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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Diálogos indisciplinados e interdisciplinares sobre a pandemia: um ensaio subversivo

 


Escrito por: Alice de Araújo Nascimento Pereira [i](IFF), Bárbara Breder Machado [ii](UFF) Glayce Junqueira Quintanilha [iii](IFF) Lays Gabrielle Neves Moreno [iv] (IFF) Olívia de Melo Fonseca [v](IFF)

 

Da ruína também abrem-se brechas...

As linhas que seguem derivam do diálogo estabelecido a partir do livro O que é ecossocialismo? (2014), de Michael Löwy, em encontros on-line de professores e pesquisadores de campos de saberes distintos, no período de quarentena. Tais reuniões nos permitiram pensar sobre presente e futuro, relações entre natureza e humanidade, teoria e prática política, e é claro que discutir a atual pandemia e as circunstâncias com as quais nos deparamos foi uma das razões para o nascimento e ânimo destes encontros.

Longe de propor respostas sobre o cenário vigente, pretendemos aqui lançar reflexões e abrir linhas de análise como forma de procurar, nas brechas da realidade em ruínas, alguns pontos de baliza para o atravessamento destes dias difíceis. Imersos e solapados, também existencialmente em nossa singularidade, pela pandemia mundial, confinados em nossas casas e submetidos ao trabalho na modalidade home office, a escrita coletiva nos aparece como via possível e potente de avançar à luz da realidade que nos parece ainda opaca. Ao mesmo tempo que nos permitem elaborar em coletivo os vetores que nos atravessam, alguns argumentos nos parecem boas chaves de compreensão para o que está posto, sendo, portanto, também via de fortalecimento ao permitir que, ainda que distantes, possamos aqui fiar juntos.

Compreender se coloca a nós hoje como um desafio um tanto difícil, tendo em vista que o que temos experienciado é uma certa falência dos constructos teóricos que dispomos até aqui. Parece-nos que o mundo, tal como vínhamos imersos, tanto o da vida ordinária quanto aquele formatado às análises segmentadas nas disciplinas, em nossos artigos de outrora, está em ruínas. Por conseguinte, abre-se, em nosso horizonte, a necessidade de fabulação de um novo universo que nos exige compreender este que parece colapsar bem diante de nossos olhos. Ao mesmo tempo, questionamo-nos sobre as ferramentas teóricas e empíricas que temos para essa tarefa, a qual parece estar apenas começando.

Neste sentido, parece-nos que a via interdisciplinar e coletiva é a única possível, porque nos exige construir uma miríade analisadora deste fenômeno complexo que a pandemia nos impôs. Exige-nos olhar, em um só golpe, diversas camadas de análise e feridas de diversos tempos da história de nosso país. Passado, presente e futuro se colocam na tela simultaneamente, ao mesmo tempo, que nos atinge em nossas vidas singulares e nos convocam enquanto intelectuais. Seguimos em direção à ruptura de uma episteme vigente, no âmbito de uma “desobediência epistêmica”, como nos fala Aníbal Quijano (2005).

 Percebemos que o recurso etnográfico pode mesmo ser um caminho interessante... Mas será suficiente neste contexto pandêmico? Como chegar assim, sem pouco dizer e muito sentir? Como nos aproximar de um objeto de estudo se nem um objeto temos? Se tão logo nos aproximamos e tentamos um contato, ele se esvai feito a fumaça de nossas florestas cinzas? Com que direito nos apropriamos de suas imagens, atravessamos suas narrativas, categorizamos, recortamos, definimos um corpus, um locus?

Está claro que o momento é de silenciar para ganhar fôlego e sentido. Perscrutar, sem deixar de agir. “Faz mais barulho uma árvore que cai que uma floresta que cresce”. Percebemos então que o mergulho deverá ser mais profundo e inventamos barreiras, pois mudanças são mesmo processos lentos e integrar nossas partes dilaceradas pode ser bem doloroso. Agarramo-nos em tudo e a todos... perfeitamente compreensível! Afinal, um abismo continua sendo um precipício. E “precipitar”, “levitar”, “voar”, por exemplo, continuam sendo verbos metafóricos se pensamos em habilidades e competências humanas.

Temos medo. No entanto, é preciso construir. Que desafio esse de escrever uma palavra nova e se deixar impactar por símbolos (signos e significantes) nunca vistos! Um verdadeiro exercício de vulnerabilidade, porque tem a ver com tornar nossas fronteiras mais fluidas e porosas.

Nossa proposta, portanto, é romper com o caráter duro da escrita acadêmica, dado o imperativo de flexibilidade que estes tempos exigem, sem, no entanto, perder o rigor. Escrever em coletivo, no estilo artesanal de costura de retalhos argumentativos provenientes de nossos campos de pesquisa e atuação, fazendo ecoar a convocação e o lugar de intelectuais orgânicas (GRAMSCI, 1982), comprometidas com o território e a realidade concreta na qual estamos postas. Ao mesmo tempo, também utilizaremos a polifonia dos lugares, a partir dos quais nos lançamos no esboço desta escrita, na medida em que somos igualmente sujeitos e objetos de análise. 

 Se a destruição está em curso, as fendas para o inimaginável e a inventividade estão também abertas. Frente a ambas, é preciso coragem para lançar-nos: “Para quem quer se soltar, invento o cais” (BORGES; NASCIMENTO; 1972).

***

Construindo um Cais ...

A pandemia instaura-se como um fenômeno de escala global, faz cair por terra muitas vendas que insistimos em vestir para evitar olhar de frente e que aqui listamos com o intuito de bordejá-las:

 (1) Nossa ação predatória em relação à natureza. Não seria novidade afirmar que a pandemia do novo coronavírus  guarda relação direta com a exploração da natureza pautada pelo capitalismo, que a transforma em recurso expropriável, destruindo a biodiversidade e os habitats de animais, criando-os de forma insustentável, possibilitando a aparição de zoonoses.

(2) A feminização da natureza nos aponta a construção ideológica que sustenta a exploração tanto dela própria quanto das mulheres e, ao mesmo tempo, faz desconectar estas do contato direto com o ambiente natural. O sentido é de que o antropocentrismo é instituído pela lógica masculinista – a mesma raiz que sustenta a exploração e o processo de subalternização das mulheres, pilar da acumulação primitiva. Lógica do latifúndio, da monocultura, da manipulação genética dos alimentos que aumentarão a produtividade e os lucros, da derrubada das florestas para virar pasto, da retirada do ser humano como parte integrante e integrada à natureza.

(3) O vírus, que tem sua fonte de nascimento em uma relação de aguda exploração do meio ambiente, aponta, de saída, a necessidade de repensarmos a lógica de consumo e a ecologia de forma radical. É necessário, portanto, um deslocamento conceitual que nos faça internalizar a interdependência entre os humanos e todas as formas de existência que nos cercam e aquelas que são necessárias à vida, ainda que não se encaixem neste lugar epistemológico. Essa mudança só é possível se recusarmos a objetificação de tudo que é material ou imaterial como é feito pelo capitalismo. Dentro da lógica do mercado, tudo pode ter valor de troca mediado pelo dinheiro, tal qual afirma Löwy (2014, p. 41): “o capital põe em perigo ou destrói as suas próprias condições”.

Como a Ética poderia se enraizar, crescer e florescer em um ambiente tão hostil quanto o sistema capitalista? Já faz tempo que a degradação ambiental se tornou uma preocupação política global, porque os problemas gerados por ela são cada vez mais evidentes e complexos. No entanto, a ideia de um capitalismo verde, em que corporações, governos e sociedade civil tomariam atitudes mais responsáveis e, assim, freariam a rápida devastação ambiental, parece improvável, insuficiente e mesmo contraditória. Propostas como decrescimento econômico, reciclagem, redução do consumo de carne, transição para energias renováveis são todas extremamente importantes, porém os lucros infinitos almejados pelo sistema que mercantiliza tudo são incompatíveis com a vida que transborda abundante, sem obedecer nem ao relógio nem ao sistema financeiro. É imperativo que o debate seja, antes de tudo, situado na perspectiva anticapitalista, porque “se o problema é sistêmico, a solução tem que ser antissistêmica” (LÖWY, 2014, p. 09). 

(4) No Brasil a politização do vírus nos fez encarar de frente o horror da nossa formação sócio-histórica que nos exige pensar, analisar e elaborar as bases estruturais sobre as quais o país foi erguido. É preciso reconhecer que a lógica elitista, escravocrata, racista, misógina e de ódio aos povos originários são os vetores presentes na necropolítica, termo cunhado por Achille Mbembe (2011) que postula que a soberania tem se dado não só pela gestão da vida, mas pela administração da morte, a qual se desdobra na produção de cadáveres em larga escala em território brasileiro. Fomos fundados sobre um grande cemitério indígena e, assim, seguimos no projeto de genocídio da população mais pobre. Mortes essas que poderiam ser evitadas através de gestão adequada de políticas públicas de isolamento social, garantia de renda, socorro aos pequenos negócios, aplicação dos protocolos de segurança sanitária orientados pela OMS e, neste sentido, de liderança da população por aqueles que ocupam os espaços decisórios.

A lógica do lucro, fazendo girar a famosa “máquina de moer gente” que, no Brasil, quase perde a função metafórica e é tangibilizada na realidade através da reabertura do comércio ao estilo burlesco da novela O bem-amado, a qual se materializou na fala do prefeito de Itabuna: “morra quem morrer” [vi]. Assim, esta pequena cidade da Bahia [vii] se configura como uma espécie de Sucupira dos novos tempos, onde, em vez da hipocrisia, revela, de forma direta, à luz do dia, o nascer de uma nova governamentalidade cínica que faz empuxo ao pior e reverbera em corpos seu caráter mais nefasto: a) aqueles que tiveram suas vidas ceifadas; b) aqueles que insistem em circular voluntariamente pelos espaços públicos arriscando as próprias vidas em aglomerações e sem uso de máscaras para atividades ordinárias nos bares do Leblon e nas praias do Rio de Janeiro; e, por fim, c) aqueles que foram elevados, da noite para o dia, à categoria de heróis da sociedade, que são os profissionais que estão na “linha de frente”, num sistema público de saúde que já vinha sendo sucateado. Na prática, um poder público lançando mão da lógica perversa da servidão voluntária.

Estaríamos em tempo de ter que afirmar o óbvio? “Que tempos são estes que é preciso reafirmar o óbvio?” Sempre nos espantamos com a atualidade da fala de Bertolt Brecht. Reafirmar o valor da vida se faz hoje e, mais uma vez, urgente. Entretanto, ao que parece, no Brasil, há uma grave configuração e definição de quais vidas seriam dignas de serem vividas, em detrimento de muitas outras. Vidas não passíveis de luto, conforme apontaria Judith Butler (2019). Amplificada nos números exorbitantes atualizados na carnificina exponencial, no fechamento deste ensaio [viii], somam-se 120.025 mortes.  Tal forma nefasta engloba hoje todo um espectro de vidas que não se enquadram na moldura da elite econômica brasileira: trabalhadores, negros, pobres, mulheres, indígenas... Com isso, conclui-se o perfil populacional mais atingido pelo Covid-19: os mais pobres e os não-brancos têm sido os que mais morrem [ix]. Seguramente nenhum de nós está fora desta tempestade, mas muitos de nós seguem a nado e poucos de nós têm lucrado com o caos engendrado, fazendo cair por terra a afirmação mau caráter de que “estamos no mesmo barco”.

Assim, ao observarmos as medidas equivocadas de enfrentamento à pandemia que agravam ainda mais o cenário, longe de ser inabilidade política, parece-nos uma estratégia genocida na lança da necropolítica que visa acirrar ainda mais o hiato da desigualdade em nosso país, a concentração de terras e renda em nome do lucro e a subserviência ao Capital estrangeiro. Pululam em nossa memória diversos exemplos deste fato, como: veto presidencial à obrigatoriedade de uso de máscaras em escolas, igrejas e comércio; suspensão de distribuição de máscaras à população vulnerabilizada; insistência do presidente em circular sem máscara, minimizar a gravidade da pandemia e até mesmo mostrar-se alheio às mais de 100 mil mortes já registradas; ausência de Ministro da Saúde há mais de 3 meses; produção e veiculação de informações falsas sobre o covid-19 e seus agravos; dentre outros. Constatamos indignados: nós, brasileiros, estamos à deriva. Onde está o cais?  

Contudo, assusta-nos a adesão ao pior quando vemos despencar as taxas de isolamento social no Brasil, ainda mais quando é fato que os números de contaminados e de mortes vêm aumentando. Impossível, diante destes acontecimentos, assumir como aporte teórico a rational choice para compreender o direcionamento deste comportamento. Não, não somos guiados pela escolha racional (MACHADO, 2015).

O papel do negacionismo é terreno fértil para o agora, em que os discursos científico e intelectual perdem espaço para a narrativa do fanatismo religioso e o culto aos líderes que se dizem contra o establishment. Os que negam a gravidade da pandemia se assemelham aos que negam as mudanças climáticas que já afetam profundamente todo o espaço em que habitamos e promete aprofundar a crise em que nos encontramos. Existem aqueles que negam o aquecimento global por desconhecerem os fatos ou por desconfiarem dos consensos científicos a seu respeito. Há, no entanto, outros que o fazem como parte de sua estratégia política e de seu projeto de dominação.

Interessa pensar que nossa subjetividade é, portanto, atravessada e guiada também por essa correlação de forças. Assim, transformamo-nos em nossos próprios algozes ao introjetarmos, aos moldes freudianos, estes vetores de dominação. Tornamo-nos alienados de nossa relação com a natureza, alienados de nossa relação com os outros, alienados de nossa própria existência autônoma e de seu valor intrínseco. Na medida em que não temos acesso a eles como alteridade, e sim como reduzidos a puro objeto (lógica perversa do Capital), resta-nos a oferta capitalista do desempenho e da relação de dominação, bem como as ofertas de suas insígnias simbólicas para a construção identitária, em que a existência está intimamente ligada ao consumo e na correlata privação do outro. Ser é sinônimo de ter, ou ainda a construção identitária de alguns grupos e indivíduos está amalgamada às marcas e aos produtos que possui, aos lugares que frequenta, aos serviços dos quais desfruta. 

Se nossa hipótese de que o mundo tal como conhecemos está em ruínas e com ele todos referenciais simbólicos, parece-nos que há um movimento social de recusa de fazer luto das prerrogativas. Abrir mão da lógica de funcionamento da exploração, da subjugação do outro e de si mesmo seria uma medida de abrir mão da constelação simbólica que dá sentido à vida, fazendo abrir, sob seus pés, a angústia do vazio existencial. 

O que queremos ensejar aqui como hipótese é que estes indivíduos que recusam voluntariamente o isolamento social amam o Capitalismo mais que a si mesmos, a ponto de colocar suas próprias vidas em risco. Amam o status que o capitalismo os confere, de detentores do poder econômico e financeiro. Da mesma forma, as elites brasileiras preferem fazer ruir um país, seu crescimento e a si mesmos a ter que dividir recursos e dirimir a injustiça social. Parece-nos que, tal como os nazistas que cometeram suicídio ao final da Segunda Guerra Mundial ao verem o plano da supremacia ariana ruir, a elite brasileira e os indivíduos que, de alguma forma, estão capturados por este ideal burguês são incapazes de vislumbrar outra configuração de relação social a ponto de entrar em rota de colisão com a morte. Parecem desejá-la a ter que abrir mão deste modo de relação que leva à subalternização e à desumanização do outro e de si mesmo.

 

***

Frente a isso, resta-nos a insistência na pergunta: como mudar o pensamento social, as condutas e as balizas que pautam as relações humanas quando o cenário que se impõe é deveras complexo? Como posto na abertura deste ensaio, nosso objetivo de trabalho está norteado pelo desejo de fiar junto, desfiando a miríade analisadora de nossos lugares na academia. Entretanto, arriscamos uma aposta da ética do cuidado, tal como lançado no ecofeminismo: saber reconhecer nossa interdependência em relação à natureza e em relação aos outros, trazendo-nos para a dimensão da responsabilidade coletiva, de fabular junto um outro mundo que não este, trilhando unidos e tecendo na esperança organizada da utopia ativa. Assim, buscamos recuperar a ideia do ser humano como parte integrante da natureza e interdependente uns dos outros e do espaço. Ao mesmo tempo, procuramos desconstruir a visada misógina sobre a mulher, seu corpo e sexualidade. A partir desta noção de interdependência, nasce o compromisso social com a existência coletiva fazendo frear o individualismo, mote para a relação competitiva do Capitalismo.

Reconhecer o outro em sua alteridade é reconduzi-lo do lugar de objeto, posto pelo discurso perverso, restituindo-lhe o lugar de sujeito (de direitos). Sujeitos ativos, implicados e articulados coletivamente são capazes de ações pelo comum, fazendo o enfrentamento da lógica do pior, que tem esgarçado o tecido social, o qual, a esta altura, apresenta graves rupturas...

Neste sentido, para pensar junto, em “Escavando e recordando” (1987, p. 239), Walter Benjamin compara o indivíduo que busca o passado com a escavação de um arqueólogo: “Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”. Nessa procura para que um pedaço do passado retorne ao presente, ocorre uma disjunção originária. Este fragmento passa a dar outro sentido ao presente, diferente daquele do passado. Em virtude disso, Benjamin (1987, p. 239) aconselha: “E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho”.

Com esta citação, Benjamin nos ajuda a olhar para o nosso passado pré-colonial, mas, principalmente, a olhar o presente para além do progresso capitalista, destruidor, para tudo aquilo que resistiu e ainda resiste aos processos de (neo)colonização. Com isso, ele nos auxilia em levantar uma questão fundamental para o presente: Não seria a procura por uma resposta pautada na responsabilidade para o amanhã, em que a história não seria entendida nem por uma ótica positiva, nem por uma ótica negativa, pois haveria sempre algum fragmento de tempo que sobreviveria a momentos de barbárie, que nos motiva a repensar o mundo capitalista, patriarcal, racista e (neo)colonial por uma ótica do bem viver [x], da comunidade por vir feminista, antirracista e decolonial?

É sobre essa responsabilidade para o amanhã, é sobre a tomada de consciência de que o amanhã não está à venda (KRENAK, 2020) que devemos nos debruçar no presente que resiste a fixar seu olhar no passado em ruínas, o mesmo que nos impede de entrever sobrevivências. Sigamos nos perguntando: Que imagens do passado queremos vislumbrar no contemporâneo? Que imagens do passado, enquanto estratégia produtiva sustentável, queremos colocar em movimento para nos ligar ao futuro agroecológico, em que o prefixo eco já esteja tão imbuído em nossas vivências que se tornará desnecessário?

Vale lembrar que estamos pensando aqui em diálogo com Maria da Graça Costa que, em “Agroecologia, (eco)feminismos e ‘bem viver’: emergências decoloniais no movimento ambientalista brasileiro” (2020, p. 286), afirmou que a agroecologia é:

 

Um campo de saberes e práticas que se constitui tanto como tecnologia quanto como movimento social, passando a representar um paradigma de produção agrícola que visa reduzir o impacto socioambiental da produção de alimentos, valorizando os conhecimentos tradicionais e o campesinato, como sujeito e forma de organização social.

 

Tomando distância de uma crônica linear da história, tal qual o tempo é pensado por Benjamin e, antes dele, por muitos povos pré-colombianos, desejamos ponderar sobre figurações de tempos heterogêneos. Neste sentido, chama a nossa atenção a canção “Um índio”, de Caetano Veloso, que ecoa sobre “aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido óbvio”. Lançada em 1977, a canção em questão se atualiza na live realizada pelo cantor no dia 07/08/2020, em meio à quarentena, mas, sobretudo, em comemoração a sua vida, que, até o momento, foi narrada ao longo de 78 anos, sem permitir “a boiada passar despercebida”.

Um salve a Caetano! Um salve a resistência de sua voz que faz coro contra a corrente de ministros que deveriam lutar em prol do meio ambiente e da vida, mas que, sorrateiramente, aproveitam o cargo e o momento oportuno para mudar regras enquanto o número de mortes causadas pelo COVID-19 sobe a cada dia.

Em diálogo com Caetano e tomando distância da lógica hegemônica do “tempo é dinheiro”, estamos em busca de outras formas de produção de subjetividades, habitats, trabalho, lazer e ficções abertas ao comum. Estamos em busca de sobrevivências e, neste texto, de escrevivências, como diria a grande poeta Conceição Evaristo. Estamos em busca de momentos e movimentos que resistem à organização de valores, os mesmos que implodem em temporadas de deslumbramento. Estamos em busca de menos espetáculos e menos especulações financeiras. Estamos em busca de fazer da “pobreza de experiência”, da qual Benjamin (1985) nos recorda, uma experiência.

Experiência esta que nos ensina as nossas companheiras contemporâneas, principalmente as mulheres de populações tradicionais, as indígenas, as negras, as do campo. As mulheres em luta que, à distância, parecem solitárias, mas que, ao nos aproximarmos de suas batalhas, percebemos o quanto são exemplos concretos do que entendemos por coletividade feminista decolonial. Para dar nomes ao que é invisibilizado pelas propagandas das grandes mídias, onde o “Agro é pop!”, citemos estes movimentos que, a contrapelo, já deram e dão certo em seus territórios e que nos servem como potência polinizadora de ações palpáveis em um mundo viável e autossustentável: Marcha das Margaridas, Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), mulheres frente à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) [xii].

Toda essa rede de mulheres combate em prol das causas feministas decoloniais do bem viver. Procura, assim, trazer ao centro toda a humanidade marginalizada e explorada pelos processos de colonização e de construção de uma civilização pautada nos valores ocidentais, brancos, patriarcais e cristãos, em detrimento de sua outridade, nós, os do Cone Sul, os não-humanos (LUGONES, 2020). Desta forma, elas nos ensinam a repensar a visão antagônica estabelecida muito antes de nascermos e que parece blindada a qualquer intervenção e/ou proposta alternativa de (sobre)vivência e (r)existência: humanos/civilizados/civilização X não-humanos/bárbaros/natureza.

O que elas dividem com a gente é inclusão democrática, direito à dignidade de todas, todos e todes, tendo como norte, cada vez menos, a produção e o consumo desenfreados, e, cada vez mais, a recuperação da saúde, no sentido amplo, do meio ambiente e de seus viventes. É construção de uma comunidade do zero para chamar de nossa, imbuída em muito afeto, em metodologias de saberes diversos e na convenção de outras práticas epistemológicas.

Talvez seja por isto que tenhamos pensado em fiar... Costurar artesanalmente e coletivamente o que está esgarçado e rompido em muitos pontos. Já que, de tudo que existe, só a luta é vida, em que “nada é tão estranho como as relações humanas, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade” (WOOLF), que alegria seguirmos juntas! Talvez seja isto que o pensamento decolonial e o bem viver tenham mesmo que nos ensinar, ou relembrar… Aqui, na trincheira do campo acadêmico, na associação de coautoria, cinco pesquisadoras, a dez mãos, seguem fiando este ensaio subversivo que deseja (des)construir caminhos outros...           

 

(in)conclusões abertas ao porvir…

Ou ainda, “Eu odeio os indiferentes”, de Gramsci, ou quem sabe, “A palo seco”, de Belchior. Na dúvida, ficamos com “O direito ao delírio”, de Eduardo Galeano [xiii]: “Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja”.

E nós por nós. Como será a sensação de uma descoberta científica? “Conseguimos a vacina do Corona!”. “E a notícia vem daqui do Brasil”. E inauguramos uma nova lógica de pensar. E fundamos uma nova maneira de nos relacionar, fixada muito mais na lógica da abundância que da escassez. Nada de novo normal. Tal fabulação chega a golpear nossa face de tão cínica e ilógica. Mas pensamos aqui na função fabuladora (e também na função realizante!) – e da intuição – de Deleuze (1999), que nos elevam a zonas muito mais amplas que os limites dos nossos corpos e mundinhos, quando na elaboração dos conhecimentos artísticos e científicos.

Eis aqui o nosso protagonismo, político e social, que trata do poder que temos em nossas mãos de redefinir (com profundo respeito e generosidade) os processos de subjetividades que nos acompanharão daqui em diante, como humanidade antes de mais nada. “Decolonizar”, pensar nas nossas preferências, nos nossos consumos, reivindicar e inaugurar um imaginário que nos devolva o sentido asfixiado pela lógica de exploração e da subjugação do “Outro” (esses moinhos de vento que insistimos em criar para lutar enquanto forjamos algum sentido de existência próprio). Estreias verdadeiras, subversão genuína, resultante de tantos processos interrompidos, individuais e coletivos, de tantas vidas que, em teimosia, insistem em olhar com os olhos da paixão e da liberdade! Com espanto e admiração, como professores educadores, é sempre bom lembrar que “sem ideias não vamos a lugar algum” e que tem sempre algum Dermeval Saviani pelo caminho colocando em crise as nossas convicções e nos apontando caminhos férteis, ainda não trilhados, de formação de um educador integral: com sensibilidade ética, epistêmica, antropológica, estética, política y un poquito más.

Para Hannah Arendt (1995, p. 143): “Homens que não pensam são como sonâmbulos”. Os sonâmbulos são as pessoas às quais faltam, em alguma medida, estas sensibilidades. Dentre elas, a sensibilidade epistêmica que é condição para as demais. Em qual destes aspectos permanecemos anestesiados? Não existe coisa melhor que o poder da escolha, da autonomia, mesmo com todos os riscos e imprevisibilidade. O que sairá dessa imensa colcha de retalhos? Apostamos em algo encantador, potente, fruto do encontro de olhares outros atentos.

Sobre a imagem de abertura do texto [xi]

 



[i] Professora de Língua Inglesa do IFFluminense, Campus Macaé. Doutoranda em Estudos Literários pela UFF.

[ii] Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense – ESR. Psicanalista e Doutora em Ciência Política.

[iii] Professora de Meio Ambiente do IFFluminense, Campus Macaé. Mestra em Engenharia Ambiental.

[iv] Professora de Língua Espanhola do IFFluminense, Campus Macaé. Mestra em Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas.

[v] Professora de Língua, Portuguesa, Literatura e Redação do IFFluminense, Campus Macaé. Doutora em Estudos Literários.

[vi] Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/07/02/video-prefeito-de-itabuna-diz-que-comercio-sera-reaberto-a-partir-de-9-de-julho-morra-quem-morrer.ghtml. Acesso em: 29/08/2020.

[vii] Fala que toma força e faz eco no direcionamento da perversa condução governamental da gestão atual: “e daí”, “não sou coveiro” etc.

[viii] Mortes confirmadas às 13 horas, do dia 29/08/2020. Dado disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/29/brasil-mortes-coronavirus-120-mil.htm. Acesso em: 29/08/2020.

[ix] Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414. Acesso em: 29/08/2020.

[x] Bem viver é um termo que vêm da filosofia dos povos andinos, do quéchua Suma Kawsay. A expressão ganhou visibilidade ao ser incorporada como um direito na constituição do Equador em 2008 e na da Bolívia em 2009 (COSTA, 2020).

[xi] No ato artístico em questão, Caetano Veloso nos devolveu a bandeira nacional com o vazio da cor branca em seu centro, por meio da retirada do slogan “Ordem e Progresso”. Tendo em vista o desafio metafórico proposto por Caetano, resolvemos preencher a lacuna com a logo do Poiesis & Alquimia Feminista, grupo de pesquisa do qual as autoras deste texto fazem parte. É importante ressaltar que esta rede foi criada durante a pandemia atual, com o intuito de reunir pesquisadoras diversas para, dentre outras proposições, lutar em prol de um espaço acadêmico mais amplo, capaz de acolher a pluralidade das necessidades de todas, todos e todes, que não são individuais, e sim coletivas. Por isso, em nossa proposta de reconfiguração da bandeira do Brasil, a imagem do Poiesis & Alquimia Feminista figura em cima do slogan – “Ordem e Progresso” – sem, contudo, apagá-lo de vez. A nossa (re)criação intenta em não eliminar o passado de que fomos/somos feitos para não esquecê-lo, para nos lembrarmos de que, enquanto significado de barbárie, ele não deve se repetir. Entretanto, com a logo do grupo de pesquisa a figurar enquanto imagem de um futuro imaginado, podemos vislumbrar já nosso delírio em/de comunhão.

[xii] Sobre estes movimentos decoloniais de mulheres, vale a leitura do texto de Maria da Graça Costa (2020).

[xiii] Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/3640441. Acesso em: 29/08/2020.

 

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Tradução de Antonio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, volume 1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

________________. “Escavando e recordando”. Rua de mão única. In: Obras escolhidas. Volume II. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

BORGES, Lô; NASCIMENTO, Milton. “Cais”. In: Clube da Esquina. EMI Music, 1972.

BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber; revisão técnica de Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

COSTA, Maria da Graça. “Agroecologia, (eco)feminismos e ‘bem viver’: emergências decoloniais no movimento ambientalista brasileiro”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (organização e apresentação). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de L. B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LÖWY, Michel. O que é o ecossocialismo? São Paulo: Cortez. 2014

LUGONES, María. “Colonialidade e gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (organização e apresentação). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

MACHADO, Bárbara Breder. Política e Psicanálise: (des)encotros entre Foucault e Lacan. Universidade Federal Fluminense, Brasil, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.

 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Pandemia 2020: o vírus que entrará para a história como bode expiatório



Escrito por Dulcinea Duarte de Medeiros (Professora adjunta da Universidad Nacional de Tierra del Fuego, Argentina)



Escrever é sempre desafiador, para mim é como desnudar-se em frente a alguém pela primeira vez: ao contrário do espectador, eu conheço mais ou menos bem cada membro, conheço a história da maioria das marcas que levo, sei quais são as partes mais forte e quais estão mais debilitadas. Eu conheço esse corpo de forma que ninguém jamais conhecerá. Meu corpo é meu espaço implacável, é uma experiência inédita e as razões desse “ineditismo” são, dizem alguns, “de conhecimento público ”.

Não creio que seja de “conhecimento público”, por exemplo, a situação que nós, migrantes, começamos a experimentar à partir do momento em que se admitiu em esfera pública que a pandemia era real. O fechamento das fronteira para impedir a propagação do vírus é também o fechamento da possibilidade de voltar aos nossos países de origem, o aumento da incerteza de reencontrar nossas famílias como as deixamos, de socorrê-las caso seja necessário. Poucos aspectos da experiência pandêmica são de “conhecimento público” e se perguntamo-nos quais aspectos seriam os conhecidos chegaremos à velha questão de a quem nos referimos quando falamos de “público”.

É seguro que a maior parte da população do planeta deve ter acesso à informações sobre alguns aspectos da pandemia, majoritariamente dados estatísticos e informações de natureza epidemiológica: ambos são amplamente divulgado pelos meios de comunicação, ambos dão materialidade à pandemia. As informações estatísticas e biomédicas, mais precisamente epidemiológica, são fundamentais para controlar propagação do vírus. Já a construção social da pandemia se dá na esfera do simbólico e depende de como a população percebe e entende a propagação do vírus, o que evidentemente tambèm è mediado por las informações estatísticas e epidemiológicas. Somado a isso cabe ressaltar que já existem muitas ideias de como poderia ser uma pandemia, em vários sentidos. 

Segundo o saber médico, por exemplo, é suficiente lembrar que foi há muito pouco tempo que o HIV foi considerado uma pandemia com seus respectivos “grupos de risco”, formas de prevenção, estigmas. Na arte, o cinema produziu centenas de filmes sobre “pandemias” (tinham até zumbis: Contágio, Epidemia, Resident Evil). Na literatura lemos “Amor em tempos de cólera”, “A peste”. Na sociologia temos os teóricos da modernidade reflexiva, da cultura do risco, da sociedade do risco. Na história temos vasta produção sobre as pandemias: peste negra, gripe espanhola... Ou seja, há discursos sobre pandemias conformando imaginários sociais. Aqui a pressuposta diferença entre “real” e “fantasia” é indiferente. A oferta sobre pandemias é grande e atrai público diverso: da Bíblia à extensamente documentada “gripe espanhola”, há para todos os gostos. Ainda assim estamos atônitos diante do que estamos vivendo. Como? Por quê?

Refletir sobre a nossa perplexidade frente a algo que não era nem uma fatalidade e muito menos inesperado é um exercício prospectivo que nos permitirá entender determinadas lógicas sociais que estiveram sempre em operação mas somente agora estão completamente expostas. Gostaria de pensar nessa série de contribuições para “Diálogos do Fim do Mundo” como uma inquietação conformada à partir de “pequenos indícios” (Ginzburg, 1990). A pandemia levou milhares de pessoas a experimentar vivências disruptivas em suas formas de vida, e passar por processos que entendiam como exclusivas de grupos específicos da população, dos quais elas estavam excluídas. Eu, por exemplo, nunca imaginei que em minha condição de migrante me depararia com restrições para circular entre os países do MERCOSUL, juridicamente não estou exilada, nem banida.... Essas experiências, somada a outros fatores, pode gerar um trauma coletivo cujas consequências são, pelo menos por agora, imprevisíveis.

Toque de recolher, morrer na porta do hospital esperando vaga, permanecer abandonado em outro país sem ter nenhuma figura jurídica que o ampare, não poder despedir-se de seus entes queridos dada a possibilidade de contágio. Essas situações, ainda que mais recorrentes do que se costuma admitir, não são extensivas a todos e menos ainda de forma igual. Nessa chave, penso nas reflexões de Foucault sobre a biopolítica e sobre o racismo de Estado, na acuidade de Butler sobre os “corpos que importam”, na ideia de banimento como trabalha Agamben, na violência do direito de Benjamin. Se não problematizamos a construção social da pandemia e começamos a desnaturalizar as ideias que os discursos biomédicos enunciam sobre a mesma nunca seremos capazes de entender a contiguidade entre o que era nossa “normalidade” e o contexto pandêmico. 

Tenho lido inúmeros trabalhos dedicados a pensar o mundo pós-pandemia repletos de um otimismo incompreensível sustentado por soluções que não prosperaram antes e não tem porque prosperar agora (cosmopolitismo, direitos humanos, comunidade de nações, esfera pública internacional, vigilância humanizada, higienismo, capitalismo humanizado, “Bring the State back”…)

As “Reflexões sobre a Revolução Francesa” de Edmund Burke não são um clássico somente porque são as linhas fundacionais do conservadorismo, são provavelmente a maior testemunha de que quando as mudanças golpeiam a nossa porta nos assustamos e defendemos a volta à “normalidade”. O mundo pós-pandemia pode sim ser diferente, mas será somente se estivermos dispostos a assumir o compromisso e a responsabilidade com uma “resistência visceral” e, nesse processo, não há lugar para “ingenuidades” que se espantam ao ver que as lógicas de normalização, controle e disciplina fazem exatamente o que tem que fazer.

À guisa de conclusão recupero a pergunta que fiz anteriormente: Por que estamos atônitos diante da pandemia? Quem pensamos que iria nos salvar? O Estado de Direito? As corporações farmacêuticas? Os mecanismos de gestão política da vida? Em um filme pos-apocalipiticamente utopico (The Matrix 1999) o protagonista Neo “O escolhido” salva a humanidade do controle das máquinas: terminamos livres e em condições que hoje classificamos como desumanas e indignas. Mas como se mede a humanidade ou a dignidade? Esses são valores realmente “universais”? Nesse mesmo filme o agente Smith (uma máquina) explica a Morpheu (um humano) que os seres humanos destroem seu habitat  sua única forma de sobreviver è migrar para outras zonas, e que além dos humanos somente os vírus se comportam assim: passam de um corpo a outro sugando tudo o que é possível. Dessa forma os seres humanos seriam uma doença e as máquinas seriam a cura. Pensando nesses termos o único que posso afirmar è que nenhum vírus nunca se proclamou um ser racional que usaria a ciência para sair da “minoridade”. Para pensar essas primeiras provocações no próximo texto analisaremos um pouco sobre como, a partir do discurso moderno, se estabelece uma relação de descontinuidade entre o “Homem” e a “Natureza” e o  papel dessa descontinuidade no entrelaçamento da governamentalidade com a bio e tanatopolìtica deixando mais que claro que o Coronavírus è o único componente dessa història que não podemos responsabilizar pela pandemia.


Bibliografia



AGAMBEN, G. Hommo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.         [ Links ]

_____. Estado de Exceção. São Paulo: Boitem,Sobre los límites materiales y discursivos del «sexo» Buenos Aires: Paidós, 2010

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005a.        _____. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005b.         

_____. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. e org. de Roberto Machado. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005c.         

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Cia. das letras,. 1990