Arquivo do blog

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Torto Arado e “a luta que pode ser a vida todos os dias”

                                                                                            
                                                                Texto escrito por Flávia Mendes 

Torto Arado, livro do geógrafo Itamar Vieira Júnior, publicado em 2019 pela Editora Todavia, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance literário e do prêmio Oceanos de literatura do ano de 2020 já pode ser considerado um clássico. Uma história “triste, mas bonita” (JUNIOR, 20219. p.243), tal qual as que uma das personagens ensinava aos seus alunos na escola da fazenda sobre o que significa ser quilombola.

Torto Arado é um livro sobre o Brasil. Um Brasil rural, o mesmo de João Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e José Lins do Rêgo. É também um livro sobre a vida. A vida de todos os brasileiros tão comuns e tão esquecidos, também sobre “a luta que pode ser a vida todos os dias” (JUNIOR, 2019. p.24). A partir da história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, o livro narra a vida de trabalhadores rurais moradores da Fazenda Água Negra na região da Chapada Diamantina na Bahia.

Torto Arado levanta muitas questões: classe, raça, gênero, ancestralidade, a vida no campo, a seca, a fome, a relação e o respeito a terra, a falta e o direito a moradia, e a falta que nos faz uma reforma agrária. A narrativa literária de Torto Arado é também política. A ausência do Estado na vida daquelas pessoas, o trabalho análogo a escravidão, a desigualdade naturalizada, a falta de direitos básicos, a falta de escola, a dificuldade de ter acesso a médicos, o trabalho não remunerado em troca de moradia, uma moradia que só pode ser construída com o barro retirado da beira dos rios para que não revelasse o tempo e a conexão daquela comunidade com aquele espaço e fizesse daquela terra um direito.

Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. […] Ah, mas você não pode construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são trabalhadores, não podem ter casa igual a dono (JUNIOR, 2019. p. 204-5).


O escritor em seu trabalho de campo encontrou famílias e gerações inteiras, descendentes de escravos que seguem nos dias de hoje trabalhando em troca de moradia e comida."Aescravidão nunca nos abandonou, só fez mudar de nome. A abolição não foi acompanhada de políticas reparatórias, apenas assinou-se um papel, muito por pressão internacional”, (JUNIOR apud OLIVEIRA, 2021). As condições de vida e trabalho das personagens de Torto Arado não são diferentes da vida de muitos brasileiros nos dias atuais, e não apenas nas regiões norte e nordeste mas também na região sudeste, como por exemplo, na zona rural da cidade de Campos dos Goytacazes no estado do Rio de Janeiro, de onde escrevo. Assim como a mulher que foi mantida escrava por 35 anos na Bahia e sua situação só foi revelada e ela liberta no ano passado. Trabalhava como empregada doméstica em troca de comida e moradia. Ambiente hostil onde faltava água, mas sobrava violência” (JUNIOR, 2019. p. 182).

Também a religiosidade, a fé, as tradições passadas entre as gerações são apresentadas a partir do jarê, religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina que tem influências da umbanda, do catolicismo e do espiritismo, e é mais que um rito religioso, é apresentado como resistência cultural, política e espiritual, antes mesmo que as lutas sindicais e a compreensão sobre direitos aparecesse na vida das personagens. O autor explica que o jarê para além de uma religião, trata-se de uma cosmovisão, é a forma como essas pessoas entendem o mundo e sua realidade” (JUNIOR apud OLIVEIRA, 2021).

No livro, os pais de Bibiana e Belonísia, Zeca Chapéu Grande, além de líder da comunidade, é também o curador que cuida do corpo e dos espíritos das pessoas, num local sem acesso à saúde. “É muito semelhante aos xamãs indígenas, aos babalaôs e yalorixás das religiões de matrizes africanas e até mesmo à figura do padre no cristianismo e seus sacramentos e ritos” (JUNIOR apud VILA NOVA, 2021).

Zeca Chapéu Grande luta para que seja construída a primeira escola na fazenda, talvez não tenha se dado conta que era ele o grande educador daquele lugar. A escola construída com telha de cerâmica e sem banheiro, recebeu o nome de um antigo proprietário da fazenda que nunca pôs os pés ali. Não apenas o nome da escola desconectava aquela instituição dos alunos que ali foram estudar, também a professora reproduzia uma educação dos livros de história e não percebia diante dela “a história que a história não conta” (FIRMINO, et al. 2019).

Não me atraía a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria. (JUNIOR, 2019. p. 97).

Quando a escola chega na fazenda, Belonísia já tinha compreendido que os conhecimentos que precisava para viver naquele lugar eram ensinados por seu pai, Zeca Chapéu Grande.

Poder estar ao lado do meu pai era melhor que estar na companhia de Dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz (JUNIOR, 2019. p. 99).

O livro é narrado por vozes femininas. As heroínas de Torto Arado são mulheres que existem, mulheres reais. Um autor homem escrever com essa perspectiva de gênero é das belezas da literatura, que permite que se ocupe esse lugar de alteridade. A linguagem não é aspecto secundário no livro que começa com a perda da fala de um das personagens, mistério que o autor só revela depois de um terço da obra. Aquela voz que se perde é simbolicamente também as vozes caladas pela violência, pelo racismo que são sofridos principalmente pelas mulheres, não à toa, os homens no livro são personagens secundários. A língua ausente representa o silenciamento ancestral de mulheres que não são prioridades nas políticas públicas, que nunca apareceram na nossa literatura e não têm surgido com frequência em outras expressões artísticas no país” (JUNIOR apud GABRIEL, 2021).

As duas irmãs em momentos diferentes do livro percebem que nada possuem e a condição de exploração e violência em que vivem. Uma delas, percebe ao se casar que além de não ser dona da terra onde vive, também não é dona do próprio corpo. Sofre as violências do racismo, como no momento em que pela primeira vez que saiu da fazenda e foi a um hospital na cidade próxima, percebeu que ela e sua família eram os únicos negros ali foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com curiosidade, mas sem se aproximar” (JUNIOR, 2019. p. 19) – e sofre a violência estrutural imposta pelo patriarcado que impõe o silêncio à sua condição de mulher. Como o livro é construído a partir das dualidades: cidade e campo, medo e coragem, silêncio e voz, fertilidade e infertilidade, Belonísia, como personagem da vida real que é, sentiu medo para depois ganhar coragem e se fazer livre e dona de si, se calou ao mesmo tempo que com a sua vida e sua relação com a terra, falou. A personagem percebeu que a comunicação com as pessoas e a natureza não dependia apenas da voz falada.

O que Itamar Vieira Júnior fez em Torto Arado é o que a escola de Samba Estação Primeira de Mangueira nos convidou a fazer no samba-enredo do carnaval de 2019, tirou poeira dos porões e mostrou que em nossa história tem mais invasão que descobrimento, tem muito sangue atrás do herói da moldura, mas somos feitos de mulheres, tamoios, mulatos, somos Dandara, nossa cara é de Cariri e a liberdade é um dragão no mar de Aracari ( FIRMINO, et al, 2019).


Bibliografia

FIRMINO, Danilo; DOMÊNICO, Deivid; MAMÁ; BOLA, Márcio; OLIVEIRA, Ronie; MIRANDA, Tomaz. Histórias para ninar gente grande. Samba-enredo Estação primeira de Mangueira, 2019. Disponível em: https://www.letras.mus.br/wantuir/historias-para-ninar-gente-grande/ Acesso em 15 Abr. 2021.


GABRIEL, Juan de Sousa. A poética do sertão pelo bem-sucedido ‘Torto Arado’. Revista Época, 2019. Disponível em: https://epoca.globo.com/cultura/a-poetica-do-sertao-pelo-bem-sucedido-torto-arado-23894455 Acesso em 13 Abr. 2021.


G1. Empregadora é condenada por manter mulher em trabalho doméstico análogo a escravidão por 35 anos na Bahia. Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/06/10/empregadora-e-condenada-por-manter-domestica-em-trabalho-analogo-a-escravidao-por-35-anos-na-bahia.ghtml Acesso em 15 Abr. 2021.


JUNIOR, Itamar Vieira. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2019.


OLIVEIRA, Joana. Tudo em ‘Torto Arado’ é presente no mundo rural do Brasil. Há pessoas em condições análogas a escravidão. El País Brasil, 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-12-02/tudo-em-torto-arado-ainda-e-presente-no-mundo-rural-brasileiro-ha-pessoas-em-condicoes-analogas-a-escravidao.html Acesso em 13 Abr. 2021.


VILA NOVA, Daniel. A desigualdade, seja do presente ou do passado, passa pela terra. Revista Gama, 2020. Disponível em: https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/a-desigualdade-seja-do-passado-ou-do-presente-passa-pela-terra/ Acesso em 13 Abr. 2021. 

Um comentário: