Escrito por Carlos Henrique Aguiar Serra[i], Luís Antônio Francisco de
Souza[ii] e Marcial Suarez[iii]
Em
agosto do ano passado, nesse mesmo espaço, escrevemos um artigo que versava
sobre a política genocida do atual governo federal em relação, muito
particularmente, à pandemia que se potencializa a cada dia e transforma esses
tempos sombrios em dilacerantes, com muita dor, sofrimento psíquico e aumento da letalidade.
Sustentávamos
à época que o país tinha atingido a cifra inadmissível e dramática de cem mil
mortes e que a política do governo Bolsonaro tinha a marca emblemática do
genocídio, pois nada tinha feito para reduzir danos ou mesmo se antecipar, em
conformidade com as orientações vindas de todas as partes do mundo, no sentido
específico de realizar aqui uma prevenção à Covid 19 com medidas restritivas,
distanciamento social, uso da máscara e até mesmo o recurso ao lockdown.
É uma lástima,
portanto, termos que retomar esse tema porque de agosto de 2020 até os dias
atuais, a letalidade atingiu a marca trágica de mais de 370 mil mortes, o que
coloca o Brasil no epicentro mundial da pandemia, como um exemplo do que não
deve ser feito, pois o descaso, omissão, negligência, negacionismo,
irresponsabilidade e prática genocida, e nisso não há, infelizmente, qualquer
adjetivação, estão presentes de uma forma muito potente nos discursos e (in)ação do governo Bolsonaro.
Nesse
sentido, estamos imersos na conjuntura da Necropolítica onde a produção de
mortes diárias, que se intensificam e crescem assustadoramente, é a realização
de desejos mórbidos, a concretização das pulsões de morte e, também, fazem
parte dessa política genocida do governo federal no que tange à pandemia.
Há
inúmeras frases proferidas pelo presidente Bolsonaro que tentam fazer humor,
mas, ao contrário, trata-se de um intenso desprezo, descaso da vida, que
banaliza e naturaliza os óbitos, e segue na sua pregação mórbida, plena de ódio
e preconceitos (“país de maricas”), num espetáculo grotesco de insensatez, grosserias,
onde a existência humana não é a figura central, mas sim a sombra, a escuridão,
a ignorância e, portanto, a presença de Tânatos.
No
duelo, não só no imaginário, no campo das fantasias, mas que realiza-se e
materializa-se na prática social e política desse governo, entre Tânatos e Eros, Tânatos, leia-se pulsão de morte, sempre terá êxito frente a
Eros, a pulsão de vida.
Na nossa
interpretação, o atual governo federal é movido por Tânatos, ou seja, a sua anima
é plenamente eivada de pulsão de morte, a Necropolítica, que é a força
propulsora desse governo, obsessivo por destruir e desconstruir.
Para se
tentar compreender melhor essa política genocida do governo Bolsonaro, a partir
do 1º dia de exercício do mandato, cabe-nos destacar um aspecto extremamente
relevante nesse projeto político de poder de Bolsonaro e apoiadores.
Estamos a nos referir explicitamente à militarização tão intensa nesse governo. Deve-se reiterar, então, que o projeto político, desde começo de janeiro de 2019, tem como cerne a militarização, não só no que se refere à segurança pública, mas à vida.
É a militarização da vida que se acelera a cada instante do governo federal, pois a militarização implica na fabricação incessante da figura do “inimigo” e na ótica da “guerra”. Esse governo opera o tempo todo com a lógica do “inimigo” e a ótica da “guerra” e em todos os setores, desde o Ministério do Meio-Ambiente, que tem um ministro que clama por mais e mais desmatamento, passando pelo Ministério da Educação, que declara “guerra” às universidades públicas federais, o Ministério das Relações Exteriores, que repete e reifica ad nauseam, de forma torpe, uma série de preconceitos políticos e ideológicos contra países que são percebidos como “inimigos”. Enfim, a lógica desse governo, que, ao que parece, permanece em campanha, é produzir ódio e intolerância, e, portanto, mais mortes e mortos, caso concreto da pandemia, pois o modus operandi é fomentar e produzir “inimigos” e “guerras”.
Nesse
país chamado Brasil, militarização e Necropolítica se fusionam e, então, quando
isso ocorre, como nos dias atuais, com a pandemia se potencializando desde
março de 2020, o genocídio se materializa nos óbitos produzidos por uma
política que tem desprezo pela existência humana, banaliza a morte e goza com o
sofrimento do Outro.
Continuamos
a sustentar que nessa conjuntura atual, há o exercício pleno da Necropolítica
(SERRA, 2020) e, também, que ainda permanecemos a observar o “fazer viver,
deixar morrer” e o “fazer morrer, deixar viver” (SERRA, 2020).
As mais
de 370 mil mortes, produzidas por esta política genocida, vai ao encontro
daqueles que são considerados “descartáveis” (MBEMBE, 2018), pois segundo este
autor, e ajustando o foco da análise para o Brasil, sob a chancela do governo
Bolsonaro, ainda há o “poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer (...)”
(SERRA, 2020).
Cabe-nos
ainda ressaltar, considerando a relação entre militarização e necropolítica,
que no âmbito do dispositivo da gestão militarizada há a pretensão da
preeminência dos militares na gestão da força e dos riscos, em que a vida e a
morte têm lugar de destaque. O dispositivo militarizado funda novas fronteiras
entre viver e morrer. É nesse sentido que não há uma contradição entre a
politização da morte e a estratégia de poder biopolítica (FOUCAULT, 1999;
2008). A militarização dos aparelhos do Estado e a estatização dos grupos
paramilitares demonstram que o poder de morte e de destruição é central nas
estratégias biopolíticas produtoras de desigualdades sociais e de assimetrias
de distribuição de poder no país (SOUZA e SERRA, 2020).
Desta
forma, retomamos o argumento de que a morte ou a possibilidade da morte é parte
da engrenagem biopolítica militarizada. As formas de intervenção militares
estão compreendidas na exceção soberana, na medida em que o poder de morte,
previsto em situações de guerra, é confiscado pela polícia e é racionalizado
pelo militarismo, como luta permanente contra um inimigo imaginário. Sendo
assim, matar é parte integrante de um dispositivo de controle da vida daqueles
que merecem viver a custo do massacre de quem deve morrer (SOUZA e SERRA,
2020).
Outro
aspecto que merece atenção é que a militarização se configura como um
verdadeiro estado de exceção permanente, na medida em que intervenções,
ocupações, operações, estratégias militares operam nas margens em que se
encontram o legal e o ilegal (SOUZA e SERRA, 2020).
É importante atentar para o fato de que a militarização corresponde à normalização do militarismo, com suas consequências em termos de limitações de direitos e legitimação da violência do estado (SOUZA e SERRA, 2020).
Assim
sendo, considerando a conjuntura atual, salientamos que o militarismo, além de
representar o modelo de um estado de exceção, permite toda uma ritualística
fúnebre e macabra em que se dá a aceitação tácita da violência e da morte
(SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021).
Concluindo,
a interface entre militarização e necropolítica é a responsável por toda essa
produção incessante de óbitos, que já ultrapassam mais de 370 mil, que se
inscreve nesse genocídio estatal que,
realmente, traz consigo essa “ritualística
fúnebre e macabra” (SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021) onde as mais de 370 mil mortes, produzidas
pela letalidade do Estado, se personificam tragicamente nesse projeto genocida
do governo Bolsonaro.
E ainda
há a milicianização da segurança pública e da vida, mas isso será objeto da
próxima reflexão.
FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes.
FOUCAULT, Michel. (1999), Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes.
SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), Cem mil mortes e a militarização da vida: pandemia e política genocida, Blog Diálogos do Fim do Mundo.
SOUZA, Luís Francisco de e SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), “Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública no Brasil”. In: Revista Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, volume 2, n 32.
SUAREZ, Marcial, SOUZA, Luís Francisco de e Serra, Carlos Henrique Aguiar (2021), “The violence dynamics in public security: military interventions and police-related deaths in Brazil”. In: OÑATI SOCIO-LEGAL SERIES.
Nenhum comentário:
Postar um comentário