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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Diálogos em Memórias com Geovana Tabachi

 

Fonte: Arquivo pessoal de Geovana Tabachi


Entrevistada: Profª Drª Geovana Tabachi[1]


 Thaymara Assis: Professora, que honra contar com o seu depoimento no Projeto Diálogos em Memórias. O objetivo do projeto é resgatar e ressaltar a importância dos professores que compõem o Departamento de Ciências Sociais nesses 60 anos da UFF Campos.

Gostaria que comentasse um pouco sobre suas principais memórias na UFF Campos e os impactos da instituição em sua trajetória profissional.

 

Geovana Tabachi: São várias as memórias. É muito bacana essa proposta de registrar essas memórias. E o quanto elas nos impulsionam às coisas novas também. Eu venho de um momento bem diferente desse em que vocês vivem na UFF agora.

Eu vivenciei todo período na UFF de construção do Departamento de Ciências Sociais, das reuniões do Colegiado se desmembrando e das coordenações sendo criadas.

Antes éramos um departamento só, todos os cursos tinham reuniões e assembleias juntos e eram imensas. Consigo visualizar aquele monte de professores. Uma memória importante que tenho, não é necessariamente sobre questões internas da UFF, mas sobre meu processo de iniciar na UFF Campos, foi quando passei no concurso. Foi uma conquista pessoal, eu trabalhava na prefeitura municipal de Vitória/ES como socióloga, antes, estive na docência superior. Trabalhei por dois anos naquela prefeitura e realizei um trabalho muito bacana, quando fiz o concurso da UFF. Na ocasião das provas, eu estava saindo do hotel indo buscar minha nota do concurso, e eu vi a lua cheia bem na minha frente, daquelas douradas, uma coisa linda... E me veio uma sensação tão boa de vida nova, de algo novo acontecendo uma nova responsabilidade para lidar. Entrei na UFF em 2010, e com doze anos de Universidade, mesmo tendo ficado um tempo afastada, percebo que o trabalho aqui nos proporciona e nos impõe estarmos sempre atentos.

A minha memória em relação a UFF Campos é de conquista, de ver a Universidade se modificando, principalmente depois do meu retorno, com tanta gente nova participando, com alterações que podem ser notadas em nosso curso de Ciências Sociais, com nova matriz curricular, com novos professores e propostas, além de alunos com outras particularidades e comportamentos. Por pior que seja o momento histórico e político que estamos vivendo, na educação ainda temos onde nos segurarmos. Por exemplo, estar aqui, hoje, com uma aluna participando de um projeto sobre memória docente, fazendo uma entrevista, isso é muito gratificante.  Então, ter vivenciado essas e transformações, e lembrar daquela reunião dos professores, todos juntos lá em 2010, e hoje, vemos os departamentos formados e os projetos acontecendo.

Fonte: Arquivo pessoal de Geovana Tabachi

Outra boa lembrança é quando eu e a professora Andrea, criamos o grupo de pesquisa. O Motirõ Nhãdereko foi criado para dar vazão a uma temática em comum entre nós, que é a questão da memória e do patrimônio. Conseguimos realizar algumas atividades, tivemos minicursos, fizemos também um trabalho de ensino, pesquisa e extensão no curso e na Universidade para a Terceira Idade (UNITI). Foi muito bom ver os alunos envolvidos e atuando nas práticas educativas e docentes.  Isso também é uma memória forte para mim.

Outra questão importante é a autonomia que a gente conquista com a entrada no ensino superior público, fato que também tem a ver com as minhas expectativas de futuro, o meu projeto de vida e com meus desejos. Em outras palavras, sair de aluno, de repente, e estar na condição de professor, naquele espaço que você valorizou todo o seu percurso de formação e estudou muito para conquistar. É muito gratificante, muito satisfatório.

A minha trajetória sempre foi no ensino privado, dei aula por muitos anos em faculdade privada num curso de Direito por no mínimo cinco anos. Havia dias em que eu trabalhava em três faculdades, estava de manhã em um lugar, às vezes na mesma noite eu saía de uma faculdade para outra em outro local. Era uma correria e não se via resultado, trabalhava só para dar aula. Lembro de ter feito uma pesquisa em Vitória - ES, na época consegui pelo edital da prefeitura. Mas parece que não rendeu, sabe? Parece que era feita apenas para dar visibilidade à faculdade e não pela relevância do objeto, conteúdo e resultados. A Universidade precisava aparecer.

Então, sair desse ambiente em que se tem que dar aula de cinquenta minutos, sem liberar nenhum aluno antes, além de ter alguém passando no corredor observando a sua aula, alguém verificando as suas práticas e conferindo o seu programa de disciplina. Então, o trabalho na universidade pública é um grande ganho. Saber que temos responsabilidades acerca daquilo que você constrói, do programa de disciplina que você faz, da literatura e das biografias que a gente vai sugerindo. Saber que se pode fazer isso é muito bacana. Então, a UFF Campos representa esse marco para mim, nesse sentido, de uma conquista pessoal, de autonomia e da possibilidade de vislumbrar futuros. Aqui podemos criar, a gente idealiza e a gente pode inventar trabalho.

Dei aula no PROLIND/UFES (Licenciatura Intercultural Indígena), e uma amiga me chamou para participar de uma banca que seria defendida na Terra Indígena e disse que queriam fazer uma comemoração após a defesa. Eu dava aula de PP2 (Prática de Pesquisa em Ciências Sociais II) naquele mesmo dia, mas reorganizei o cronograma da disciplina para poder participar dessa banca que muito me interessava também. Isso para dizer que a gente escolhe e busca mais trabalho. Eu e a professora Andréa, que coordena o Grupo de Pesquisa Motirõ comigo, buscamos sempre algo que estimule a participação dos alunos no grupo. A Universidade é isso, é vida. Nós com nossas práticas damos vida para a instituição funcionar, então a instituição somos nós. Se formos indolentes, não atuando com nosso conhecimento, não estimulando os alunos, não tem como querer que a universidade continue pública, gratuita e de qualidade. Isso fica só no discurso. Não adianta ir para um sindicato, brigar, ir à rua e levantar bandeira. Acho que tem muito a ver com nossas práticas, com os nossos sonhos. Por isso, e, na minha trajetória pessoal, representa muito essa autonomia conquistada na UFF.

Fonte: Arquivo pessoal de Geovana Tabachi




[1] É Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, em Campos dos Goytacazes (COC-UFF). Doutora em Políticas Sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (PPGPS-UENF), com período de doutorado sanduíche (PDSE-CAPES), na Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro em Rede de Investigação em Antropologia - UNL-FCSH-CRIA (2019). Mestre em Antropologia, na Universidade Federal Fluminense (2003). Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES (1997). Atua em temas como memória e patrimônio, festas e cultura popular, interculturalidade, políticas culturais, juventude e ensino de ciências sociais. Líder do Motirõ Nhaderekó Grupo de Pesquisa em Memória e Cultura; membro do Laboratório de Pesquisa e Ensino de Ciências Sociais (LAPECS-UFF); Participante do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-FCSH-UNL); participante do Grupo de Pesquisa Oficina de Estudos do Patrimônio Cultural (Oficina-UENF).

 

 


terça-feira, 12 de setembro de 2023

Sobre os 90 anos de Casa-Grande & Senzala

 

Fonte: Arquivo Público de Pernambuco

Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)

 

Diz-se que uma obra é um clássico quando consegue atingir um amplo e notório nível de reconhecimento público no decorrer do tempo, seja pela qualidade literária, pelo seu alcance duradouro, pela sua relevância teórica e ou mesmo pela sua importância nos marcos da cultura. A atribuição do status de “clássico” a uma determinada obra não segue, por assim dizer, critérios objetivos e tangíveis, podendo derivar de fatores e características que são difíceis de serem definidos a priori. A despeito dos critérios utilizados, constitui fato inequívoco que a obra Casa-Grande & Senzala, publicada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) no ano de 1933, se imortalizou como um clássico das Ciências Sociais brasileiras.

Ao longo de algumas linhas, busco tecer comentários gerais acerca da atualidade da obra Casa-Grande & Senzala, no momento em que se celebra os 90 anos de um dos maiores clássicos – senão o maior - do Pensamento Social Brasileiro. Obra reeditada inúmeras vezes e traduzida para várias línguas, Casa-Grande & Senzala é aquilo que poderíamos chamar de um clássico de nascença.

Pouco afeito às normas rígidas da escrita acadêmica, Freyre escreveu uma obra que marcou época. Já no prólogo da edição de Casa-Grande & Senzala (1977), publicada pela biblioteca Ayacucho de Caracas, Darcy Ribeiro vaticinara que a obra seria lida no próximo milênio. Em certo sentido, a profecia de Darcy Ribeiro se concretizou. Casa-Grande & Senzala conservou a sua originalidade e é tão importante hoje quanto na época em que foi escrita.

Não procuro aqui fazer a enésima exegese de Casa-Grande & Senzala. Nesse sentido, gente muito mais qualificada e especializada no assunto já se debruçou em livros e artigos acadêmicos. Saliento ainda que nada de novo tenho a acrescentar diante de tudo o que já foi escrito e comentado desde que a obra veio a público no início da década de 1930. Tenho, no entanto, uma relação afetuosa com esta obra que fala não apenas do que somos enquanto povo, mas do que fomos e do que, de alguma forma, possamos vir a ser. A despeito das críticas, diga-se de passagem, muitas delas dotadas de justiça, a obra manteve a sua imprescindibilidade no quadro conceitual e analítico das Ciências Sociais.

 Não obstante, a minha formação ter se dado a nível de pós-graduação na área de Ciência Política, considero que a análise realizada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre transborda os domínios da Sociologia e da Antropologia constituindo um verdadeiro patrimônio intelectual das Ciências Sociais. A obra é, por assim dizer, formativa para todo aquele iniciado nas Ciências Sociais. Em tom de troça, chego a exagerar nas minhas aulas dizendo que o cientista social que não leu Casa-Grande & Senzala deveria ter o diploma cassado. Excessos à parte, sempre defendi a necessidade da criação de uma disciplina de Pensamento Social Brasileiro nos cursos de graduação em Ciências Sociais, pois considero imprescindível o contato do discente com autores como o próprio Gilberto Freyre, além de outros não menos importantes, como Sergio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Caio Prado Junior e Raymundo Faoro.


Gilberto Freyre recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense em 1º de janeiro de 1983

Fonte: www.memoria.uff.br


Na aludida versão de Casa-Grande & Senzala (1977), Darcy Ribeiro considerou a etnografia do livro de tão boa qualidade que o leitor acaba sendo seduzido pela descrição idílica utilizada para descrever o Brasil patriarcal. Por sua vez, Fernando Henrique Cardoso relevou que o leitor desatento não se engane que "por trás das descrições, às vezes romanceadas e mesmo distorcidas, há muita pesquisa" (CARDOSO, 2013, p. 80). Cardoso chegou mesmo ressaltar que Gilberto Freyre tinha uma paixão pelo detalhe, pela minúcia e pelo concreto.

Para Freyre, latifúndio e escravidão, assim como a casa-grande e senzala constituíram os pilares da ordem escravocrata no Brasil colonial. A força do argumento do sociólogo pernambucano reside na sua visão inovadora acerca de tal estrutura social. Ao invés de fazer uma análise engessada sobre esse sistema de produção, Freyre vai além ao pensá-lo na prática cotidiana, no dia a dia. Estas estruturas sociais são concebidas como processos vivenciados e não somente como situações de fato.

A simples descrição não seria suficiente para explicar o fenômeno estudado. O autor incorporou assim elementos que fazem parte da vida cotidiana. Não se restringiu a entender as funções sociais desempenhadas na vida pública (como a do senhor de engenho e do bacharel, por exemplo), mas adentrou a vida privada. Na década de 1930, uma Sociologia que levava em consideração certos aspectos da vida privada consistia, de fato, em algo inusitado. Conferiu, de tal modo, relevo à culinária e à arquitetura, além da realçar a dimensão sexual dos atores sociais analisados.

Em Guerra e Paz (2005), Ricardo Benzaquen de Araújo descreveu Gilberto Freyre como o mestre do equilíbrio dos contrários. A obra do sociólogo pernambucano seria atravessada por antagonismos que não redundavam em uma dialética visto não haver uma superação dos contrários. De modo original, os contrários, na obra freyriana, não viveriam em conflito, mas em harmonia. Um exemplo clássico de como se procede o equilíbrio dos contrários consiste no modo pelo qual se estabeleceu a língua portuguesa no Brasil. Esta não chegou a se entregar à forma errática como era falada nas senzalas, nem mesmo se curvou ao formalismo dos gramáticos e jesuítas do período colonial.

O equilíbrio dos contrários constitui uma noção cara ao autor na sua apreensão acerca do real. Esta noção é de suma importância em sua obra concebendo-a de forma plástica. Os objetos analisados são entendidos não como coisas dadas, mas em um processo contínuo ao qual o próprio autor está inserido. Mais do que isso, ao buscar a autenticidade tanto dos documentos como dos depoimentos utilizados, Freyre é acusado de não seguir à risca a linguagem acadêmica. Mais do que demonstrar, ele busca convencer.

A utilização de tais oposições simplificadoras, daquilo que se convencionou chamar de equilíbrio dos contrários, contribuiu para reforçar certas características fundamentais em um dado fenômeno. É por assim dizer um instrumento heurístico que ajuda o autor a compreender e a explicar a realidade.

É importante lembrar que as críticas à obra e ao autor constituem parte indissociável do seu legado de modo ser impossível separá-las. Quase sempre, os críticos pontuaram as contradições do seu pensamento, o tom ensaístico pouco afeito ao formalismo acadêmico, sem falar da sua perspectiva conservadora. No compasso do sucesso da obra desde a sua publicação nos anos 1930, as críticas se avolumaram e foram repisadas por inúmeros comentaristas. Dentre os pontos mais criticados estão o engodo da democracia racial, a mitigação da luta de classes, o ecletismo metodológico, certos equívocos entre as noções de raça e cultura, além de uma visão distorcida a respeito da cultura brasileira marcada tanto pela plasticidade como pelo hibridismo de origem ibérica.

Em vista da comemoração dos 90 anos de Casa-Grande & Senzala, a Global Editora publicou recentemente o box “O Brasil Segundo Gilberto Freyre”, trilogia que agrega além de Casa-Grande & Senzala, obras da alçada de Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959). Poucos não foram os títulos publicados pelo sociólogo pernambucano ao longo da sua vida, como poucos não foram os prêmios e honrarias recebidos, como a Excelentíssima Ordem do Império Britânico, o Prêmio Jabuti de Literatura e o Prêmio Machado de Assis – este último conferido pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Decorrido 90 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala, a obra se mantém tão fundamental hoje para compreensão dos problemas que circundam a sociedade brasileira quanto na época em que foi escrita. Uma obra que lança luz sobre os alicerces da cultura, das relações sociais, da miscigenação racial e da identidade nacional do Brasil.

 

Referências Bibliográficas:


ARAUJO, R. A. B.. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 2005.

CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande y senzala: Formación de la família brasileña bajo el régimen de la economia patriarcal. Prólogo e cronologia de Darcy Ribeiro. Caracas: Biblioteca Aycucho, 1977.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Apresentação de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: Global, 2006.

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.

VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: Populações Rurais do Centro-Sul. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.

VIANNA, L. J. W. . A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Diálogos em Memórias com Andréa Lúcia da Silva de Paiva

 

Fonte: Arquivo pessoal de Andréa Paiva

Entrevistada: Profª Drª Andréa Lúcia da Silva de Paiva[1]

Thaymara Assis: Professora, qual é a sua principal memória da UFF Campos? Quando você pensa em UFF Campos, o que vem em sua lembrança?

Andréa Paiva: O que mais aparece em minhas lembranças são as memórias geracionais. Eu acho que é muito difícil responder essa pergunta, porque são memórias que se desdobram em muitas trocas de experiência. [...]  - Quando eu chego na Universidade Federal Fluminense (UFF), as relações são diferentes daquelas que ocorreram no meu tempo de graduação. [...] . A minha relação de trabalho é mais ampla. Nesse sentido, não enxergo apenas a minha relação com os estudantes, mas com um conjunto composto por alunos, seguranças, motoristas e o pessoal da limpeza, por exemplo. A gente aprende muito com esse conjunto de experiências e esses vários papéis sociais que ocupam a universidade.  Além disso, as memórias relacionadas a UFF Campos não se restringem apenas ao campus, ela é comunitária também. A forma como a comunidade percebe a UFF, ou seja, no aspecto negativo ou positivo. Isso é o que mais me chama a atenção. 

Sua pergunta é difícil porque a memória remete a um conjunto de relações: memória-trabalho e memória-relações para além da instituição, mas que também fazem parte dela. Eu trabalho com o conceito de memória e sempre discuto que a memória não é só teórica. Ela também se coloca como metodologia quando está sendo construída por nós. A memória não é planejada, ou seja, não se faz memória intencionalmente, ela se configura independente de minhas vontades. As memórias vão se constituindo através de muitas marcas. Quando a gente usa a palavra “marcas”, as pessoas associam ao estigma, mas não é necessariamente uma questão relacionada a esse conceito. É uma questão de momento e de contexto. Por exemplo, agora a memória que me surgiu com a sua pergunta é do meu primeiro orientando David, que veio a falecer depois. Lembro-me da desconstrução que as Ciências Sociais causaram nele com o estranhamento e a desnaturalização. Ele foi para mim uma peça-chave disso. Ele era brincalhão e fazia piadas relacionadas à questão do senso comum. Depois, ele foi cada vez mais se tornando alguém criticamente reflexivo. É curioso como a gente vai colocando metas, carinho, marcas e desafios também. A UFF me ensinou e vem me ensinando esse conjunto de sentimentos que constituem as nossas narrativas de memórias, as nossas marcas pessoais e coletivas.

Fonte: Arquivo pessoal de Andréa Paiva

Nós brincamos entre os professores que quando você entra para a universidade você vai fazer ensino, pesquisa e extensão, mas há o quarto item, que é a gestão. Em relação ao ensino, a questão de você ir fazendo os seus planejamentos e suas aulas através de muitas trocas foi muito interessante porque, apesar de ter como referência meus antigos professores na UFRJ, eu achava que a postura de um professor universitário era um pouco mais reservada. De uma certa forma, é! Porém, na UFF Campos é diferente! Você se sente mais à vontade para passar seus ensinamentos e conhecimentos através de um diálogo mais amplo com os alunos que se envolvem e comentam nas aulas. Essa prática vem da época em que eu era professora do ensino fundamental e médio. É um exercício grande dentro das Ciências Sociais a tentativa de colocar a teoria na prática. Eu posso falar que o fato de eu ter sido professora do Ensino Médio e Fundamental, onde eu ministrava Sociologia e Filosofia na cidade do Rio de Janeiro, nos colégios particulares e públicos, me obrigou a pensar teorias, temas e conceitos, mas também a prática. Afinal, como apresentar um conteúdo que faça sentido para aqueles alunos? Caso contrário, ficamos em uma esfera de conhecimento muito fechada dentro do nosso próprio conhecimento, talvez, até muito “elitizado” quando pensamos que esse conhecimento se restringe a um pequeno grupo. Eu tinha alunos de Sociologia e Filosofia desde a 5ª série até o Ensino Médio. Então, quando venho para a UFF Campos, eu trago um pouco dessa experiência. Considero isso um grande ganho, no sentido de colocar à frente de técnicas de ensino, por exemplo, a possibilidade de usar jogos para discutir cotas em sala de aula. Isso foi me aprimorando e na universidade, por conta da dedicação exclusiva, encontro mais possibilidades de fazer essa imersão, essa imaginação sociológica, política e antropológica, de fluir. 

A experiência de quando vou para a pesquisa também é fantástica, pois é um diferencial dentro da minha trajetória: desenvolver uma pesquisa com os estudantes, inseri-los nesse meio, aprender e perceber a importância de nós cientistas e professores na sociedade... Quando o aluno recebe uma bolsa, por exemplo, através do trabalho que você coordena, isso tem um valor e peso muito grande na vida daquele estudante. Tive a experiência de ter estudantes de todos os estágios e níveis e o envolvimento deles, nosso local como pesquisadores perante à sociedade tem um grande valor para mim.

Quanto ao projeto de extensão, eu faço parte junto com a professora Geovana do Motirõ Nhãdereko (Grupo de Pesquisa em Memória e Cultura). O projeto começou em 2013 e foi fundado através de ideais em comum. O nome do projeto foi dado por um indígena que fez um ritual muito interessante aberto para todos e que chamou muito a atenção da comunidade externa da UFF. Neste dia, me lembro que tínhamos até crianças presentes. Durante o evento, enquanto (o indígena) Werá Djekupe discursava, as pessoas ficaram muito empolgadas e insistiam em pedir para tirar fotos com ele vestido com seus adereços, como se o valor do seu discurso só fosse válido quando ele estava caracterizado como um indígena. A partir daí, vimos os desafios que enfrentaríamos e a importância de desnaturalizar e desmistificar certos termos e conceitos. A Geovana sempre ressalta em nossas atividades, principalmente, a pertinência da causa indígena. Eu também me debruço nas relações raciais, sobretudo, na questão negra. Esse trabalho de desnaturalizar preconceitos é também necessário entre os estudantes. Me lembro que alguns alunos usavam, por exemplo, a palavramacumba” de modo pejorativo, sinalizando um problema que envolvia tanto a comunidade externa como a comunidade acadêmica da UFF Campos. Essa é a prova que precisamos tocar adiante os projetos de extensão. Hoje, com a Universidade para a Terceira Idade (UNITI), percebo ainda mais essa força da relação entre universidade e comunidade.

Trabalhar com a gestão também foi um grande marco para mim, porque nunca havia sido coordenadora e passei a ser do curso de Licenciatura em Ciências Sociais. Neste momento, Geovana estava como a minha vice. E foi impressionante como percebi a importância de trabalhar na coordenação para um professor universitário. O que me chamava atenção era a proximidade com os alunos e a capacidade de ouvi-los contribuir no plano de estudo, levar propostas e aprender a coordenar reuniões, principalmente, porque sempre fui muito tímida. Na verdade, ainda me vejo no processo de melhorar essa questão, especificamente por conta do ensino remoto como consequência da pandemia. Quando você dá aula, há uma certa transformação e é um bom exercício para a timidez. Como coordenadora, na tarefa de chefiar reuniões também me vi exercitando esse lado mais ativo.... Uma das memórias mais marcantes desse período foi a tarefa de pensar as políticas públicas educacionais, não apenas como teoria, como também em sua prática. Ou seja, lendo, oferecendo uma reflexão para a melhoria dessas políticas e formulando novas propostas. Nesta ocasião, as professoras Gabriela, Érica, Geovana e eu fizemos a primeira reforma curricular do nosso curso. Foi também quando continuamos participando junto ao Colegiado Geral de Licenciaturas de leituras documentais, propostas, arranjos, formas de pensar e inserir as políticas públicas educacionais. Essa parte para mim, junto com a questão de ouvir o estudante que aparecia na coordenação, foi um grande “samba”. Foi uma grande escola para mim, como se fosse mais um “abre alas” dentro desse conjunto de memórias e relações, que dá um samba com um enredo bom, uma alegria boa, principalmente, quando você olha para trás e atravessa a avenida e escuta os sons das memórias acumuladas. 

A questão da memória na nossa área de Ciências Sociais é a sua própria força de humanização. A memória não dada (mas construída coletivamente)! Gostaria de agradecer a contribuição do projeto de extensão Diálogos do Fim do Mundo em reunir essas tantas memórias que colecionamos. Essas memórias não estão no passado, elas estão vivas e continuamente são ressignificadas no nosso presente, e sou grata por contribuir com essa narrativa.

 



[1]  Graduada em Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre pelo Programa em Pós-Graduação em Memória e Documento da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É coordenadora do Programa de Extensão Universidade para Terceira Idade (UNITI) da UFF/Campos. Foi coordenadora da Residência Pedagógica, Programa de Formação à Docência, entre agosto de 2018 a janeiro de 2020. Foi coordenadora do curso de Ciências Sociais - Licenciatura (2014-2018). É professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos dos Goytacazes. Coordena o Grupo de Pesquisa em Memória e Cultura Motirõ Nhãdereko. É membro efetivo do Laboratório de Pesquisa em Ensino de Ciências Sociais (LAPECS).