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quarta-feira, 14 de junho de 2023

Legislativo conservador, sim. Mas o que isso significa?

 

Escrito por Vitor Vasquez[1]

Arquivo Agência Brasil


Após os resultados da última disputa para a Câmara dos Deputados a imprensa detectou a guinada conservadora do espectro político dos parlamentares eleitos. Nesse sentido, manchetes como o Congresso mais conservador dos últimos quarenta anos e avanço do perfil conservador de deputados e senadores tomaram os noticiários depois das eleições gerais de 2022. Mas, em termos de equilíbrio de força, o que essa escalada conservadora representa? Quanto esse cenário surpreende ou pode ser interpretado como continuidade de um processo que já vem em marcha? Há coerência eleitoral entre a eleição para o Legislativo e o voto para presidente da República? Nesse artigo lanço luz a essas questões descrevendo e comparando alguns padrões das últimas três eleições gerais ocorridas no Brasil (2014, 2018 e 2022). A ideia é problematizar um pouco as interpretações mais imediatistas e trazer algumas reflexões sobre o que isso significa em termos de comportamento eleitoral e de dinâmica partidária.

O primeiro esforço é para refrescar nossa memória e relembrar que já em 2014 tivemos os primeiros sinais de que uma onda conservadora estaria em marcha na política institucional brasileira. Não à toa, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) classificou o Congresso eleito à época como o mais conservador desde 1964. Portanto, mais do que análises alarmistas que inferem algo de excepcional no atual perfil político do Legislativo brasileiro, precisamos compreender que estamos diante de um processo de mais longo prazo, iniciado eleitoralmente pelo menos na disputa que ocorrera logo após as jornadas de junho de 2013. Assim, para ilustrar como esse processo se estabeleceu, separei a votação dos candidatos à Câmara dos Deputados de 2014 a 2022, segundo o espectro político do partido pelo qual cada candidato concorreu ao cargo. Para classificar o partido enquanto direita, centro ou esquerda, usei como referência o artigo de Bolognesi, Ribeiro e Codato (2023). A divisão proposta pelos autores, baseada em classificações feitas por especialistas, vai de 0 (mais à esquerda) a 10 (mais à direita). Partidos com média até 3,7 identifiquei como de esquerda; de 3,8 a 7,4 como de centro; e maior que 7,4 como de direita[2].

 

Votação: deputado federal por espectro ideológico do partido dos candidatos (2014-2022).


Fonte: elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

 

Observando a evolução do perfil ideológico do voto depositado aos candidatos à deputado federal entre 2014 e 2022 salta aos olhos o avanço da direita. Ou seja, o diagnóstico de um Legislativo conservador em 2022 deve levar em consideração um processo que vem em constante crescimento desde 2014. E, para explicar como isso ocorreu é preciso lembrar que a política é um jogo de ocupação de espaços, isto é, para que um espectro avance é necessário que outro recue, pois cada eleitor vota em somente um postulante a vaga na Câmara dos Deputados. Sob esta perspectiva, destaco que o espaço preenchido pela direita nesse período pertencia ao centro, e não à esquerda. Assim, abalado pela redução do poderio eleitoral principalmente de PSDB e MDB, o centro deixou de ser o espectro que mais atraia a preferência eleitoral nas disputas para deputado federal como fora em 2014 e, com menor margem, em 2018. Fato é que, em 2022, a direita assumiu a dianteira conquistando 46,5% dos votos recebidos por candidatos à Câmara dos Deputados. Complementarmente, a esquerda se manteve em terceiro lugar durante todos os anos observados, mas com pouca variação na porcentagem de votos recebidos.

Diante disso, faz sentido afirmar que houve polarização do eleitorado brasileiro recentemente, afinal, um deslocamento rumo aos pólos exige esvaziamento do centro, o que aconteceu na votação para a Câmara dos Deputados. Porém, tal deslocamento orientou-se quase exclusivamente à direita, considerando que a votação recebida por candidatos filiados a partidos de esquerda se manteve estável de 2014 a 2022. Isto posto, cabe agora analisar como a dinâmica observada se articulou com as disputas presidenciais.


Votação: presidente – 1º turno – por espectro ideológico do partido dos candidatos (2014-2022).

Fonte: elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

 

Antes de explorar as informações acima preciso fazer duas considerações. Em primeiro lugar, as eleições para presidente da República são distintas das para deputado federal, tanto pela diferença hierárquica que há entre os cargos quanto pelo método eleitoral em cada caso. Por um lado, isto faz com que a disputa presidencial receba mais atenção da opinião pública e do eleitor, pois a presidência é o principal cargo eleitoral do país; por outro, torna a distribuição de voto diferente em cada disputa, uma vez que a eleição para a Câmara dos Deputados é regida pelo voto proporcional e a para presidência pelo voto majoritário de dois turnos. Em segundo lugar, não há nenhuma garantia que um eleitor que votou em um candidato a deputado federal pertencente a um partido de um determinado espectro ideológico também o fará na disputa presidencial. Tais considerações não me impedem, no entanto, de esmiuçar os dados agregados e conjecturar algumas possibilidades a partir deles. Portanto, feitas as devidas ressalvas, sigo para as votações para presidente.

O perfil da votação em primeiro turno para presidência é semelhante ao observado na disputa para deputado federal durante o mesmo período. Os votos de direita cresceram, os de centro caíram e os de esquerda apresentaram estabilidade. Ou seja, novamente o esvaziamento do centro culminou no preenchimento da direita. Em outras palavras, houve um deslocamento da preferência política dos eleitores brasileiro do centro para a direita na disputa presidencial. Inclusive, a soma dos votos recebidos por candidatos de centro no primeiro turno da disputa presidencial de 2014 chegou a 55,5%, alavancados pelas candidaturas de Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB). Contudo, em 2022 essa votação representou apenas 7,3% dos votos válidos.

Minha intenção ao apresentar essas informações foi indicar que não devemos olhar a atual composição predominantemente conservadora do Legislativo brasileiro com muita surpresa. Pelo contrário, trata-se de um processo iniciado pelo menos em 2014. O que, por outro lado, demanda reflexão é se tal tendência seguirá para uma estabilidade ou não. De todo modo, a disputa até aqui concentrou-se principalmente entre direita e centro. Afinal, ao passo que a manifestação de voto à direita cresceu, o voto dado ao centro caiu e o depositado à esquerda manteve-se relativamente estável. Esse é um aspecto relevante, pois parecia que junho de 2013 e a lava-jato afetariam negativamente a esquerda, sobretudo o PT. Porém, quem mais sentiu os efeitos foram os partidos de centro, especialmente PSDB e MDB. Partidos que até outrora eram protagonistas na vida política brasileira e, recentemente, passaram a compartilhar a preferência eleitoral com outras forças mais à direita como PP, PL, União Brasil e Republicanos. E, como política é uma luta por espaços, é fundamental ao centro identificar quem é seu adversário mais direto. Em uma palavra: talvez tenha passado a hora de refletir criticamente sobre a possibilidade de uma terceira via.

Outro aspecto que os dados exibidos sugerem é que há coerência entre os padrões de votação observados comparando as eleições para a Câmara com as para presidência. Isto é relevante porque desafia o senso comum de que o eleitor brasileiro não dá a devida atenção à decisão do voto. Assim, ainda que tenhamos muitos partidos políticos disponíveis e que as relações eleitor-candidato perpassem questões personalistas, as preferências políticas também são consideradas no momento de decidir em quem votar. Em suma, é preciso levar o eleitor a sério.

 


[1] Professor Assistente da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

[2] Esquerda: PSTU, PCO, PCB, PSOL, PCdoB e PT; Centro: PDT, PSB, Rede, Cidadania, PV, PTB, Avante, Solidariedade, PMN, PMB, PHS, MDB, PSD, PSDB, Podemos e PPL; e Direita: PRTB, Pros, PRP, PRB, PL, PTC, DC, Novo, PP, PSC, Patriota, DEM, PSL e União Brasil.


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Tudo está em falta: mobilizações de moradores em um bairro cigano na Catalunha

                                                       Escrito e fotografado por Nathalia Ferreira Gonçales[i]



Este ensaio fotográfico apresenta as mobilizações dos moradores de Font de la Pólvora, zona leste da cidade de Girona, comunidade da Catalunha, em decorrência dos sucessivos cortes de luz que estão acontecendo há alguns anos no bairro. A institucionalização dos processos de precarização desse território, marcado desde sua constituição por narrativas de marginalização e abandono, acentua uma política de escassez histórica do Estado espanhol e catalão em torno da população residente, majoritariamente de etnia cigana, e agrava o imaginário de contravenção sobre práticas e condutas ali inscritas.

Através de declarações públicas dos representantes políticos elaboradas em reuniões, assembleias e coletivas de imprensa, é flagrante a constante tentativa de criminalização do bairro em sua totalidade, como se fosse possível instituir uma dimensão existencial propensa a condutas desviantes e práticas de infração que seriam a causa última da interrupção prolongada de energia. Ao longo dos problemas que emergem na vida do bairro, estes modos de habitar a falta vão compondo um campo de representações sobre inscrições de vulnerabilidade e reinvenções de possibilidades de vida às margens do Estado.

As batidas policiais nos apartamentos do bairro vêm de encontro ao discurso contundente, que pude escutar repetidas vezes no falatório cotidiano dos moradores, proferido pela prefeita da cidade de Girona, Marta Madrenas, ao atribuir os problemas no fornecimento de energia ao alto nível de fraudes elétricas e ao cultivo de drogas. Em incontáveis entrevistas públicas, a prefeita definiu os cortes em função da criminalidade espraiada por aquele bairro. “– Delincuencia!” foi o adjetivo usado pela representante política para enquadrar a suposta conduta desviante dos moradores de Font de la Pólvora.

Certa vez uma moradora proferiu que a vida às escuras só entende quem a vive. Somente a experiência pode conferir a dimensão material de um cotidiano interrompido pelos cortes, pela ausência de tudo aquilo que deriva da eletricidade no espaço doméstico. A gestão do cuidado, da comida, da limpeza, do consumo de internet, de gestos banais de conforto e aconchego, ações corriqueiras, quase mecânicas, que ficam suspensas quando na falta do que se poderia esperar ou prever para o dia a dia de um lar. Amanhecer sem luz e ir dormir sem luz. É através desse intervalo capaz de cindir a vida ao meio que as manifestações dos moradores de Font de la Pólvora irrompem como rotas para contornar os implacáveis mecanismos de rebaixamento e precarização que circunscrevem aquele território e as pessoas que ali habitam.

Omissão, inação, descaso, abandono. São muitas as formas pelas quais os moradores nomeiam as “ausências ativas” (Fernandes, 2020) da administração pública. Da mesma maneira, foram muitas as manifestações públicas que transcorreram, movidas por essa força coletiva de transformar a realidade dada, impulsionadas pela necessidade de criar outras possibilidades para além da marginalização social. As inúmeras incursões por instâncias burocráticas, incluindo reuniões e plenárias, indicam um conjunto de pistas para “sobreviver na adversidade” (Hirata, 2018). De fato, os moradores aprendem a transitar por espaços de negociação, reivindicar medidas de acordo com os termos da lei, tecer comentários irônicos e sarcásticos, se revoltar quando possível, calar quando necessário. Essas pistas são compostas por um arranjo de universos embaralhados que permitem acionar diferentes repertórios de acordo com o contexto em jogo. Os cantos e gritos que ecoam pelas ruas pitoresca de Girona insistem sobre aquilo que parece inaudível aos ouvidos da cidade e, uma vez mais, os moradores repetem em coro: nós não somos delinquentes.

 

Referências bibliográficas:

FERNANDES, Camila. A força da ausência. A falta dos homens e do “Estado” na vida de mulheres moradoras de favela. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n.36, pp. 206-230, dez. 2020.

HIRATA, Daniel. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: EdUFSCar, 2018.

 



[i] Professora substituta do Departamento de Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda e mestre no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).