Fonte: Arquivo Público de Pernambuco
Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)
Diz-se
que uma obra é um clássico quando consegue atingir um amplo e notório nível de
reconhecimento público no decorrer do tempo, seja pela qualidade literária, pelo
seu alcance duradouro, pela sua relevância teórica e ou mesmo pela sua
importância nos marcos da cultura. A atribuição do status de “clássico” a uma determinada
obra não segue, por assim dizer, critérios objetivos e tangíveis, podendo
derivar de fatores e características que são difíceis de serem definidos a
priori. A despeito dos critérios utilizados, constitui fato inequívoco que
a obra Casa-Grande & Senzala, publicada pelo sociólogo pernambucano
Gilberto Freyre (1900-1987) no ano de 1933, se imortalizou como um clássico das
Ciências Sociais brasileiras.
Ao
longo de algumas linhas, busco tecer comentários gerais acerca da atualidade da
obra Casa-Grande & Senzala, no momento em que se celebra os 90 anos
de um dos maiores clássicos – senão o maior - do Pensamento Social Brasileiro. Obra
reeditada inúmeras vezes e traduzida para várias línguas, Casa-Grande & Senzala
é aquilo que poderíamos chamar de um clássico de nascença.
Pouco
afeito às normas rígidas da escrita acadêmica, Freyre escreveu uma obra que
marcou época. Já no prólogo da edição de Casa-Grande & Senzala
(1977), publicada pela biblioteca Ayacucho de Caracas, Darcy Ribeiro vaticinara
que a obra seria lida no próximo milênio. Em certo sentido, a profecia de Darcy
Ribeiro se concretizou. Casa-Grande & Senzala conservou a sua
originalidade e é tão importante hoje quanto na época em que foi escrita.
Não
procuro aqui fazer a enésima exegese de Casa-Grande & Senzala. Nesse
sentido, gente muito mais qualificada e especializada no assunto já se debruçou
em livros e artigos acadêmicos. Saliento ainda que nada de novo tenho a
acrescentar diante de tudo o que já foi escrito e comentado desde que a obra
veio a público no início da década de 1930. Tenho, no entanto, uma relação
afetuosa com esta obra que fala não apenas do que somos enquanto povo, mas do
que fomos e do que, de alguma forma, possamos vir a ser. A despeito das
críticas, diga-se de passagem, muitas delas dotadas de justiça, a obra manteve a
sua imprescindibilidade no quadro conceitual e analítico das Ciências Sociais.
Não obstante, a minha formação ter se dado a
nível de pós-graduação na área de Ciência Política, considero que a análise
realizada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre transborda os domínios da
Sociologia e da Antropologia constituindo um verdadeiro patrimônio intelectual
das Ciências Sociais. A obra é, por assim dizer, formativa para todo aquele
iniciado nas Ciências Sociais. Em tom de troça, chego a exagerar nas minhas
aulas dizendo que o cientista social que não leu Casa-Grande & Senzala
deveria ter o diploma cassado. Excessos à parte, sempre defendi a necessidade
da criação de uma disciplina de Pensamento Social Brasileiro nos cursos de
graduação em Ciências Sociais, pois considero imprescindível o contato do
discente com autores como o próprio Gilberto Freyre, além de outros não menos
importantes, como Sergio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Caio Prado Junior
e Raymundo Faoro.
Gilberto
Freyre recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal
Fluminense em 1º de janeiro de 1983
Fonte:
www.memoria.uff.br
Na
aludida versão de Casa-Grande & Senzala (1977), Darcy Ribeiro
considerou a etnografia do livro de tão boa qualidade que o leitor acaba sendo
seduzido pela descrição idílica utilizada para descrever o Brasil patriarcal. Por
sua vez, Fernando Henrique Cardoso relevou que o leitor desatento não se engane
que "por trás das descrições, às vezes romanceadas e mesmo distorcidas, há
muita pesquisa" (CARDOSO, 2013, p. 80). Cardoso chegou mesmo ressaltar que
Gilberto Freyre tinha uma paixão pelo detalhe, pela minúcia e pelo concreto.
Para Freyre, latifúndio e
escravidão, assim como a casa-grande e senzala constituíram os pilares da ordem
escravocrata no Brasil colonial. A força do argumento do sociólogo pernambucano
reside na sua visão inovadora acerca de tal estrutura social. Ao invés de fazer
uma análise engessada sobre esse sistema de produção, Freyre vai além ao
pensá-lo na prática cotidiana, no dia a dia. Estas estruturas sociais são concebidas
como processos vivenciados e não somente como situações de fato.
A simples descrição não seria
suficiente para explicar o fenômeno estudado. O autor incorporou assim
elementos que fazem parte da vida cotidiana. Não se restringiu a entender as
funções sociais desempenhadas na vida pública (como a do senhor de engenho e do
bacharel, por exemplo), mas adentrou a vida privada. Na década de 1930, uma
Sociologia que levava em consideração certos aspectos da vida privada
consistia, de fato, em algo inusitado. Conferiu, de tal modo, relevo à
culinária e à arquitetura, além da realçar a dimensão sexual dos atores sociais analisados.
Em Guerra e Paz (2005), Ricardo Benzaquen de Araújo descreveu Gilberto
Freyre como o mestre do equilíbrio dos contrários. A obra do sociólogo
pernambucano seria atravessada por antagonismos que não redundavam em uma
dialética visto não haver uma superação dos contrários. De modo original, os
contrários, na obra freyriana, não viveriam em conflito, mas em harmonia. Um
exemplo clássico de como se procede o equilíbrio dos contrários consiste no
modo pelo qual se estabeleceu a língua portuguesa no Brasil. Esta não chegou a
se entregar à forma errática como era falada nas senzalas, nem mesmo se curvou
ao formalismo dos gramáticos e jesuítas do período colonial.
O equilíbrio dos contrários constitui uma noção cara ao autor na sua
apreensão acerca do real. Esta noção é de suma importância em sua obra concebendo-a
de forma plástica. Os objetos analisados são entendidos não como coisas dadas,
mas em um processo contínuo ao qual o próprio autor está inserido. Mais do que
isso, ao buscar a autenticidade tanto dos documentos como dos depoimentos
utilizados, Freyre é acusado de não seguir à risca a linguagem acadêmica. Mais
do que demonstrar, ele busca convencer.
A utilização de tais oposições
simplificadoras, daquilo que se convencionou chamar de equilíbrio dos
contrários, contribuiu para reforçar certas características fundamentais em um
dado fenômeno. É por assim dizer um instrumento heurístico que ajuda o autor a
compreender e a explicar a realidade.
É
importante lembrar que as críticas à obra e ao autor constituem parte
indissociável do seu legado de modo ser impossível separá-las. Quase sempre, os
críticos pontuaram as contradições do seu pensamento, o tom ensaístico pouco
afeito ao formalismo acadêmico, sem falar da sua perspectiva conservadora. No
compasso do sucesso da obra desde a sua publicação nos anos 1930, as críticas
se avolumaram e foram repisadas por inúmeros comentaristas. Dentre os pontos
mais criticados estão o engodo da democracia racial, a mitigação da luta de
classes, o ecletismo metodológico, certos equívocos entre as noções de raça e
cultura, além de uma visão distorcida a respeito da cultura brasileira marcada
tanto pela plasticidade como pelo hibridismo de origem ibérica.
Em
vista da comemoração dos 90 anos de Casa-Grande & Senzala, a Global
Editora publicou recentemente o box “O Brasil Segundo Gilberto Freyre”,
trilogia que agrega além de Casa-Grande & Senzala, obras da alçada
de Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959).
Poucos não foram os títulos publicados pelo sociólogo pernambucano ao longo da
sua vida, como poucos não foram os prêmios e honrarias recebidos, como a
Excelentíssima Ordem do Império Britânico, o Prêmio Jabuti de Literatura e o
Prêmio Machado de Assis – este último conferido pela Academia Brasileira de
Letras (ABL).
Decorrido
90 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala, a obra se mantém tão
fundamental hoje para compreensão dos problemas que circundam a sociedade
brasileira quanto na época em que foi escrita. Uma obra que lança luz sobre os
alicerces da cultura, das relações sociais, da miscigenação racial e da
identidade nacional do Brasil.
Referências
Bibliográficas:
ARAUJO,
R. A. B.. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto
Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 2005.
CARDOSO, Fernando
Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2013.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.
São Paulo: Globo, 2001.
HOLANDA, Sérgio Buarque
de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande
y senzala: Formación de la família brasileña bajo el régimen de la economia
patriarcal. Prólogo e cronologia de Darcy Ribeiro. Caracas: Biblioteca Aycucho,
1977.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande
& senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. Apresentação de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: Global, 2006.
PRADO JR., Caio. Formação
do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: Populações Rurais do Centro-Sul. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.
VIANNA, L. J. W. . A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.
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