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quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Cem mil mortos e a militarização da vida: pandemia e política genocida!

Escrito por Carlos Henrique Aguiar Serra (Professor Associado de Ciência Política da UFF)

Nota introdutória: Este artigo é dedicado, in memoriam, ao meu pai, Carlos Serra, dentista e professor universitário, falecido em 30 de maio de 2020, vítima da Covid 19, que lutou a vida inteira pela universalização do sistema de saúde pública no Brasil e foi um defensor enfático do SUS. Ainda acredito que a luta do meu pai não foi e nem será em vão!

 

Temos vivenciado, aqui no Brasil, em particular, uma conjuntura trágica. Esta expressão foi muito bem usada por Darcy Ribeiro, em meados dos anos 90.
Darcy, então, referia-se à crise econômica; à apologia ao Estado mínimo, à época, com sua pregação neoliberal em prol das privatizações; ao projeto político de sufocar e desmontar a educação pública, muito especificamente em relação ao ensino fundamental; e, também, denunciava de forma indignada, ou melhor, nas suas próprias palavras, iracunda, o genocídio praticado contra índios, negros, mulheres, juventude pobre, que vinham sendo exterminados.
Para Darcy, portanto, o Estado, no Brasil, era uma “máquina de moer gente”! (RIBEIRO, 1995).

Esta “máquina de moer gente”, infelizmente, ainda perdura não só no Brasil, mas em quase todas as partes do mundo, muito em face, uma das nossas premissas, do processo de produção capitalista, que continua vigente, se modernizou, se sofisticou, mas que, contudo, enseja em larga escala a exploração da força de trabalho, a extração da mais-valia, o controle sobre o trabalho, a produção incessante da miséria, pauperização, exclusão, marginalização social, potencializa as desigualdades sociais e, também, traz consigo, em determinadas formações sociais, a política genocida.

Na conjuntura atual, na sociedade brasileira, mais especificamente, considerando o Governo Bolsonaro, há também um genocídio em marcha; em outras palavras, em tempos da Covid 19, sabe-se que esta pandemia tem produzido milhares de mortes e produzirá ainda mais e mais mortes em quase todas as partes do mundo (SERRA, 2020).

Cabe ressaltar, contudo, que o genocídio não é só produzido pela Covid 19, mas, também é fomentado e alimentado por políticas que trazem consigo pulsões de morte (SERRA, 2020), e, também, sinalizam concretamente para o exercício pleno da Necropolítica (MBEMBE, 2018).

Sustentamos que a política genocida possui como marca emblemática a pulsão de morte, que produz, portanto, de forma incessante, tal como uma “máquina de moer gente”, execuções, extermínio, mortes, pois como dizia Foucault ainda estamos a observar o “fazer viver, deixar morrer” e o “fazer morrer, deixar viver” (SERRA, 2020).

Esta política genocida se concretiza, de forma trágica, na prática punitivista, e também, militarizada, da Necropolítica (SERRA, 2020). Desta forma, queremos dizer que o “poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer (...) quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018).

Assim sendo, este exercício punitivista do “deixar morrer”, na contemporaneidade, atinge particularmente os “descartáveis”, os “indignos da vida” (AGAMBEN, 2004) e, então, este genocídio em marcha e a biopolítica se imbricam na produção intensa de mortes, na tentativa de se aniquilar o Outro, sendo este percebido sob a ótica do “inimigo” e também, sob a lógica da guerra, pois precisa ser “exterminado” (SERRA, 2020).

Nesse sentido, tendo um olhar mais acurado para a conjuntura atual, no Brasil, e especificamente, a vigência do governo Bolsonaro, podemos também afirmar que “nenhuma vida importa” (FRANCO, 2020) para este governo que demonstra cabalmente a cada dia seu imenso descaso, indiferença, insensibilidade, perversidade e sadismo diante do número, até este momento, absurdo da letalidade causada pela pandemia: mais de 100 mil mortos!

Bolsonaro é um colecionador de discursos deploráveis, que não só agridem o vernáculo, à língua portuguesa, mas, sobretudo, tais discursos violentam a civilidade, urbanidade, respeito às diferenças e, também, atropelam o estado de direito. Mas o que esperar de um presidente que enquanto deputado federal fez apologia da tortura e elogiou, à época, o torturador Brilhante Ustra?

O que estamos a vivenciar nos dias atuais, como escreveu Gabriel Garciá Márquez, em 1981, na verdade, e no plural, são “crônicas de mortes anunciadas”, pois, logo no começo da pandemia, em 27/3/2020, Bolsonaro afirmou enfaticamente, à saída do Palácio do Planalto, com sua habitual destemperança que: “alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. Essa é a vida” (SERRA, 2020).

O presidente já tinha afirmado que não era “coveiro” e agora, no começo de agosto, quando a letalidade da Covid 19 aproximava-se da inacreditável e trágica marca de 100 mil mortos, declarou: “vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema” (FRANCO, 2020).

Em trabalho anterior, defendemos o pressuposto de que o Brasil tem um presidente sem nenhum freio, sem qualquer limite, e também, sem superego (SERRA, 2020). Acrescento, como possibilidade interpretativa, que esta política genocida de Bolsonaro potencializa, com perversidade e sadismo, o “deixar morrer” daqueles que são considerados “descartáveis” e “indignos”.

Este governo intensificou o projeto político de militarização da vida. Sob esta perspectiva, opera-se com uma dupla ótica: inimigo e guerra. Há toda uma lógica bélica no governo Bolsonaro que potencializa em larga escala esta militarização. Não estamos a tratar apenas do fato concreto de que neste governo há o maior número de militares ocupando uma gama enorme de cargos estratégicos, e esta ocupação supera inclusive os números existentes nos governos militares na ditadura (SOUZA e SERRA, 2020), mas desta ótica inimigo-guerra que se personifica nesta política genocida que atinge implacavelmente os “indignos” e “descartáveis”.

Cabe registrar que esta militarização,além de representar o modelo de um estado de exceção, permite toda uma ritualística fúnebre e macabra em que se a aceitação tácita da violência e da morte” (SOUZA e SERRA, 2020).

Esta “ritualística fúnebre e macabra”, plena de pulsão de morte onde há o exercício intenso da política genocida, é executada não por um coveiro que trabalha de forma digna, no ofício diário de sua profissão, em cemitérios espalhados por todo o país, mas por quem ocupa o cargo de presidente no Brasil!

  Referências Bibliográficas:

·       AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

·       FRANCO, Bernardo M. “Nenhuma Vida importa: Bolsonaro e os cem mil mortos”. In; Jornal o Globo, 09/08/2020

·       MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.

·       RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

·       SERRA, Carlos Henrique Aguiar. “Genocídio e Biopolítica: o deixar morrer na contemporaneidade”. In: Blog Visada, abril de 2020.

·       SOUZA, Luís Antônio Francisco de e SERRA, Carlos Henrique Aguiar. “Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública no Brasil”. In: Revista Tempo Social, Revista de Sociologia da  USP, volume 2, n 32, maio-agosto de 2020.

 

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