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quarta-feira, 27 de abril de 2022

A Radiografia das Ciências Sociais Brasileiras

 


 


Mariele Troiano (UFF)

Larissa Arruda (CEBRAP)

 

        

         Identificar as características de um campo do conhecimento é fundamental para sua avaliação. Conhecer o que é produzido, quem são os indivíduos que atuam nas instituições de pesquisa e as diferenças que perpassam cada região permitem a formulação e a implementação de políticas que beneficiem a sociedade brasileira como um todo. Dessa forma, é obrigatório para um projeto de desenvolvimento de um país saber quem são os pesquisadores, o que eles produzem e as diversidades enfrentadas diariamente por eles.           

 

        Exemplos da importância de basear-se em dados para execução de políticas estão na criação de chamadas para auxílios que contemplem perfis particulares, tais como os editais para a Pesquisa Projeto Inicial π (Pi), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e para o Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.  

       

        O primeiro programa é fruto de uma observação das divergências na obtenção de recursos entre os jovens pesquisadores e os profissionais em carreiras consolidadas. A concorrência pelas bolsas entre os pesquisadores recém-contratados é, muitas vezes, desproporcional diante dos docentes com currículos extensos e qualificados, acabando, aqueles, eliminados ao longo do processo. Para corrigir tal competição desigual na obtenção dos recursos, a Fapesp lançou chamada específica para os jovens professores com excelente potencial para a concorrência mais justa entre aqueles com nível similar. Já o segundo programa supracitado é considerado um dos símbolos da Faperj e trata-se de uma valorização do pesquisador em estágio inicial da carreira e, ao mesmo tempo, um enfrentamento à temida “fuga de cérebros” da região. Iniciativas como essas, que são cirúrgicas frente a um problema reconhecido, não têm ocorrido a nível federal. Pelo contrário, o que tem ocorrido é um afastamento cada vez maior da realidade das áreas científicas do país, sobretudo, das suas especificidades e de seus enfrentamentos.                                                                                                                          

        Diante dessa necessidade e fundamental importância, um grupo de pesquisadores e professores de Ciências Sociais ligados ao Grupo de Trabalho Anpocs Digital, que tem como um de seus coordenadores o professor Luiz Augusto Campos (IESP/UERJ), iniciou o ano de 2022 com uma grande novidade: o lançamento do Atlas Digital de Ciências Sociais.                                                                                                       

        O Atlas, com um endereço simples (atlas.anpocs.com), apresenta uma interface bastante sóbria e intuitiva. Logo à direita, aparecem os logos das maiores associações das áreas, conhecidas como as “4As”: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Entre as imagens, há ainda a menção ao Projeto Ciências Sociais Articuladas, que mapeia as políticas de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia no Congresso Nacional e marca uma parceria na construção do Atlas. Ainda na parte superior do site, do lado oposto da descrita anteriormente, está uma imagem que remete à uma cartografia complementada pelas Ciências Sociais, que pode ser interpretada no banco de dados em sua totalidade ou conforme suas subáreas.                                                     

         O Atlas Digital das Ciências Sociais é o primeiro repositório contendo dados e informações sobre os perfis dos cientistas sociais, a organização das instituições de ensino superior e a produção intelectual em Ciências Sociais no Brasil. O produto é parte do projeto "Democracia e Resistências Acadêmicas: As Ciências Sociais na atual conjuntura social, política e cultural brasileira" e teve financiamento da Fundação Ford. O Atlas engloba informações do trabalho acadêmico dos docentes das pós-graduações do Brasil em Sociologia, Ciência Política e Relações Internacionais, e Antropologia e Arqueologia, a partir de dados exportados da Plataforma Sucupira-CAPES e da Plataforma Lattes-CNPq.                                                 

        Esta presente análise tem como objetivo propor uma reflexão não só sobre a importância do Atlas para a comunidade acadêmica, mas também apontar como o produto divulgado coloca em evidência o atual momento político no qual as instituições de ensino superior estão inseridas[1].                                         

        Dessa forma, a iniciativa já surge como um enfrentamento à paralisia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), bem como uma crítica à gestão de políticas públicas de ensino superior por informações dispersas em suas múltiplas bases de dados, quando não desatualizadas. Embora não seja nova essa problemática, e muito menos uma peculiaridade das áreas de educação, ciência e tecnologia, a pandemia agravou ainda mais o quadro de controle e avaliação.                          

        Foi no ano de 2021, por exemplo, que a 32ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou a suspensão da avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), paralisando um processo de avaliação composto por mais de 4.500 programas de mestrado e doutorado entre os meses de setembro e dezembro de 2021. Desde 1961, quando a pós-graduação foi incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o foco tem sido a formação de profissionais altamente capacitados em todas as áreas do conhecimento. Desse modo, a avaliação quadrienal surgiu e se estabeleceu com o objetivo de determinar parâmetros que assegurassem qualidade à produção científica brasileira, bem como vinculasse a produção de conhecimento aos desafios do desenvolvimento social, político e econômico do país.                                                                

                                

        A partir disso, a suspensão do balanço implicou, consequentemente, em desestímulo, ruptura e descontinuidade de avaliações tão necessárias e fundamentais para o avanço quantitativo e qualitativo da produção acadêmica. Em outras palavras, a paralisação da avaliação, de certa forma, representa a negação da existência do corpus científico do país. As graves consequências a longo prazo são imensuráveis, sobretudo, ao que se refere aos investimentos e ausência de parâmetros que produzem comparativos entre as grandes áreas.                                                                                      

                                                         

        Entretanto, os chamados apagões na área de gestão científica podem ser percebidos como estratégicos em alguns momentos. A Plataforma Carlos Chagas e a Plataforma Lattes, que agregam informações sobre diretórios e grupos de pesquisa, também ficaram alguns longos dias fora do ar em outubro de 2021. Depois de um silêncio sobre o que, de fato, tinha acontecido e incertezas sobre perdas dos dados, o evento escancarou a falta de investimento, sobretudo, de manutenção dos sistemas informacionais que envolvem a produção científica no Brasil.                                                                      

            

        Diante desses acontecimentos, o Atlas se apresenta não como um suprimento de um instrumento de avaliação e de mensuração – que já seria bastante satisfatório - mas funciona como uma comprovação de que recursos escassos e descasos inviabilizam enfrentamentos substanciais às disparidades que assolam as áreas, implicando em reproduções de desigualdades sociais.                             

                                            

        Entre os vários dados disponibilizados no Atlas e, consequentemente, múltiplas reflexões possíveis, gostaríamos de destacar três recortes sobre a pós-graduação em Ciências Sociais: o regionalismo, a identidade de gênero e a faixa etária dos docentes.                        

 

        Os dados têm como ano de referência 2019, quando foram localizados 2.757 docentes de 241 instituições públicas e privadas, tanto na pós-graduação strictu sensu quanto lato sensu. É preciso pontuar que três estados da Federação não contam com nenhuma pós-graduação em Ciências Sociais. São eles os estados do Acre, de Rondônia e do Tocantins, que apenas possuem universidades federais com curso de Ciências Sociais nas modalidades de licenciatura e bacharelado.          

 

          Os dados apontam que as Ciências Sociais brasileiras estão concentradas, quando percebidas em sua totalidade, na região Sudeste. Ademais, chama a atenção os números da região Norte, que possui população maior que a região Centro-Oeste e apresenta menos programas de pós-graduação. A distribuição dos programas de pós-graduação pelas regiões brasileiras está exposta no gráfico a seguir. 

 

 

Gráfico 1- Os Programas de Ciências Sociais conforme as regiões


Fonte: Elaborada pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais.

 

              

        Podemos afirmar que existe uma emergente necessidade de consolidação das Ciências Sociais no interior, em sentido oposto ao litoral, sobretudo na região Norte. Do mesmo modo, faz-se obrigatória uma distribuição mais equilibrada das áreas nas regiões. Enquanto os programas de Antropologia são em menor número nas regiões Sul e Sudeste, Ciência Política e Relações Internacionais são mais escassas nas regiões Nordeste e Norte.                                                                                                                                  

           Se com os dados anteriores poderíamos afirmar que as Ciências Sociais brasileiras estão localizadas na região Sudeste, os dados sobre identidade de gênero permitem afirmar que elas estão sendo executadas, em sua maioria, por pesquisadores homens. O montante dos professores é de 57,9%, enquanto das professoras 42,1%. Ademais, a desigualdade de gênero é reproduzida na maioria das regiões brasileiras, sendo a região Norte a única exceção, com uma ligeira maioria de pesquisadoras mulheres (52,2%). Já as regiões Sul (57,9%), Nordeste (58,5%), Sudeste (57,1%), e Centro-Oeste (65,2%), os pesquisadores homens correspondem ao maior número.                                                                

        A acentuada desigualdade de gênero também se revela ao considerarmos as disciplinas. Ciência Política e Relações Internacionais são os campos de conhecimento compostos pelo menor número de professoras, representando 34,45% dos docentes. Na Sociologia, as pesquisadoras correspondem a 44,39% e na Antropologia, 49,37%. Os dados revelam a necessidade urgente de perceber o desestímulo às mulheres na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Nesse ponto, iniciativas como o Projeto Mulheres na Ciência Política, iniciado em 2018 e coordenado pela Associação Brasileira de Ciência Política, são fundamentais.

            Novamente, ao acrescentamos a localização geográfica nessa equação das disciplinas, a desigualdade fica ainda mais evidente. Até mesmo na região Norte, onde as professoras são maioria, na Ciência Política e nas Relações Internacionais elas representam apenas 6% do total (33,3% de mulheres e 66,67% de homens da Ciência Política na região Norte). Entretanto, vale destacar a área da Antropologia e Arqueologia como a mais igualitária dentre as disciplinas. Na região Sudeste, por exemplo, as antropólogas representam 52,94% dos docentes. Abaixo, o quadro reúne os dados apresentados.

 

Quadro 1- Os Programas de Ciências Sociais conforme gênero e regiões brasileiras

 

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais. 

 

            

A última variável analisada é acerca da idade dos docentes que compõem as pós-graduações em Ciências Sociais. Conforme pode ser visto no gráfico 2, as pessoas com até 39 anos são a minoria, enquanto aqueles que atuam nas pós-graduações concentram-se na faixa etária dos 40 a 59 anos. Os professores com mais de 60 anos representam 24% da totalidade. Isso está relacionado, de certo modo, com a idade média de defesa das teses de doutorado, que no Brasil tende a ocorrer entre 30 e 39 anos com 59% dos pesquisadores (SCHWARTZMAN, 2022).[2]

 

Gráfico 2- Docentes dos Programas de Ciências Sociais conforme faixa etária


Fonte: Elaborado pelas autoras a partir do Atlas das Ciências Sociais.

 

        

Entretanto, também consideramos o perfil etário dos docentes da pós-graduação diretamente relacionado às barreiras enfrentadas pelos jovens professores em início da carreira. Esses profissionais encontram dificuldades para acessar recursos, conseguir orientandos e, especialmente, ingressar nas pós-graduações. Dessa forma, podemos afirmar que as Ciências Sociais brasileiras, em nível de pós-graduação, são executadas por pesquisadores com mais maturidade em suas trajetórias profissionais. 

        

        Para além de estabelecer perfis, o lançamento do Atlas Digital das Ciências Sociais representa não somente uma iniciativa primorosa e um avanço como a primeira tentativa de organizar dados específicos dos pesquisadores que compõem a pós-graduação em Ciências Sociais, mas também sinaliza uma posição crítica frente à ausência de uma gestão de políticas públicas de Ensino Superior em curso no país.

 

 


[1] Os dados que compõem esta presente análise foram coletados em março de 2022. Os números se desencontraram em alguns momentos quando duas variáveis foram selecionadas, como por exemplo, o número de programas por região e sua totalidade. Não tivemos acesso aos dados primários e o Atlas está passando por constante atualização.

[2] Simon, S. Ainda sobre a idade dos doutorados. Disponível em < https://www.schwartzman.org.br/sitesimon/ainda-sobre-a-duracao-dos-doutorados/?fbclid=IwAR3kxFCvTBKEaE7jC5iy4Cepm7GBOqM53ocrXcWlXTFEGHGOFULxfJgq4DQ > Acesso em 29/03/2022.

 

 




 

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