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quarta-feira, 27 de abril de 2022

A Radiografia das Ciências Sociais Brasileiras

 


 


Mariele Troiano (UFF)

Larissa Arruda (CEBRAP)

 

        

         Identificar as características de um campo do conhecimento é fundamental para sua avaliação. Conhecer o que é produzido, quem são os indivíduos que atuam nas instituições de pesquisa e as diferenças que perpassam cada região permitem a formulação e a implementação de políticas que beneficiem a sociedade brasileira como um todo. Dessa forma, é obrigatório para um projeto de desenvolvimento de um país saber quem são os pesquisadores, o que eles produzem e as diversidades enfrentadas diariamente por eles.           

 

        Exemplos da importância de basear-se em dados para execução de políticas estão na criação de chamadas para auxílios que contemplem perfis particulares, tais como os editais para a Pesquisa Projeto Inicial π (Pi), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e para o Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.  

       

        O primeiro programa é fruto de uma observação das divergências na obtenção de recursos entre os jovens pesquisadores e os profissionais em carreiras consolidadas. A concorrência pelas bolsas entre os pesquisadores recém-contratados é, muitas vezes, desproporcional diante dos docentes com currículos extensos e qualificados, acabando, aqueles, eliminados ao longo do processo. Para corrigir tal competição desigual na obtenção dos recursos, a Fapesp lançou chamada específica para os jovens professores com excelente potencial para a concorrência mais justa entre aqueles com nível similar. Já o segundo programa supracitado é considerado um dos símbolos da Faperj e trata-se de uma valorização do pesquisador em estágio inicial da carreira e, ao mesmo tempo, um enfrentamento à temida “fuga de cérebros” da região. Iniciativas como essas, que são cirúrgicas frente a um problema reconhecido, não têm ocorrido a nível federal. Pelo contrário, o que tem ocorrido é um afastamento cada vez maior da realidade das áreas científicas do país, sobretudo, das suas especificidades e de seus enfrentamentos.                                                                                                                          

        Diante dessa necessidade e fundamental importância, um grupo de pesquisadores e professores de Ciências Sociais ligados ao Grupo de Trabalho Anpocs Digital, que tem como um de seus coordenadores o professor Luiz Augusto Campos (IESP/UERJ), iniciou o ano de 2022 com uma grande novidade: o lançamento do Atlas Digital de Ciências Sociais.                                                                                                       

        O Atlas, com um endereço simples (atlas.anpocs.com), apresenta uma interface bastante sóbria e intuitiva. Logo à direita, aparecem os logos das maiores associações das áreas, conhecidas como as “4As”: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Entre as imagens, há ainda a menção ao Projeto Ciências Sociais Articuladas, que mapeia as políticas de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia no Congresso Nacional e marca uma parceria na construção do Atlas. Ainda na parte superior do site, do lado oposto da descrita anteriormente, está uma imagem que remete à uma cartografia complementada pelas Ciências Sociais, que pode ser interpretada no banco de dados em sua totalidade ou conforme suas subáreas.                                                     

         O Atlas Digital das Ciências Sociais é o primeiro repositório contendo dados e informações sobre os perfis dos cientistas sociais, a organização das instituições de ensino superior e a produção intelectual em Ciências Sociais no Brasil. O produto é parte do projeto "Democracia e Resistências Acadêmicas: As Ciências Sociais na atual conjuntura social, política e cultural brasileira" e teve financiamento da Fundação Ford. O Atlas engloba informações do trabalho acadêmico dos docentes das pós-graduações do Brasil em Sociologia, Ciência Política e Relações Internacionais, e Antropologia e Arqueologia, a partir de dados exportados da Plataforma Sucupira-CAPES e da Plataforma Lattes-CNPq.                                                 

        Esta presente análise tem como objetivo propor uma reflexão não só sobre a importância do Atlas para a comunidade acadêmica, mas também apontar como o produto divulgado coloca em evidência o atual momento político no qual as instituições de ensino superior estão inseridas[1].                                         

        Dessa forma, a iniciativa já surge como um enfrentamento à paralisia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), bem como uma crítica à gestão de políticas públicas de ensino superior por informações dispersas em suas múltiplas bases de dados, quando não desatualizadas. Embora não seja nova essa problemática, e muito menos uma peculiaridade das áreas de educação, ciência e tecnologia, a pandemia agravou ainda mais o quadro de controle e avaliação.                          

        Foi no ano de 2021, por exemplo, que a 32ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou a suspensão da avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), paralisando um processo de avaliação composto por mais de 4.500 programas de mestrado e doutorado entre os meses de setembro e dezembro de 2021. Desde 1961, quando a pós-graduação foi incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o foco tem sido a formação de profissionais altamente capacitados em todas as áreas do conhecimento. Desse modo, a avaliação quadrienal surgiu e se estabeleceu com o objetivo de determinar parâmetros que assegurassem qualidade à produção científica brasileira, bem como vinculasse a produção de conhecimento aos desafios do desenvolvimento social, político e econômico do país.                                                                

                                

        A partir disso, a suspensão do balanço implicou, consequentemente, em desestímulo, ruptura e descontinuidade de avaliações tão necessárias e fundamentais para o avanço quantitativo e qualitativo da produção acadêmica. Em outras palavras, a paralisação da avaliação, de certa forma, representa a negação da existência do corpus científico do país. As graves consequências a longo prazo são imensuráveis, sobretudo, ao que se refere aos investimentos e ausência de parâmetros que produzem comparativos entre as grandes áreas.                                                                                      

                                                         

        Entretanto, os chamados apagões na área de gestão científica podem ser percebidos como estratégicos em alguns momentos. A Plataforma Carlos Chagas e a Plataforma Lattes, que agregam informações sobre diretórios e grupos de pesquisa, também ficaram alguns longos dias fora do ar em outubro de 2021. Depois de um silêncio sobre o que, de fato, tinha acontecido e incertezas sobre perdas dos dados, o evento escancarou a falta de investimento, sobretudo, de manutenção dos sistemas informacionais que envolvem a produção científica no Brasil.                                                                      

            

        Diante desses acontecimentos, o Atlas se apresenta não como um suprimento de um instrumento de avaliação e de mensuração – que já seria bastante satisfatório - mas funciona como uma comprovação de que recursos escassos e descasos inviabilizam enfrentamentos substanciais às disparidades que assolam as áreas, implicando em reproduções de desigualdades sociais.                             

                                            

        Entre os vários dados disponibilizados no Atlas e, consequentemente, múltiplas reflexões possíveis, gostaríamos de destacar três recortes sobre a pós-graduação em Ciências Sociais: o regionalismo, a identidade de gênero e a faixa etária dos docentes.                        

 

        Os dados têm como ano de referência 2019, quando foram localizados 2.757 docentes de 241 instituições públicas e privadas, tanto na pós-graduação strictu sensu quanto lato sensu. É preciso pontuar que três estados da Federação não contam com nenhuma pós-graduação em Ciências Sociais. São eles os estados do Acre, de Rondônia e do Tocantins, que apenas possuem universidades federais com curso de Ciências Sociais nas modalidades de licenciatura e bacharelado.          

 

          Os dados apontam que as Ciências Sociais brasileiras estão concentradas, quando percebidas em sua totalidade, na região Sudeste. Ademais, chama a atenção os números da região Norte, que possui população maior que a região Centro-Oeste e apresenta menos programas de pós-graduação. A distribuição dos programas de pós-graduação pelas regiões brasileiras está exposta no gráfico a seguir. 

 

 

Gráfico 1- Os Programas de Ciências Sociais conforme as regiões


Fonte: Elaborada pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais.

 

              

        Podemos afirmar que existe uma emergente necessidade de consolidação das Ciências Sociais no interior, em sentido oposto ao litoral, sobretudo na região Norte. Do mesmo modo, faz-se obrigatória uma distribuição mais equilibrada das áreas nas regiões. Enquanto os programas de Antropologia são em menor número nas regiões Sul e Sudeste, Ciência Política e Relações Internacionais são mais escassas nas regiões Nordeste e Norte.                                                                                                                                  

           Se com os dados anteriores poderíamos afirmar que as Ciências Sociais brasileiras estão localizadas na região Sudeste, os dados sobre identidade de gênero permitem afirmar que elas estão sendo executadas, em sua maioria, por pesquisadores homens. O montante dos professores é de 57,9%, enquanto das professoras 42,1%. Ademais, a desigualdade de gênero é reproduzida na maioria das regiões brasileiras, sendo a região Norte a única exceção, com uma ligeira maioria de pesquisadoras mulheres (52,2%). Já as regiões Sul (57,9%), Nordeste (58,5%), Sudeste (57,1%), e Centro-Oeste (65,2%), os pesquisadores homens correspondem ao maior número.                                                                

        A acentuada desigualdade de gênero também se revela ao considerarmos as disciplinas. Ciência Política e Relações Internacionais são os campos de conhecimento compostos pelo menor número de professoras, representando 34,45% dos docentes. Na Sociologia, as pesquisadoras correspondem a 44,39% e na Antropologia, 49,37%. Os dados revelam a necessidade urgente de perceber o desestímulo às mulheres na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Nesse ponto, iniciativas como o Projeto Mulheres na Ciência Política, iniciado em 2018 e coordenado pela Associação Brasileira de Ciência Política, são fundamentais.

            Novamente, ao acrescentamos a localização geográfica nessa equação das disciplinas, a desigualdade fica ainda mais evidente. Até mesmo na região Norte, onde as professoras são maioria, na Ciência Política e nas Relações Internacionais elas representam apenas 6% do total (33,3% de mulheres e 66,67% de homens da Ciência Política na região Norte). Entretanto, vale destacar a área da Antropologia e Arqueologia como a mais igualitária dentre as disciplinas. Na região Sudeste, por exemplo, as antropólogas representam 52,94% dos docentes. Abaixo, o quadro reúne os dados apresentados.

 

Quadro 1- Os Programas de Ciências Sociais conforme gênero e regiões brasileiras

 

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais. 

 

            

A última variável analisada é acerca da idade dos docentes que compõem as pós-graduações em Ciências Sociais. Conforme pode ser visto no gráfico 2, as pessoas com até 39 anos são a minoria, enquanto aqueles que atuam nas pós-graduações concentram-se na faixa etária dos 40 a 59 anos. Os professores com mais de 60 anos representam 24% da totalidade. Isso está relacionado, de certo modo, com a idade média de defesa das teses de doutorado, que no Brasil tende a ocorrer entre 30 e 39 anos com 59% dos pesquisadores (SCHWARTZMAN, 2022).[2]

 

Gráfico 2- Docentes dos Programas de Ciências Sociais conforme faixa etária


Fonte: Elaborado pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais.

 

        

Entretanto, também consideramos o perfil etário dos docentes da pós-graduação diretamente relacionado às barreiras enfrentadas pelos jovens professores em início da carreira. Esses profissionais encontram dificuldades para acessar recursos, conseguir orientandos e, especialmente, ingressar nas pós-graduações. Dessa forma, podemos afirmar que as Ciências Sociais brasileiras, em nível de pós-graduação, são executadas por pesquisadores com mais maturidade em suas trajetórias profissionais. 

        

        Para além de estabelecer perfis, o lançamento do Atlas Digital das Ciências Sociais representa não somente uma iniciativa primorosa e um avanço como a primeira tentativa de organizar dados específicos dos pesquisadores que compõem a pós-graduação em Ciências Sociais, mas também sinaliza uma posição crítica frente à ausência de uma gestão de políticas públicas de Ensino Superior em curso no país.

 

 


[1] Os dados que compõem esta presente análise foram coletados em março de 2022. Os números se desencontraram em alguns momentos quando duas variáveis foram selecionadas, como por exemplo, o número de programas por região e sua totalidade. Não tivemos acesso aos dados primários e o Atlas está passando por constante atualização.

[2] Simon, S. Ainda sobre a idade dos doutorados. Disponível em < https://www.schwartzman.org.br/sitesimon/ainda-sobre-a-duracao-dos-doutorados/?fbclid=IwAR3kxFCvTBKEaE7jC5iy4Cepm7GBOqM53ocrXcWlXTFEGHGOFULxfJgq4DQ > Acesso em 29/03/2022.

 

 




 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Aprendizado situado e gênero na escola

 

    
                                                                      Foto: FEPESP (adaptada)*


Esta produção busca analisar um material didático escolar sobre gênero, refletindo sobre o chamado aprendizado situado. Ainda sendo um dos maiores desafios na Educação, ensinar gênero é ensinar a diferença, mostrar os processos pelos quais essa diferença foi naturalizada e as perdas que se tem ao reproduzi-la desse modo. A especialista em Educação, Guacira Louro (2008) nos apresenta a necessidade de desnaturalizar os marcadores ligados à sexualidade a partir de processos discursivos e culturais:

 

 

“Antes de simplesmente assumir noções ‘dadas’ de normalidade e de diferença, parece produtivo refletir sobre os processos de inscrição dessas marcas. Não se trata de negar a materialidade dos corpos, mas sim de assumir que é no interior da cultura e de uma cultura específica que características materiais adquirem significados. Como isso tudo aconteceu e acontece? Através de que mecanismos? Se em tudo isso estão implicadas hierarquias e relações de poder, por onde passam tais relações? Como se manifestam? Não, a diferença não é natural, mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos discursivos e culturais. A diferença é ‘ensinada’” (LOURO, 2008: 22).

 

 

O livro didático pode ser uma das ferramentas de contribuição para esse processo de aprendizagem que desnaturalize as diferenças ligadas ao gênero, proporcionando ao professor um guia para discursos e conteúdos que vão além de conformações em práticas docentes e educativas. Além disso, pode permitir ao estudante se reconhecer no processo educativo, como será explicitado mais à frente.

Um exemplo dessa ferramenta para pensar especificamente as questões de gênero é o livro didático de Sociologia (para o Ensino Médio) “Sociologia em Movimento”, da Editora Moderna (2013), com vários autores, mestres, doutores e especialistas em Educação e Sociologia.

Chamo a atenção para o livro nesta análise, pois, ineditamente, o mesmo contém um capítulo próprio para tratar das questões de gênero, chamado “Gênero e Sexualidade”, localizado mais ao final do livro, na unidade 6: “A Vida Nas Cidades do Século XX! – Questões centrais de uma sociedade em construção” da sua primeira edição.

Ao longo do capítulo, são apresentados e diferenciados os termos sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero, além da apresentação da construção histórica destes, de forma a desnaturalizar categorias que enquadram e estereotipam pessoas. A partir dessa discussão inicial, é possível ao estudante “compreender como a definição cultural de gênero e orientação sexual é construída socialmente”, além de “reconhecer as variações de gênero e da sexualidade em diferentes culturas e momentos históricos” (SILVA, 2013:336). Mais adiante no capítulo, é possível vislumbrar discussões relacionadas às questões de poder, com o histórico da divisão sexual do trabalho e da subordinação da mulher nesse processo.

O livro também apresenta pesquisas relacionadas às temáticas de gênero, abrindo o espaço para autoras que trabalham nesses estudos, em diferentes vertentes, como a brasileira Cristina Bruschini, as feministas estadunidenses Angela Davis e Patricia Collins (SILVA, 2013:344-345). Sobre Davis, o livro acaba mostrando a importância da incorporação do feminismo negro para o debate, confirmando a interseccionalidade, ainda que não cite o termo nos textos:

 

 

“Assim, novas orientações do feminismo, como o feminismo pós-colonial e o feminismo negro, criticaram o individualismo burguês do movimento feminista tradicional. Nessa corrente de pensamento destacam-se a filósofa Angela Davis e a socióloga Patricia Collins, nos Estado Unidos. De fato, os primeiros estudos feministas partiam de um ponto de vista de mulheres que, embora compartilhassem a experiência de opressão da sociedade machista, ainda não contemplavam o ponto de vista das mulheres negras, pobres, e de países colonizados” (Ibidem: 345).

 

 

Além das questões feministas, o livro também aborda a incorporação dos queers (ligados aos LGBTQI+) nos estudos de gênero, apresentando conceitos de autores como Michel Foucault e Judith Butler (SILVA, 2013:348). Também se aproxima dos temas ligados ao gênero no Brasil, focando na violência contra a mulher e contra LGBTQI+, e nos movimentos sociais, apresentando ao final do capítulo a Lei Maria da Penha e indicações de filmes, livros e sites variados sobre a temática de gênero. Com essas aproximações, é possível instigar o estudante a “identificar o caráter de gênero entre as desigualdades sociais existentes no mundo”, além de “relacionar a experiência subjetiva de identidade de gênero às lutas políticas a favor da diversidade e contra o preconceito e a discriminação” (Ibidem: 336).

Alguns discursos construídos historicamente são apresentados, além do papel de instituições na imposição de normas de comportamento e definição dos papeis de gênero, como a igreja e a família. Esta parte do livro, apesar de descrever mais detalhadamente o peso cultural da família patriarcal e da religião como influência segregadora, não apresenta a escola também como um meio, o que poderia levar a um aprendizado mais reflexivo por parte dos estudantes sobre a Educação. Ele apenas cita a escola no seguinte trecho, ao apresentar Parsons: “Talcott Parsons, sociólogo estadunidense, demonstrou como a divisão de papéis sociais entre homens e mulheres é reproduzida nas várias instâncias da socialização (família, escola e grupos de pares) responsáveis por garantir a ordem e a coesão social” (SILVA, 2013:349).

Apesar de não aprofundar a questão da escola como reprodutora da segregação e desigualdade de gênero, o livro é uma ferramenta que possibilita entrar nas discussões de gênero com um aporte teórico e sociológico inicial bem interessante, contribuindo para uma educação mais contextualizada.

Sobre essa aprendizagem mais contextual, uma das atividades propostas no livro pode dar pistas de como, após as discussões teóricas, o estudante pode participar no seu processo de aprendizagem a partir das suas práticas de trabalho. A atividade é a proposta de uma pesquisa a ser feita pelos estudantes, com as seguintes considerações: “nos filmes e programas de TV voltados para crianças, os personagens podem ser analisados quanto à forma como desempenham seus papéis sociais de gênero, e podem reafirmar ou contestar padrões de comportamento esperados de meninas e meninos” (SILVA, 2013:363).

A partir daí, a proposta é que os estudantes façam uma pesquisa sobre os desenhos animados e programas exibidos na TV, além de filmes recentes e procurando nos principais personagens dos sexos femininos e masculinos e nas suas características a expressão das suas identidades de gênero. A ideia é que eles desenvolvam uma análise sobre suas pesquisas, vendo se há prevalência de padrões, de que forma é feita alusão às diferentes sexualidades etc.

Outra proposta é que os estudantes entrevistem crianças do seu bairro ou escola, perguntando sobre seus desenhos e filmes favoritos, seus personagens favoritos e suas principais características. A partir daí os estudantes analisariam padrões, estereótipos e conflitos envolvendo relações de gênero nestas produções, de forma a pensar nas influências destas na construção das identidades de gênero e como as crianças vão agenciando suas identidades nesse processo de socialização.

A partir desse exemplo do livro didático, é possível pensar na contribuição deste para um aprendizado situado que, segundo Lave e Wenger, permite aprender em ação, aprender fazendo (1991:02). O aprendizado situado, além de ser “in situ”, permite funcionalidades do contexto, da cultura na qual o aprendizado está inserido. Não se trata apenas de se localizar no espaço e no tempo (LAVE & WENGER, 1991:03), mas de se situar nas práticas, nos discursos, nas construções sociais da cultura estudada.

Ao propor a atividade apresentada, o aluno, após as discussões teóricas, poderá ir além do conhecimento abstrato e fora do contexto e partir para uma proposta onde ele possa construir, a partir de atividades e bases legítimas, a aprendizagem para além do espaço escolar formal, chegando da periferia para o centro de uma “comunidade de prática” (Ibidem: 01).

É claro que a presente análise não abarca a totalidade da aprendizagem situada dos autores, mas permite tratar de forma inicial estudantes como elementos ativos na construção do conhecimento e na participação das práticas de aprendizado.

 

 

“Esses estudos têm em comum o fato de se tratarem de práticas que interessam profundamente aos seus participantes, direta e indiretamente; envolvem os participantes que se movem entre contextos de sua vida cotidiana, e isso é importante para compreender como a mudança na participação acontece. E a própria ideia de “aprender na prática” implica a existência de mudanças, e com ela a possibilidade de contribuir para compreender historicamente a mudança na vida social” (LAVE, 2015:43-44).

 

 

 Blandine Bril afirma que, quando as pessoas aprendem a perceber e utilizar possibilidades de ação, reveladas pelo contexto, ou seja, pelo ambiente (“affordances”), a aprendizagem ocorre de maneira mais fácil (2002).

O livro didático apresentado e parte de seu conteúdo e de suas propostas contribuem para, a partir das affordances reveladas, possibilitar aprendizados mais próximos da realidade do estudante e das suas práticas de construção do conhecimento, além de fazê-los perceber que o que eles aprendem é “também corporificado e situado” (LAVE, 2015:40), fruto do contexto e da cultura na qual ele ocorre.

A proposta de atividade com entrevista e depois a apresentação dos resultados da pesquisa para a turma também mostra a interação social como um componente crítico desse aprendizado. A forma de deixar estudantes, através da pesquisa, chegarem aos seus próprios resultados, permite um aprendizado que não é intencional ou deliberadamente formatado (LAVE & WENGER, 1991).

Por fim, seria mais eficaz na contextualização dos processos de aprendizagem apresentar a escola de maneira reflexiva no debate, em um aporte histórico e atual das práticas e discursos reproduzidos no espaço escolar que perpetuam a dominação simbólica e a segregação ligada ao gênero e como influência nas práticas de todos.

A partir do exemplo deste livro didático e de parte de seu conteúdo, é possível pensar nas contribuições que esse material pode levar para instrumentalizar uma educação mais contextual e situada, e no combate à segregação na escola. Por sua vez, a aprendizagem tomada dessa maneira permite mais elementos para os agenciamentos dos estudantes, sobretudo os que se identificam com subjetividades consideradas fora do padrão ou da normalidade.

Torna-se de extrema relevância atual propor processos de ensino que permitam ao estudante pensar no contexto da sua aprendizagem e ser ativo nesse processo educacional, partindo para uma “integração cultural” que não se atenha à realidade daquela escolarização evidenciada por Pierre Bourdieu, a de “transmissão hereditária do poder e dos privilégios” (1974: 296) e das desigualdades, mas que permita aos envolvidos no processo aprenderem com a experiência do outro, num aprendizado marcado pela criticidade e pelos agenciamentos. 

Portanto, pensar nas questões de gênero inserindo-as no contexto das aulas e atividades escolares, seja a partir dos diálogos travados e do uso de ferramentas típicas do espaço escolar, como o livro didático, permite inserir alunas e alunos no debate e na aprendizagem para além das naturalizações e reproduções, permitindo também aos estudantes (sobretudo mulheres e LGBTQI+) que se insiram mais nos processos de escolarização.

* Fonte: Federação dos Professores do Estado de São Paulo. Disponível em http://fepesp.org.br/noticia/diversidade-de-genero-e-orientacao-sexual-e-assunto-de-escola/ (acesso em 14 abr 2022). 

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre.  Reprodução cultural. Reprodução social. In: MICELI, Sergio org. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BRIL, Blandine. Apprentissage et contexte. Intellectica, v. 35, n. 2, p. 251-268, 2002.

LAVE, Jean. Aprendizado como/na prática. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 37-47, jul./dez. 2015

LAVE, Jean & WENGER, Etienne. Situated learning: Legitimate peripheral participation. Cambridge university press, 1991.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, n. 2, p. 56, 2008.

SILVA, Afrânio et al. Sociologia em movimento. 1.ed. São Paulo: Moderna, 2013.