Arquivo do blog

segunda-feira, 19 de abril de 2021

A conjuntura da Necropolítica num país chamado Brasil

 

Fonte: Fotos Públicas

Escrito por Carlos Henrique Aguiar Serra[i], Luís Antônio Francisco de Souza[ii] e Marcial Suarez[iii]



[i] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

[ii] Professor Livre-Docente da UNESP.

[iii] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

 

 


Em agosto do ano passado, nesse mesmo espaço, escrevemos um artigo que versava sobre a política genocida do atual governo federal em relação, muito particularmente, à pandemia que se potencializa a cada dia e transforma esses tempos sombrios em dilacerantes, com muita dor, sofrimento psíquico e aumento da letalidade.

Sustentávamos à época que o país tinha atingido a cifra inadmissível e dramática de cem mil mortes e que a política do governo Bolsonaro tinha a marca emblemática do genocídio, pois nada tinha feito para reduzir danos ou mesmo se antecipar, em conformidade com as orientações vindas de todas as partes do mundo, no sentido específico de realizar aqui uma prevenção à Covid 19 com medidas restritivas, distanciamento social, uso da máscara e até mesmo o recurso ao lockdown.

É      uma lástima, portanto, termos que retomar esse tema porque de agosto de 2020 até os dias atuais, a letalidade atingiu a marca trágica de mais de 370 mil mortes, o que coloca o Brasil no epicentro mundial da pandemia, como um exemplo do que não deve ser feito, pois o descaso, omissão, negligência, negacionismo, irresponsabilidade e prática genocida, e nisso não há, infelizmente, qualquer adjetivação, estão presentes de uma forma muito potente nos discursos e (in)ação do governo Bolsonaro.

Nesse sentido, estamos imersos na conjuntura da Necropolítica onde a produção de mortes diárias, que se intensificam e crescem assustadoramente, é a realização de desejos mórbidos, a concretização das pulsões de morte e, também, fazem parte dessa política genocida do governo federal no que tange à pandemia.

Há inúmeras frases proferidas pelo presidente Bolsonaro que tentam fazer humor, mas, ao contrário, trata-se de um intenso desprezo, descaso da vida, que banaliza e naturaliza os óbitos, e segue na sua pregação mórbida, plena de ódio e preconceitos (“país de maricas”), num espetáculo grotesco de insensatez, grosserias, onde a existência humana não é a figura central, mas sim a sombra, a escuridão, a ignorância e, portanto, a presença de Tânatos.

No duelo, não só no imaginário, no campo das fantasias, mas que realiza-se e materializa-se na prática social e política desse governo, entre Tânatos e Eros, Tânatos, leia-se pulsão de morte, sempre terá êxito frente a Eros, a pulsão de vida.

Na nossa interpretação, o atual governo federal é movido por Tânatos, ou seja, a sua anima é plenamente eivada de pulsão de morte, a Necropolítica, que é a força propulsora desse governo, obsessivo por destruir e desconstruir.

Para se tentar compreender melhor essa política genocida do governo Bolsonaro, a partir do 1º dia de exercício do mandato, cabe-nos destacar um aspecto extremamente relevante nesse projeto político de poder de Bolsonaro e apoiadores.

Estamos a nos referir explicitamente à militarização tão intensa nesse governo. Deve-se reiterar, então, que o projeto político, desde começo de janeiro de 2019, tem como cerne a militarização, não só no que se refere à segurança pública, mas à vida.

É a militarização da vida que se acelera a cada instante do governo federal, pois a militarização implica na fabricação incessante da figura do “inimigo” e na ótica da “guerra”. Esse governo opera o tempo todo com a lógica do “inimigo” e a ótica da “guerra” e em todos os setores, desde o Ministério do Meio-Ambiente, que tem um ministro que clama por mais e mais desmatamento, passando pelo Ministério da Educação, que declara “guerra” às universidades públicas federais, o Ministério das Relações Exteriores, que repete e reifica ad nauseam, de forma torpe, uma série de preconceitos políticos e ideológicos contra países que são percebidos como “inimigos”. Enfim, a lógica desse governo, que, ao que parece, permanece em campanha, é produzir ódio e intolerância, e, portanto, mais mortes e mortos, caso concreto da pandemia, pois o modus operandi é fomentar e produzir “inimigos” e “guerras”.

Nesse país chamado Brasil, militarização e Necropolítica se fusionam e, então, quando isso ocorre, como nos dias atuais, com a pandemia se potencializando desde março de 2020, o genocídio se materializa nos óbitos produzidos por uma política que tem desprezo pela existência humana, banaliza a morte e goza com o sofrimento do Outro.

Continuamos a sustentar que nessa conjuntura atual, há o exercício pleno da Necropolítica (SERRA, 2020) e, também, que ainda permanecemos a observar o “fazer viver, deixar morrer” e o “fazer morrer, deixar viver” (SERRA, 2020).

As mais de 370 mil mortes, produzidas por esta política genocida, vai ao encontro daqueles que são considerados “descartáveis” (MBEMBE, 2018), pois segundo este autor, e ajustando o foco da análise para o Brasil, sob a chancela do governo Bolsonaro, ainda há o “poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer (...)” (SERRA, 2020).

Cabe-nos ainda ressaltar, considerando a relação entre militarização e necropolítica, que no âmbito do dispositivo da gestão militarizada há a pretensão da preeminência dos militares na gestão da força e dos riscos, em que a vida e a morte têm lugar de destaque. O dispositivo militarizado funda novas fronteiras entre viver e morrer. É nesse sentido que não há uma contradição entre a politização da morte e a estratégia de poder biopolítica (FOUCAULT, 1999; 2008). A militarização dos aparelhos do Estado e a estatização dos grupos paramilitares demonstram que o poder de morte e de destruição é central nas estratégias biopolíticas produtoras de desigualdades sociais e de assimetrias de distribuição de poder no país (SOUZA e SERRA, 2020).

Desta forma, retomamos o argumento de que a morte ou a possibilidade da morte é parte da engrenagem biopolítica militarizada. As formas de intervenção militares estão compreendidas na exceção soberana, na medida em que o poder de morte, previsto em situações de guerra, é confiscado pela polícia e é racionalizado pelo militarismo, como luta permanente contra um inimigo imaginário. Sendo assim, matar é parte integrante de um dispositivo de controle da vida daqueles que merecem viver a custo do massacre de quem deve morrer (SOUZA e SERRA, 2020).

Outro aspecto que merece atenção é que a militarização se configura como um verdadeiro estado de exceção permanente, na medida em que intervenções, ocupações, operações, estratégias militares operam nas margens em que se encontram o legal e o ilegal (SOUZA e SERRA, 2020).

 No governo Bolsonaro, há um número expressivo de militares ocupando posições estratégicas em várias instâncias do governo federal e nesse sentido, pode-se observar que o número de militares no governo federal supera a presença de militares nos governos durante o regime militar, desde Castelo Branco, passando por Costa e Silva, Médici, Geisel, até o último general da ditadura, o presidente Figueiredo (SOUZA e SERRA, 2020).

É   importante atentar para o fato de que a militarização corresponde à normalização do militarismo, com suas consequências em termos de limitações de direitos e legitimação da violência do estado (SOUZA e SERRA, 2020).

Assim sendo, considerando a conjuntura atual, salientamos que o militarismo, além de representar o modelo de um estado de exceção, permite toda uma ritualística fúnebre e macabra em que se dá a aceitação tácita da violência e da morte (SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021).

Concluindo, a interface entre militarização e necropolítica é a responsável por toda essa produção incessante de óbitos, que já ultrapassam mais de 370 mil, que se inscreve nesse genocídio estatal que, realmente, traz consigo essa “ritualística fúnebre e macabra” (SUAREZ, SOUZA e SERRA, 2021) onde as mais de 370 mil mortes, produzidas pela letalidade do Estado, se personificam tragicamente nesse projeto genocida do governo Bolsonaro.

E ainda há a milicianização da segurança pública e da vida, mas isso será objeto da próxima reflexão.

 

 Referências bibliográficas:


FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes.

FOUCAULT, Michel. (1999), Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes.

SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), Cem mil mortes e a militarização da vida: pandemia e política genocida, Blog Diálogos do Fim do Mundo.

SOUZA, Luís Francisco de e SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020), “Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública no Brasil”. In: Revista Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, volume 2, n 32.

SUAREZ, Marcial, SOUZA, Luís Francisco de e Serra, Carlos Henrique Aguiar (2021), The violence dynamics in public security: military interventions and police-related deaths in Brazil”. In: OÑATI SOCIO-LEGAL SERIES.



[1] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

[2] Professor Livre-Docente da UNESP.

[3] Professor Associado de Ciência Política da UFF.

Nenhum comentário:

Postar um comentário