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quinta-feira, 29 de abril de 2021

Por uma nova sociologia dos partidos políticos

                                                       Escrito por  Leonardo Almeida

Professor da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT)


 

A introdução do princípio da representação política como eixo para o exercício da democracia suscita a crítica de que a burocratização da atividade representativa, especialmente a representação político-partidária na modernidade é, muitas das vezes, apontada como uma maneira peculiar de contração da democracia, bem como da deslegitimação das instituições democráticas e de seus agentes. A representação é vista como geradora de uma elite que burocratiza e contradiz o seu ideal inicial, conforme apontado por Robert Michels, no clássico livro da Ciência Política do século XX: Sociologia dos partidos políticos (1982 [1911]), obra na qual o autor busca, dentre outros objetivos, justificar a incapacidade das massas e a possível ausência de um conteúdo mais substantivo para a ideia moderna de democracia.

Na teoria desenvolvida por Robert Michels, à medida que uma entidade ou organização cresce em número de apoiadores, a necessidade de escolher representantes torna-se latente e, de certa forma, inevitável. Portanto, a partir desse crescimento, a organização passa a exigir maior especialização desses representantes, visto que tende a ser necessário maior conhecimento jurídico, econômico e administrativo para o exercício dessa liderança e representação. Tal exigência prática inevitavelmente produz uma elite fechada e termina em sua própria existência, cada vez mais profissionalizada, burocratizada e distante dos interesses do grupo que a produziu como representante. Para Michels, então, a massa de representantes fica cada vez mais distante do controle da organização, enquanto o corpo de representantes eleitos também se torna cada vez mais distante dos interesses daqueles que representam e, com isso, adquire demandas e interesses específicos do seu papel que passa a ter o perfil de uma elite e com características de profissionais da representação:

 

A especialização técnica, esta consequência inevitável de qualquer organização mais ou menos extensa, torna necessário o que chamamos de organização dos negócios. Daí resulta que o poder de decisão, considerado como um dos atributos específicos da direção, é pouco a pouco retirado das massas e concentrado exclusivamente nas mãos dos chefes. E estes, que antes não eram senão os órgãos executivos da vontade coletiva, em breve se tornam independentes das massas, frustrando-se ao seu controle. Quem fala de organização fala em tendência à oligarquia. (MICHELS, 1982, p. 21).

 

Para Michels então, resumidamente, um regime democrático demanda uma organização que consequentemente levará à representação e que terá como resultado a oligarquização. É esse fenômeno o que o pensador alemão chamará de lei de ferro da oligarquia: um círculo vicioso resultante do deslocamento de uma inevitável classe dirigente minoritária em matéria de interesses em relação ao de suas bases e que passa, então, a defender objetivos divergentes dos que lhe originaram e, além disso, passam a ter um fim em si mesmas, já que os interesses agora se centram na sua própria manutenção e reprodução. Tal conceito ainda hoje resiste e permeia parte do pensamento político e é utilizado para explicar alguns fenômenos relacionados aos partidos políticos contemporâneos, como a distância entre o eleito e o eleitorado, a indiferenciação entre os conteúdos programáticos dos partidos, a dificuldade de acesso aos eleitos, dentre outros.

 


A indeferenciação entre partidos políticos era uma das tônicas dos protestos de junho de 2013 no Brasil.

 

Contudo, a preocupação de Michels e de toda uma corrente elitista de sua época, ao apontar para os problemas causados pela burocratização, tem como foco central enunciar a inevitabilidade de uma representação democrática ou ao menos o seu aprofundamento, em detrimento de imaginar alternativas plausíveis de conterem, ao menos em partes, os efeitos da tal lei de ferro da oligarquia. É, em tese, uma justificação do controle das minorias sobre maiorias e não necessariamente a sua crítica.

Ainda assim, o legado do ideário de Michels é o de clarificar o que viabiliza a emergência das elites políticas profissionais no interior dos partidos políticos – para além de apenas os democratas e socialistas – e serve para pensar as consequências da oligarquização sobre as demais instituições republicanas e democráticas formais, bem como o desgaste e deslegitimação das mesmas.

A teoria elitista pós-Michels tentou retirar dele e de sua teoria este estigma interpretando que nem toda separação entre líderes e liderados é uma negação da democracia, algo que Michels teria deixado de ressaltar. O argumento geral seria o de que a tal separação é algo empiricamente visto como universal nas democracias e, por concordarem com a ideia de que a democracia é a forma mais adequada de governo, essa distinção e separação entre líderes e liderados será lida como qualidade e virtude da democracia, não como sua negação. Assim, nesta corrente, os procedimentos atuais das democracias ocidentais são aceitos como uma resposta à inevitabilidade da oligarquização elaborada por Michels, sem maiores argumentos para justificar tais procedimentos. Em síntese, o fenômeno da elitização foi e continua sendo interpretado como inevitável (ou mesmo como solução) e não como problema para as democracias que observavam.

Assim, o “legado” de Michels e dos seus achados sobre oligarquização e burocratização dos partidos sobre o pensamento político foi a problematização de qualquer visão de democracia ampliada e, deste modo, portanto, legou uma limitação à Ciência Política a descrever modelos de democracia existentes e focar-se nos processos de escolha dos representantes para as instituições políticas via eleições observando sobretudo a estabilidade dos sistemas partidários e eleitorais, negligenciando assim outras dimensões da democracia, como uma participação política mais ampliada, os mecanismos de democracia direta, bem como o contato das instituições políticas com outras esferas sociais, como a cultura, a economia e o mundo do trabalho. O viés elitista desta abordagem está no fato de que centram a análise nos tomadores de decisão, já que a incapacidade das massas é, de antemão, um dado prévio. O elitismo enquanto método de análise da política ainda persiste pra boa parte do pensamento político, mesmo no século XXI.

 


Brasil está na posição 140 entre 191 países do Mapa Global de Mulheres na Política 2020

 

nova sociologia dos partidos políticos precisa encarar pontos que não foram centrais para Michels e outros, seja por suas opções ideológicas e metodológicas ou pelo contexto do período histórico em que viveram. Ou seja, precisamos encarar o fato de que, tal elite burocratizada e oligarquizada tende, historicamente, a refletir e a replicar o padrão de desproporção entre as elites e os grupos subalternos que são marca das sociedades capitalistas modernas – a sub-representação de mulheres, de minorias étnicas e dos mais pobres, ao mesmo tempo em que homens brancos, empresários, proprietários, com nível superior e alta renda são sobre-representados – seja nos parlamentos, na direção dos partidos ou onde quer que o poder político esteja concentrado. A nova sociologia dos partidos políticos é a que entende que a face da elite dominante que concentra o poder em termos econômicos e sociais é a mesma que se beneficia da burocratização do poder político advinda da oligarquização dos partidos e das instituições políticas, ao mesmo tempo em que a retroalimenta, dado que a dominação política é condição anterior e posterior para a manutenção dos privilégios em termos sociais, o que tem inaugurado novas e inúmeras agendas de pesquisa em diversas campos das ciências sociais, mas ainda não tem causado o mesmo “ânimo” nas principais publicações e centros de pesquisa pertencentes ao campo da Ciência Política, ainda focados mais na estabilidade, no funcionamento e na autonomia do sistema político e menos nos seus contatos com as demais esferas sociais.

 

Referências Bibliográficas:

 

HELD, David. Modelos de Democracia. Belo Horizonte: Paidéia, 1987.

MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: UnB, 1982.

MIGUEL, L. F. A democracia domesticada: Bases antidemocráticas do Pensamento Democrático   Contemporâneo. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 45, nº 3, pp. 483 a 511, 2002.

 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

A conjuntura da Necropolítica num país chamado Brasil

 

Fonte: Fotos Públicas

Escrito por Carlos Henrique Aguiar Serra[i], Luís Antônio Francisco de Souza[ii] e Marcial Suarez[iii]



[i] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

[ii] Professor Livre-Docente da UNESP.

[iii] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

 

 


Em agosto do ano passado, nesse mesmo espaço, escrevemos um artigo que versava sobre a política genocida do atual governo federal em relação, muito particularmente, à pandemia que se potencializa a cada dia e transforma esses tempos sombrios em dilacerantes, com muita dor, sofrimento psíquico e aumento da letalidade.

Sustentávamos à época que o país tinha atingido a cifra inadmissível e dramática de cem mil mortes e que a política do governo Bolsonaro tinha a marca emblemática do genocídio, pois nada tinha feito para reduzir danos ou mesmo se antecipar, em conformidade com as orientações vindas de todas as partes do mundo, no sentido específico de realizar aqui uma prevenção à Covid 19 com medidas restritivas, distanciamento social, uso da máscara e até mesmo o recurso ao lockdown.

É      uma lástima, portanto, termos que retomar esse tema porque de agosto de 2020 até os dias atuais, a letalidade atingiu a marca trágica de mais de 370 mil mortes, o que coloca o Brasil no epicentro mundial da pandemia, como um exemplo do que não deve ser feito, pois o descaso, omissão, negligência, negacionismo, irresponsabilidade e prática genocida, e nisso não há, infelizmente, qualquer adjetivação, estão presentes de uma forma muito potente nos discursos e (in)ação do governo Bolsonaro.

Nesse sentido, estamos imersos na conjuntura da Necropolítica onde a produção de mortes diárias, que se intensificam e crescem assustadoramente, é a realização de desejos mórbidos, a concretização das pulsões de morte e, também, fazem parte dessa política genocida do governo federal no que tange à pandemia.

Há inúmeras frases proferidas pelo presidente Bolsonaro que tentam fazer humor, mas, ao contrário, trata-se de um intenso desprezo, descaso da vida, que banaliza e naturaliza os óbitos, e segue na sua pregação mórbida, plena de ódio e preconceitos (“país de maricas”), num espetáculo grotesco de insensatez, grosserias, onde a existência humana não é a figura central, mas sim a sombra, a escuridão, a ignorância e, portanto, a presença de Tânatos.

No duelo, não só no imaginário, no campo das fantasias, mas que realiza-se e materializa-se na prática social e política desse governo, entre Tânatos e Eros, Tânatos, leia-se pulsão de morte, sempre terá êxito frente a Eros, a pulsão de vida.

Na nossa interpretação, o atual governo federal é movido por Tânatos, ou seja, a sua anima é plenamente eivada de pulsão de morte, a Necropolítica, que é a força propulsora desse governo, obsessivo por destruir e desconstruir.

Para se tentar compreender melhor essa política genocida do governo Bolsonaro, a partir do 1º dia de exercício do mandato, cabe-nos destacar um aspecto extremamente relevante nesse projeto político de poder de Bolsonaro e apoiadores.

Estamos a nos referir explicitamente à militarização tão intensa nesse governo. Deve-se reiterar, então, que o projeto político, desde começo de janeiro de 2019, tem como cerne a militarização, não só no que se refere à segurança pública, mas à vida.

É a militarização da vida que se acelera a cada instante do governo federal, pois a militarização implica na fabricação incessante da figura do “inimigo” e na ótica da “guerra”. Esse governo opera o tempo todo com a lógica do “inimigo” e a ótica da “guerra” e em todos os setores, desde o Ministério do Meio-Ambiente, que tem um ministro que clama por mais e mais desmatamento, passando pelo Ministério da Educação, que declara “guerra” às universidades públicas federais, o Ministério das Relações Exteriores, que repete e reifica ad nauseam, de forma torpe, uma série de preconceitos políticos e ideológicos contra países que são percebidos como “inimigos”. Enfim, a lógica desse governo, que, ao que parece, permanece em campanha, é produzir ódio e intolerância, e, portanto, mais mortes e mortos, caso concreto da pandemia, pois o modus operandi é fomentar e produzir “inimigos” e “guerras”.

Nesse país chamado Brasil, militarização e Necropolítica se fusionam e, então, quando isso ocorre, como nos dias atuais, com a pandemia se potencializando desde março de 2020, o genocídio se materializa nos óbitos produzidos por uma política que tem desprezo pela existência humana, banaliza a morte e goza com o sofrimento do Outro.

Continuamos a sustentar que nessa conjuntura atual, há o exercício pleno da Necropolítica (SERRA, 2020) e, também, que ainda permanecemos a observar o “fazer viver, deixar morrer” e o “fazer morrer, deixar viver” (SERRA, 2020).

As mais de 370 mil mortes, produzidas por esta política genocida, vai ao encontro daqueles que são considerados “descartáveis” (MBEMBE, 2018), pois segundo este autor, e ajustando o foco da análise para o Brasil, sob a chancela do governo Bolsonaro, ainda há o “poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer (...)” (SERRA, 2020).

Cabe-nos ainda ressaltar, considerando a relação entre militarização e necropolítica, que no âmbito do dispositivo da gestão militarizada há a pretensão da preeminência dos militares na gestão da força e dos riscos, em que a vida e a morte têm lugar de destaque. O dispositivo militarizado funda novas fronteiras entre viver e morrer. É nesse sentido que não há uma contradição entre a politização da morte e a estratégia de poder biopolítica (FOUCAULT, 1999; 2008). A militarização dos aparelhos do Estado e a estatização dos grupos paramilitares demonstram que o poder de morte e de destruição é central nas estratégias biopolíticas produtoras de desigualdades sociais e de assimetrias de distribuição de poder no país (SOUZA e SERRA, 2020).

Desta forma, retomamos o argumento de que a morte ou a possibilidade da morte é parte da engrenagem biopolítica militarizada. As formas de intervenção militares estão compreendidas na exceção soberana, na medida em que o poder de morte, previsto em situações de guerra, é confiscado pela polícia e é racionalizado pelo militarismo, como luta permanente contra um inimigo imaginário. Sendo assim, matar é parte integrante de um dispositivo de controle da vida daqueles que merecem viver a custo do massacre de quem deve morrer (SOUZA e SERRA, 2020).

Outro aspecto que merece atenção é que a militarização se configura como um verdadeiro estado de exceção permanente, na medida em que intervenções, ocupações, operações, estratégias militares operam nas margens em que se encontram o legal e o ilegal (SOUZA e SERRA, 2020).

 No governo Bolsonaro, há um número expressivo de militares ocupando posições estratégicas em várias instâncias do governo federal e nesse sentido, pode-se observar que o número de militares no governo federal supera a presença de militares nos governos durante o regime militar, desde Castelo Branco, passando por Costa e Silva, Médici, Geisel, até o último general da ditadura, o presidente Figueiredo (SOUZA e SERRA, 2020).

É   importante atentar para o fato de que a militarização corresponde à normalização do militarismo, com suas consequências em termos de limitações de direitos e legitimação da violência do estado (SOUZA e SERRA, 2020).

Assim sendo, considerando a conjuntura atual, salientamos que o militarismo, além de representar o modelo de um estado de exceção, permite toda uma ritualística fúnebre e macabra em que se dá a aceitação tácita da violência e da morte (SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021).

Concluindo, a interface entre militarização e necropolítica é a responsável por toda essa produção incessante de óbitos, que já ultrapassam mais de 370 mil, que se inscreve nesse genocídio estatal que, realmente, traz consigo essa “ritualística fúnebre e macabra” (SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021) onde as mais de 370 mil mortes, produzidas pela letalidade do Estado, se personificam tragicamente nesse projeto genocida do governo Bolsonaro.

E ainda há a milicianização da segurança pública e da vida, mas isso será objeto da próxima reflexão.

 

 Referências bibliográficas:


FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes.

FOUCAULT, Michel. (1999), Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes.

SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), Cem mil mortes e a militarização da vida: pandemia e política genocida, Blog Diálogos do Fim do Mundo.

SOUZA, Luís Francisco de e SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), “Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública no Brasil”. In: Revista Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, volume 2, n 32.

SUAREZ, Marcial, SOUZA, Luís Francisco de e Serra, Carlos Henrique Aguiar (2021), The violence dynamics in public security: military interventions and police-related deaths in Brazil”. In: OÑATI SOCIO-LEGAL SERIES.



[1] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

[2] Professor Livre-Docente da UNESP.

[3] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Torto Arado e “a luta que pode ser a vida todos os dias”

                                                                                            
                                                                Texto escrito por Flávia Mendes 

Torto Arado, livro do geógrafo Itamar Vieira Júnior, publicado em 2019 pela Editora Todavia, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance literário e do prêmio Oceanos de literatura do ano de 2020 já pode ser considerado um clássico. Uma história “triste, mas bonita” (JUNIOR, 20219. p.243), tal qual as que uma das personagens ensinava aos seus alunos na escola da fazenda sobre o que significa ser quilombola.

Torto Arado é um livro sobre o Brasil. Um Brasil rural, o mesmo de João Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e José Lins do Rêgo. É também um livro sobre a vida. A vida de todos os brasileiros tão comuns e tão esquecidos, também sobre “a luta que pode ser a vida todos os dias” (JUNIOR, 2019. p.24). A partir da história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, o livro narra a vida de trabalhadores rurais moradores da Fazenda Água Negra na região da Chapada Diamantina na Bahia.

Torto Arado levanta muitas questões: classe, raça, gênero, ancestralidade, a vida no campo, a seca, a fome, a relação e o respeito a terra, a falta e o direito a moradia, e a falta que nos faz uma reforma agrária. A narrativa literária de Torto Arado é também política. A ausência do Estado na vida daquelas pessoas, o trabalho análogo a escravidão, a desigualdade naturalizada, a falta de direitos básicos, a falta de escola, a dificuldade de ter acesso a médicos, o trabalho não remunerado em troca de moradia, uma moradia que só pode ser construída com o barro retirado da beira dos rios para que não revelasse o tempo e a conexão daquela comunidade com aquele espaço e fizesse daquela terra um direito.

Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. […] Ah, mas você não pode construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são trabalhadores, não podem ter casa igual a dono (JUNIOR, 2019. p. 204-5).


O escritor em seu trabalho de campo encontrou famílias e gerações inteiras, descendentes de escravos que seguem nos dias de hoje trabalhando em troca de moradia e comida."Aescravidão nunca nos abandonou, só fez mudar de nome. A abolição não foi acompanhada de políticas reparatórias, apenas assinou-se um papel, muito por pressão internacional”, (JUNIOR apud OLIVEIRA, 2021). As condições de vida e trabalho das personagens de Torto Arado não são diferentes da vida de muitos brasileiros nos dias atuais, e não apenas nas regiões norte e nordeste mas também na região sudeste, como por exemplo, na zona rural da cidade de Campos dos Goytacazes no estado do Rio de Janeiro, de onde escrevo. Assim como a mulher que foi mantida escrava por 35 anos na Bahia e sua situação só foi revelada e ela liberta no ano passado. Trabalhava como empregada doméstica em troca de comida e moradia. Ambiente hostil onde faltava água, mas sobrava violência” (JUNIOR, 2019. p. 182).

Também a religiosidade, a fé, as tradições passadas entre as gerações são apresentadas a partir do jarê, religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina que tem influências da umbanda, do catolicismo e do espiritismo, e é mais que um rito religioso, é apresentado como resistência cultural, política e espiritual, antes mesmo que as lutas sindicais e a compreensão sobre direitos aparecesse na vida das personagens. O autor explica que o jarê para além de uma religião, trata-se de uma cosmovisão, é a forma como essas pessoas entendem o mundo e sua realidade” (JUNIOR apud OLIVEIRA, 2021).

No livro, os pais de Bibiana e Belonísia, Zeca Chapéu Grande, além de líder da comunidade, é também o curador que cuida do corpo e dos espíritos das pessoas, num local sem acesso à saúde. “É muito semelhante aos xamãs indígenas, aos babalaôs e yalorixás das religiões de matrizes africanas e até mesmo à figura do padre no cristianismo e seus sacramentos e ritos” (JUNIOR apud VILA NOVA, 2021).

Zeca Chapéu Grande luta para que seja construída a primeira escola na fazenda, talvez não tenha se dado conta que era ele o grande educador daquele lugar. A escola construída com telha de cerâmica e sem banheiro, recebeu o nome de um antigo proprietário da fazenda que nunca pôs os pés ali. Não apenas o nome da escola desconectava aquela instituição dos alunos que ali foram estudar, também a professora reproduzia uma educação dos livros de história e não percebia diante dela “a história que a história não conta” (FIRMINO, et al. 2019).

Não me atraía a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria. (JUNIOR, 2019. p. 97).

Quando a escola chega na fazenda, Belonísia já tinha compreendido que os conhecimentos que precisava para viver naquele lugar eram ensinados por seu pai, Zeca Chapéu Grande.

Poder estar ao lado do meu pai era melhor que estar na companhia de Dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz (JUNIOR, 2019. p. 99).

O livro é narrado por vozes femininas. As heroínas de Torto Arado são mulheres que existem, mulheres reais. Um autor homem escrever com essa perspectiva de gênero é das belezas da literatura, que permite que se ocupe esse lugar de alteridade. A linguagem não é aspecto secundário no livro que começa com a perda da fala de um das personagens, mistério que o autor só revela depois de um terço da obra. Aquela voz que se perde é simbolicamente também as vozes caladas pela violência, pelo racismo que são sofridos principalmente pelas mulheres, não à toa, os homens no livro são personagens secundários. A língua ausente representa o silenciamento ancestral de mulheres que não são prioridades nas políticas públicas, que nunca apareceram na nossa literatura e não têm surgido com frequência em outras expressões artísticas no país” (JUNIOR apud GABRIEL, 2021).

As duas irmãs em momentos diferentes do livro percebem que nada possuem e a condição de exploração e violência em que vivem. Uma delas, percebe ao se casar que além de não ser dona da terra onde vive, também não é dona do próprio corpo. Sofre as violências do racismo, como no momento em que pela primeira vez que saiu da fazenda e foi a um hospital na cidade próxima, percebeu que ela e sua família eram os únicos negros ali foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com curiosidade, mas sem se aproximar” (JUNIOR, 2019. p. 19) – e sofre a violência estrutural imposta pelo patriarcado que impõe o silêncio à sua condição de mulher. Como o livro é construído a partir das dualidades: cidade e campo, medo e coragem, silêncio e voz, fertilidade e infertilidade, Belonísia, como personagem da vida real que é, sentiu medo para depois ganhar coragem e se fazer livre e dona de si, se calou ao mesmo tempo que com a sua vida e sua relação com a terra, falou. A personagem percebeu que a comunicação com as pessoas e a natureza não dependia apenas da voz falada.

O que Itamar Vieira Júnior fez em Torto Arado é o que a escola de Samba Estação Primeira de Mangueira nos convidou a fazer no samba-enredo do carnaval de 2019, tirou poeira dos porões e mostrou que em nossa história tem mais invasão que descobrimento, tem muito sangue atrás do herói da moldura, mas somos feitos de mulheres, tamoios, mulatos, somos Dandara, nossa cara é de Cariri e a liberdade é um dragão no mar de Aracari ( FIRMINO, et al, 2019).


Bibliografia

FIRMINO, Danilo; DOMÊNICO, Deivid; MAMÁ; BOLA, Márcio; OLIVEIRA, Ronie; MIRANDA, Tomaz. Histórias para ninar gente grande. Samba-enredo Estação primeira de Mangueira, 2019. Disponível em: https://www.letras.mus.br/wantuir/historias-para-ninar-gente-grande/ Acesso em 15 Abr. 2021.


GABRIEL, Juan de Sousa. A poética do sertão pelo bem-sucedido ‘Torto Arado’. Revista Época, 2019. Disponível em: https://epoca.globo.com/cultura/a-poetica-do-sertao-pelo-bem-sucedido-torto-arado-23894455 Acesso em 13 Abr. 2021.


G1. Empregadora é condenada por manter mulher em trabalho doméstico análogo a escravidão por 35 anos na Bahia. Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/06/10/empregadora-e-condenada-por-manter-domestica-em-trabalho-analogo-a-escravidao-por-35-anos-na-bahia.ghtml Acesso em 15 Abr. 2021.


JUNIOR, Itamar Vieira. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2019.


OLIVEIRA, Joana. Tudo em ‘Torto Arado’ é presente no mundo rural do Brasil. Há pessoas em condições análogas a escravidão. El País Brasil, 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-12-02/tudo-em-torto-arado-ainda-e-presente-no-mundo-rural-brasileiro-ha-pessoas-em-condicoes-analogas-a-escravidao.html Acesso em 13 Abr. 2021.


VILA NOVA, Daniel. A desigualdade, seja do presente ou do passado, passa pela terra. Revista Gama, 2020. Disponível em: https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/a-desigualdade-seja-do-passado-ou-do-presente-passa-pela-terra/ Acesso em 13 Abr. 2021. 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Covid-19 e as Ciências (Sociais) dos Desastres

 

A pandemia ocasionada a partir da infecção do novo Corona Vírus em todo o mundo vem sendo tratada pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (United Nations Office for Disaster Risk Reduction – UNDRR) como um evento relacionado a desastres e à redução de riscos, a partir de suas inúmeras notícias e ações divulgadas em seu site [1]. É comum ver publicações e relatórios produzidos pelo escritório sobre respostas a desastres e a situações de risco, em diversos países, envolvendo o período deste último ano como o “contexto da Covid-19” e a pandemia como a “crise da Covid-19” [2].

Cientistas sociais da área de desastres e catástrofes, como Samantha Montano e Amanda Savitt [3], abordam a necessidade de tratar a pandemia da Covid-19 de forma mais direta e categorizada nos estudos sobre desastres. Tomando como base a conceituação de desastres de Quarantelli e Perry (2005) e considerando uma abordagem que diferencia teoricamente emergências, desastres e catástrofes, as especialistas em eventos de riscos defendem a abordagem da atual pandemia da Covid-19 enquanto uma catástrofe, pois seus efeitos e necessidades são superiores aos dos desastres, além de abrangerem geograficamente todo o mundo, criando impactos generalizados (MONTANO; SAVITT, 2020).

Ao mesmo tempo que possui relação ampla com catástrofes, a pandemia da Covid-19 possui especificidades e difere da formulação atual das catástrofes em certos aspectos, alguns dos quais:

* As mais de duas milhões de mortes ocasionadas no evento ocorreram direta e majoritariamente a partir de doenças, e não por conta de destruições por eventos climáticos como furacões e inundações, ou por consequências de ações humanas como rompimentos de barragens ou “vazamentos” industriais ou radioativos, por exemplo – o que leva ao tratamento da pandemia por parte de alguns teóricos como “desastre biológico” [3].

* As intercorrências, com um número enorme de internações e da necessidade de cuidados e manobras específicas como internação em unidades de tratamento intensivo, intubação e uso de oxigênio, causaram pressão e colapso sobre sistemas de saúde de diversos países ao mesmo tempo, em escala global.

* A pressão também se deu para as governanças, as quais responderam com a imposição do isolamento social, como uma das medidas de prevenção e administração da crise (considerando a pressão da área científica e social para o isolamento, e a pressão dos mercados internos e do mercado financeiro internacional contrária a essas medidas, sob a ameaça de recessão econômica e desemprego).

 * Além disso, diferente das catástrofes, que são relativamente curtas em duração – considerando, é claro, que em determinados eventos seus efeitos sociais e econômicos persistem longamente para os grupos mais vulneráveis – a pandemia é um evento que já possui duração longa e promete ainda persistir por mais meses ou anos.

Estas diferenças sugerem a necessidade da reformulação nos estudos de desastres, pois como afirmam Montano e Savitt:

 

Os esforços para explorar onde a pandemia se encaixa em nossa definição tradicional de eventos de risco é de particular importância agora, pois a resposta à pandemia Covid-19 está em andamento. Esta ocorrência está prestes a gerar uma nova onda de pesquisas sobre desastres e uma melhor compreensão da localização da pandemia pode aumentar o valor de suas descobertas. Além disso, definir apropriadamente a pandemia pode melhorar a eficácia da resposta e da recuperação, potencialmente salvando vidas e protegendo as comunidades (MONTANO; SAVITT, 2020. Tradução minha).

 

Um dos pontos em comum que relacionam a pandemia atual a um evento de risco se dá na sua complexificada origem. Muitos desastres e catástrofes, envolvendo inundações e deslizamentos de terra, por exemplo, apesar de decorrerem de eventos da natureza, possuem causas ligadas à construção histórica e social dos riscos e à ação humana, a qual se torna uma força sobre a Terra num período chamado Antropoceno [4].

A pandemia, apesar de existir a partir da contaminação de um patógeno natural, o vírus Sars-CoV-2, tem suas causas também relacionadas a fatores historicamente construídos – interligados a padrões socioculturais, políticos e econômicos [5] - que foram facilitando, tanto a transmissão do vírus entre seres humanos quanto a descontrolada vulnerabilidade no combate às mortes e às internações. Essa relação só reforça que este tipo de ocorrência histórica, como os desastres e as catástrofes, merece uma atenção que ultrapasse a questão da natureza e/ou sanitária, além de um intenso investimento em pesquisas de gestão de riscos, de resposta às emergências e de prevenção, abarcando diversas áreas acadêmicas, incorporando aos esforços em andamento, relacionados ao combate ao vírus e sua transmissão.

Portanto, o momento da pandemia pede que cientistas sociais da área de desastres passem a formular novos estudos sobre a pandemia da Covid-19 relacionada a eventos de riscos (desastres e catástrofes), de forma a pontuarem ações das devidas áreas governamentais, somando às pautas econômicas e de saúde já existentes, aumentando as respostas desenvolvidas nas políticas públicas e contribuindo para uma saída mais eficaz e rápida da crise e sua repercussão catastrófica.

[*] Homem passa por grafite sobre Covid-19 no Rio de Janeiro 07/10/2020 REUTERS/Ricardo Moraes. Foto tirada de matéria escrita por Gabriel Araujo “Brasil registra 271 novos óbitos por Covid-19 e total vai a 154.176”, da Reuters, disponível em https://www.reuters.com/article/saude-coronavirus-19out-idLTAKBN2742TW (acesso em 04/04/2021).

[1] Disponivel em https://www.undrr.org/hazard/epidemic-pandemic (acesso em 04/04/2021).

[2] Como é possível ver em publicações como “The Americas & the Caribbean: COVID-19 crisis is an opportunity for cities resilience”, disponível em https://www.undrr.org/news/americas-caribbean-covid-19-crisis-opportunity-cities-resilience; “Action Brief: Gender and Disaster Risk Reduction and Response in the Context of COVID-19: The Asia-Pacific Region”, disponível em https://www.undrr.org/publication/action-brief-gender-and-disaster-risk-reduction-and-response-context-covid-19-asia; “Review of COVID-19 Disaster Risk Governance in Asia-Pacific: Towards Multi-Hazard and Multi-Sectoral Disaster Risk Reduction”, disponível em https://www.undrr.org/publication/review-covid-19-disaster-risk-governance-asia-pacific-towards-multi-hazard-and-multi; ou “Tsunami Evacuation during COVID-19: A Guide for School Administrators”, disponível em https://www.undrr.org/publication/tsunami-evacuation-during-covid-19-guide-school-administrators (acessos em 04/04/2021).

[3] Ouvir no podcast “A pandemia é um desastre”, da Universidade Federal de Pernambuco, disponível em https://sites.ufpe.br/rpf/2020/06/19/a-pandemia-e-um-desastre/ (acesso em 04/04/2021) ou ver em “A natureza jurídica da Pandemia Covid-19 como um desastre biológico: um ponto de partida necessário para o Direito”, disponível em https://www.thomsonreuters.com.br/content/dam/openweb/documents/pdf/Brazil/revistas-especializadas/rt-1017-a-natureza-juridica-da-pandemia-covid-19-2.pdf (acesso em 04/04/2021).

[4] Teóricos como Bruno Latour desenvolveram teorias sobre o conceito, que seria a nova época (ceno) da Terra sob o domínio do humano (anthropos).

[5] Pode ser apontado como este tipo de padrão, por exemplo, a criação de animais e a produção alimentícia industrial ou como outro fator a crise climática. Para saber mais, ver “A dimensão ecológica da pandemia”, disponível em http://www.ihu.unisinos.br/597677-a-dimensao-ecologica-das-pandemias (acesso em 04/04/2021).

Bibliografia:

LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2014, v. 57 n 1.

MONTANO, S.; SAVITT, A. Not All Disasters Are Disasters: Pandemic Categorization and Its Consequences. Essay “Covid-19 and the Social Sciences”. Items - Insights from the Social Sciences. September 10, 2020. Disponível em https://items.ssrc.org/covid-19-and-the-social-sciences/disaster-studies/not-all-disasters-are-disasters-pandemic-categorization-and-its-consequences/ (acesso em 04/04/2021).

PERRY, R. W.; QUARANTELLI, E. L. What is a disasters? New answers to old question. Bloomington, IN, USA: Xlibris Corporation, 2005.

QUARANTELLI, E. L. Emergencies, Disasters and Catastrophes Are Different Phenomena. Delaware Disaster Research Center, University of Delaware, Newark, DE, 2000.

 

 


sexta-feira, 2 de abril de 2021

Centenário de John Rawls

Buscando manter a efervescência da vida intelectual nestes tempos em que a interação face a face é impossível, estamos organizando uma agenda de lives, de forma a promover a difusão do conhecimento, bem como fomentar a interlocução com setores acadêmicos e não acadêmicos da sociedade.

A segunda live de 2021 será em celebração ao centenário de John Rawls, no ano que marca os cinquenta anos de A Theory of Justice. Contaremos com a presença do prof. Dalton Franco que tem produzido trabalhos muito interessantes no campo da Filosofia Política. 

Segue o cartaz de divulgação. 

O convite é pra todo mundo, venham! 

Canal do Youtube (Dpto Ciências Sociais UFF Campos): 

https://www.youtube.com/channel/UCKsJd9Uq_XoT382-yiA2mjw