decisões políticas – legislativas ou administrativas – sem qualquer valor supremo. Diferente do que pressupôs a teoria clássica, Schumpeter entendia a democracia mais pelo aspecto concorrencial em torno do voto do que propriamente por certa concepção centrada na premissa de soberania popular ou na defesa do sufrágio universal. Em sua principal obra, o autor sustentou que a democracia nada mais seria do que um método para se tomar decisões, o que não lhe revestia de um significado maior para além da sua funcionalidade. Schumpeter argumentava que a democracia se estabelece como um arranjo institucional calcado na livre competição política de grupos organizados em torno do voto. É preciso salientar que nem todos concordaram com a definição schumpeteriana de democracia por considerá-la bastante restritiva, vide Norberto Bobbio[4] e Raymond Aron[5]. Para estes autores, a democracia, além de configurar um método político, possuía uma finalidade intrínseca ao se afirmar no cotidiano da sociedade política como um bem inegociável.

 

Referências Bibliográficas:

ARON, Raymond. Novos temas de sociologia contemporânea. Lisboa: Presença, 1964.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; ASQUINO, Gianfranco (Orgs.) Dicionário de Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.

CARNEIRO, Ricardo (Org.). Os clássicos da economia. São Paulo: Editora Ática, 2008. (Volumes 1 e 2).

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ROLL, Eric. História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. São Paulo: Editora da Unesp, 2017.



[1] SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. São Paulo: Editora da Unesp, 2017, p. 120.

[2] BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; ASQUINO, G. (Orgs.) Dicionário de Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998, p. 325-326.

[3] SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo... Op. cit., p. 366.

[4] Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

[5] Cf. ARON, Raymond. Novos temas de sociologia contemporânea. Lisboa: Presença, 1964.

 


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