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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Pandemia 2020: o vírus que entrará para a história como bode expiatório



Escrito por Dulcinea Duarte de Medeiros (Professora adjunta da Universidad Nacional de Tierra del Fuego, Argentina)



Escrever é sempre desafiador, para mim é como desnudar-se em frente a alguém pela primeira vez: ao contrário do espectador, eu conheço mais ou menos bem cada membro, conheço a história da maioria das marcas que levo, sei quais são as partes mais forte e quais estão mais debilitadas. Eu conheço esse corpo de forma que ninguém jamais conhecerá. Meu corpo é meu espaço implacável, é uma experiência inédita e as razões desse “ineditismo” são, dizem alguns, “de conhecimento público ”.

Não creio que seja de “conhecimento público”, por exemplo, a situação que nós, migrantes, começamos a experimentar à partir do momento em que se admitiu em esfera pública que a pandemia era real. O fechamento das fronteira para impedir a propagação do vírus é também o fechamento da possibilidade de voltar aos nossos países de origem, o aumento da incerteza de reencontrar nossas famílias como as deixamos, de socorrê-las caso seja necessário. Poucos aspectos da experiência pandêmica são de “conhecimento público” e se perguntamo-nos quais aspectos seriam os conhecidos chegaremos à velha questão de a quem nos referimos quando falamos de “público”.

É seguro que a maior parte da população do planeta deve ter acesso à informações sobre alguns aspectos da pandemia, majoritariamente dados estatísticos e informações de natureza epidemiológica: ambos são amplamente divulgado pelos meios de comunicação, ambos dão materialidade à pandemia. As informações estatísticas e biomédicas, mais precisamente epidemiológica, são fundamentais para controlar propagação do vírus. Já a construção social da pandemia se dá na esfera do simbólico e depende de como a população percebe e entende a propagação do vírus, o que evidentemente tambèm è mediado por las informações estatísticas e epidemiológicas. Somado a isso cabe ressaltar que já existem muitas ideias de como poderia ser uma pandemia, em vários sentidos. 

Segundo o saber médico, por exemplo, é suficiente lembrar que foi há muito pouco tempo que o HIV foi considerado uma pandemia com seus respectivos “grupos de risco”, formas de prevenção, estigmas. Na arte, o cinema produziu centenas de filmes sobre “pandemias” (tinham até zumbis: Contágio, Epidemia, Resident Evil). Na literatura lemos “Amor em tempos de cólera”, “A peste”. Na sociologia temos os teóricos da modernidade reflexiva, da cultura do risco, da sociedade do risco. Na história temos vasta produção sobre as pandemias: peste negra, gripe espanhola... Ou seja, há discursos sobre pandemias conformando imaginários sociais. Aqui a pressuposta diferença entre “real” e “fantasia” é indiferente. A oferta sobre pandemias é grande e atrai público diverso: da Bíblia à extensamente documentada “gripe espanhola”, há para todos os gostos. Ainda assim estamos atônitos diante do que estamos vivendo. Como? Por quê?

Refletir sobre a nossa perplexidade frente a algo que não era nem uma fatalidade e muito menos inesperado é um exercício prospectivo que nos permitirá entender determinadas lógicas sociais que estiveram sempre em operação mas somente agora estão completamente expostas. Gostaria de pensar nessa série de contribuições para “Diálogos do Fim do Mundo” como uma inquietação conformada à partir de “pequenos indícios” (Ginzburg, 1990). A pandemia levou milhares de pessoas a experimentar vivências disruptivas em suas formas de vida, e passar por processos que entendiam como exclusivas de grupos específicos da população, dos quais elas estavam excluídas. Eu, por exemplo, nunca imaginei que em minha condição de migrante me depararia com restrições para circular entre os países do MERCOSUL, juridicamente não estou exilada, nem banida.... Essas experiências, somada a outros fatores, pode gerar um trauma coletivo cujas consequências são, pelo menos por agora, imprevisíveis.

Toque de recolher, morrer na porta do hospital esperando vaga, permanecer abandonado em outro país sem ter nenhuma figura jurídica que o ampare, não poder despedir-se de seus entes queridos dada a possibilidade de contágio. Essas situações, ainda que mais recorrentes do que se costuma admitir, não são extensivas a todos e menos ainda de forma igual. Nessa chave, penso nas reflexões de Foucault sobre a biopolítica e sobre o racismo de Estado, na acuidade de Butler sobre os “corpos que importam”, na ideia de banimento como trabalha Agamben, na violência do direito de Benjamin. Se não problematizamos a construção social da pandemia e começamos a desnaturalizar as ideias que os discursos biomédicos enunciam sobre a mesma nunca seremos capazes de entender a contiguidade entre o que era nossa “normalidade” e o contexto pandêmico. 

Tenho lido inúmeros trabalhos dedicados a pensar o mundo pós-pandemia repletos de um otimismo incompreensível sustentado por soluções que não prosperaram antes e não tem porque prosperar agora (cosmopolitismo, direitos humanos, comunidade de nações, esfera pública internacional, vigilância humanizada, higienismo, capitalismo humanizado, “Bring the State back”…)

As “Reflexões sobre a Revolução Francesa” de Edmund Burke não são um clássico somente porque são as linhas fundacionais do conservadorismo, são provavelmente a maior testemunha de que quando as mudanças golpeiam a nossa porta nos assustamos e defendemos a volta à “normalidade”. O mundo pós-pandemia pode sim ser diferente, mas será somente se estivermos dispostos a assumir o compromisso e a responsabilidade com uma “resistência visceral” e, nesse processo, não há lugar para “ingenuidades” que se espantam ao ver que as lógicas de normalização, controle e disciplina fazem exatamente o que tem que fazer.

À guisa de conclusão recupero a pergunta que fiz anteriormente: Por que estamos atônitos diante da pandemia? Quem pensamos que iria nos salvar? O Estado de Direito? As corporações farmacêuticas? Os mecanismos de gestão política da vida? Em um filme pos-apocalipiticamente utopico (The Matrix 1999) o protagonista Neo “O escolhido” salva a humanidade do controle das máquinas: terminamos livres e em condições que hoje classificamos como desumanas e indignas. Mas como se mede a humanidade ou a dignidade? Esses são valores realmente “universais”? Nesse mesmo filme o agente Smith (uma máquina) explica a Morpheu (um humano) que os seres humanos destroem seu habitat  sua única forma de sobreviver è migrar para outras zonas, e que além dos humanos somente os vírus se comportam assim: passam de um corpo a outro sugando tudo o que é possível. Dessa forma os seres humanos seriam uma doença e as máquinas seriam a cura. Pensando nesses termos o único que posso afirmar è que nenhum vírus nunca se proclamou um ser racional que usaria a ciência para sair da “minoridade”. Para pensar essas primeiras provocações no próximo texto analisaremos um pouco sobre como, a partir do discurso moderno, se estabelece uma relação de descontinuidade entre o “Homem” e a “Natureza” e o  papel dessa descontinuidade no entrelaçamento da governamentalidade com a bio e tanatopolìtica deixando mais que claro que o Coronavírus è o único componente dessa història que não podemos responsabilizar pela pandemia.


Bibliografia



AGAMBEN, G. Hommo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.         [ Links ]

_____. Estado de Exceção. São Paulo: Boitem,Sobre los límites materiales y discursivos del «sexo» Buenos Aires: Paidós, 2010

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005a.        _____. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005b.         

_____. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. e org. de Roberto Machado. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005c.         

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Cia. das letras,. 1990


2 comentários:

  1. Entre las palabras y las cosas hay un intangible que se pretende lugar del rey, el virus no se ha proclamado como ser racional, pero nosotros desde ese lugar simbólico lo hemos transformado en nuestro reflejo simbólico. "La tarea del médico al describir la enfermedad será la de devolver el espesor vivo de quien la porta" o algo por el estilo.

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  2. Por eso es un chivo expiatorio. Humanizamos un virus para declararlo nuestro enemigo.

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