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quinta-feira, 14 de abril de 2022

Aprendizado situado e gênero na escola

 

    
                                                                      Foto: FEPESP (adaptada)*


Esta produção busca analisar um material didático escolar sobre gênero, refletindo sobre o chamado aprendizado situado. Ainda sendo um dos maiores desafios na Educação, ensinar gênero é ensinar a diferença, mostrar os processos pelos quais essa diferença foi naturalizada e as perdas que se tem ao reproduzi-la desse modo. A especialista em Educação, Guacira Louro (2008) nos apresenta a necessidade de desnaturalizar os marcadores ligados à sexualidade a partir de processos discursivos e culturais:

 

 

“Antes de simplesmente assumir noções ‘dadas’ de normalidade e de diferença, parece produtivo refletir sobre os processos de inscrição dessas marcas. Não se trata de negar a materialidade dos corpos, mas sim de assumir que é no interior da cultura e de uma cultura específica que características materiais adquirem significados. Como isso tudo aconteceu e acontece? Através de que mecanismos? Se em tudo isso estão implicadas hierarquias e relações de poder, por onde passam tais relações? Como se manifestam? Não, a diferença não é natural, mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos discursivos e culturais. A diferença é ‘ensinada’” (LOURO, 2008: 22).

 

 

O livro didático pode ser uma das ferramentas de contribuição para esse processo de aprendizagem que desnaturalize as diferenças ligadas ao gênero, proporcionando ao professor um guia para discursos e conteúdos que vão além de conformações em práticas docentes e educativas. Além disso, pode permitir ao estudante se reconhecer no processo educativo, como será explicitado mais à frente.

Um exemplo dessa ferramenta para pensar especificamente as questões de gênero é o livro didático de Sociologia (para o Ensino Médio) “Sociologia em Movimento”, da Editora Moderna (2013), com vários autores, mestres, doutores e especialistas em Educação e Sociologia.

Chamo a atenção para o livro nesta análise, pois, ineditamente, o mesmo contém um capítulo próprio para tratar das questões de gênero, chamado “Gênero e Sexualidade”, localizado mais ao final do livro, na unidade 6: “A Vida Nas Cidades do Século XX! – Questões centrais de uma sociedade em construção” da sua primeira edição.

Ao longo do capítulo, são apresentados e diferenciados os termos sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero, além da apresentação da construção histórica destes, de forma a desnaturalizar categorias que enquadram e estereotipam pessoas. A partir dessa discussão inicial, é possível ao estudante “compreender como a definição cultural de gênero e orientação sexual é construída socialmente”, além de “reconhecer as variações de gênero e da sexualidade em diferentes culturas e momentos históricos” (SILVA, 2013:336). Mais adiante no capítulo, é possível vislumbrar discussões relacionadas às questões de poder, com o histórico da divisão sexual do trabalho e da subordinação da mulher nesse processo.

O livro também apresenta pesquisas relacionadas às temáticas de gênero, abrindo o espaço para autoras que trabalham nesses estudos, em diferentes vertentes, como a brasileira Cristina Bruschini, as feministas estadunidenses Angela Davis e Patricia Collins (SILVA, 2013:344-345). Sobre Davis, o livro acaba mostrando a importância da incorporação do feminismo negro para o debate, confirmando a interseccionalidade, ainda que não cite o termo nos textos:

 

 

“Assim, novas orientações do feminismo, como o feminismo pós-colonial e o feminismo negro, criticaram o individualismo burguês do movimento feminista tradicional. Nessa corrente de pensamento destacam-se a filósofa Angela Davis e a socióloga Patricia Collins, nos Estado Unidos. De fato, os primeiros estudos feministas partiam de um ponto de vista de mulheres que, embora compartilhassem a experiência de opressão da sociedade machista, ainda não contemplavam o ponto de vista das mulheres negras, pobres, e de países colonizados” (Ibidem: 345).

 

 

Além das questões feministas, o livro também aborda a incorporação dos queers (ligados aos LGBTQI+) nos estudos de gênero, apresentando conceitos de autores como Michel Foucault e Judith Butler (SILVA, 2013:348). Também se aproxima dos temas ligados ao gênero no Brasil, focando na violência contra a mulher e contra LGBTQI+, e nos movimentos sociais, apresentando ao final do capítulo a Lei Maria da Penha e indicações de filmes, livros e sites variados sobre a temática de gênero. Com essas aproximações, é possível instigar o estudante a “identificar o caráter de gênero entre as desigualdades sociais existentes no mundo”, além de “relacionar a experiência subjetiva de identidade de gênero às lutas políticas a favor da diversidade e contra o preconceito e a discriminação” (Ibidem: 336).

Alguns discursos construídos historicamente são apresentados, além do papel de instituições na imposição de normas de comportamento e definição dos papeis de gênero, como a igreja e a família. Esta parte do livro, apesar de descrever mais detalhadamente o peso cultural da família patriarcal e da religião como influência segregadora, não apresenta a escola também como um meio, o que poderia levar a um aprendizado mais reflexivo por parte dos estudantes sobre a Educação. Ele apenas cita a escola no seguinte trecho, ao apresentar Parsons: “Talcott Parsons, sociólogo estadunidense, demonstrou como a divisão de papéis sociais entre homens e mulheres é reproduzida nas várias instâncias da socialização (família, escola e grupos de pares) responsáveis por garantir a ordem e a coesão social” (SILVA, 2013:349).

Apesar de não aprofundar a questão da escola como reprodutora da segregação e desigualdade de gênero, o livro é uma ferramenta que possibilita entrar nas discussões de gênero com um aporte teórico e sociológico inicial bem interessante, contribuindo para uma educação mais contextualizada.

Sobre essa aprendizagem mais contextual, uma das atividades propostas no livro pode dar pistas de como, após as discussões teóricas, o estudante pode participar no seu processo de aprendizagem a partir das suas práticas de trabalho. A atividade é a proposta de uma pesquisa a ser feita pelos estudantes, com as seguintes considerações: “nos filmes e programas de TV voltados para crianças, os personagens podem ser analisados quanto à forma como desempenham seus papéis sociais de gênero, e podem reafirmar ou contestar padrões de comportamento esperados de meninas e meninos” (SILVA, 2013:363).

A partir daí, a proposta é que os estudantes façam uma pesquisa sobre os desenhos animados e programas exibidos na TV, além de filmes recentes e procurando nos principais personagens dos sexos femininos e masculinos e nas suas características a expressão das suas identidades de gênero. A ideia é que eles desenvolvam uma análise sobre suas pesquisas, vendo se há prevalência de padrões, de que forma é feita alusão às diferentes sexualidades etc.

Outra proposta é que os estudantes entrevistem crianças do seu bairro ou escola, perguntando sobre seus desenhos e filmes favoritos, seus personagens favoritos e suas principais características. A partir daí os estudantes analisariam padrões, estereótipos e conflitos envolvendo relações de gênero nestas produções, de forma a pensar nas influências destas na construção das identidades de gênero e como as crianças vão agenciando suas identidades nesse processo de socialização.

A partir desse exemplo do livro didático, é possível pensar na contribuição deste para um aprendizado situado que, segundo Lave e Wenger, permite aprender em ação, aprender fazendo (1991:02). O aprendizado situado, além de ser “in situ”, permite funcionalidades do contexto, da cultura na qual o aprendizado está inserido. Não se trata apenas de se localizar no espaço e no tempo (LAVE & WENGER, 1991:03), mas de se situar nas práticas, nos discursos, nas construções sociais da cultura estudada.

Ao propor a atividade apresentada, o aluno, após as discussões teóricas, poderá ir além do conhecimento abstrato e fora do contexto e partir para uma proposta onde ele possa construir, a partir de atividades e bases legítimas, a aprendizagem para além do espaço escolar formal, chegando da periferia para o centro de uma “comunidade de prática” (Ibidem: 01).

É claro que a presente análise não abarca a totalidade da aprendizagem situada dos autores, mas permite tratar de forma inicial estudantes como elementos ativos na construção do conhecimento e na participação das práticas de aprendizado.

 

 

“Esses estudos têm em comum o fato de se tratarem de práticas que interessam profundamente aos seus participantes, direta e indiretamente; envolvem os participantes que se movem entre contextos de sua vida cotidiana, e isso é importante para compreender como a mudança na participação acontece. E a própria ideia de “aprender na prática” implica a existência de mudanças, e com ela a possibilidade de contribuir para compreender historicamente a mudança na vida social” (LAVE, 2015:43-44).

 

 

 Blandine Bril afirma que, quando as pessoas aprendem a perceber e utilizar possibilidades de ação, reveladas pelo contexto, ou seja, pelo ambiente (“affordances”), a aprendizagem ocorre de maneira mais fácil (2002).

O livro didático apresentado e parte de seu conteúdo e de suas propostas contribuem para, a partir das affordances reveladas, possibilitar aprendizados mais próximos da realidade do estudante e das suas práticas de construção do conhecimento, além de fazê-los perceber que o que eles aprendem é “também corporificado e situado” (LAVE, 2015:40), fruto do contexto e da cultura na qual ele ocorre.

A proposta de atividade com entrevista e depois a apresentação dos resultados da pesquisa para a turma também mostra a interação social como um componente crítico desse aprendizado. A forma de deixar estudantes, através da pesquisa, chegarem aos seus próprios resultados, permite um aprendizado que não é intencional ou deliberadamente formatado (LAVE & WENGER, 1991).

Por fim, seria mais eficaz na contextualização dos processos de aprendizagem apresentar a escola de maneira reflexiva no debate, em um aporte histórico e atual das práticas e discursos reproduzidos no espaço escolar que perpetuam a dominação simbólica e a segregação ligada ao gênero e como influência nas práticas de todos.

A partir do exemplo deste livro didático e de parte de seu conteúdo, é possível pensar nas contribuições que esse material pode levar para instrumentalizar uma educação mais contextual e situada, e no combate à segregação na escola. Por sua vez, a aprendizagem tomada dessa maneira permite mais elementos para os agenciamentos dos estudantes, sobretudo os que se identificam com subjetividades consideradas fora do padrão ou da normalidade.

Torna-se de extrema relevância atual propor processos de ensino que permitam ao estudante pensar no contexto da sua aprendizagem e ser ativo nesse processo educacional, partindo para uma “integração cultural” que não se atenha à realidade daquela escolarização evidenciada por Pierre Bourdieu, a de “transmissão hereditária do poder e dos privilégios” (1974: 296) e das desigualdades, mas que permita aos envolvidos no processo aprenderem com a experiência do outro, num aprendizado marcado pela criticidade e pelos agenciamentos. 

Portanto, pensar nas questões de gênero inserindo-as no contexto das aulas e atividades escolares, seja a partir dos diálogos travados e do uso de ferramentas típicas do espaço escolar, como o livro didático, permite inserir alunas e alunos no debate e na aprendizagem para além das naturalizações e reproduções, permitindo também aos estudantes (sobretudo mulheres e LGBTQI+) que se insiram mais nos processos de escolarização.

* Fonte: Federação dos Professores do Estado de São Paulo. Disponível em http://fepesp.org.br/noticia/diversidade-de-genero-e-orientacao-sexual-e-assunto-de-escola/ (acesso em 14 abr 2022). 

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre.  Reprodução cultural. Reprodução social. In: MICELI, Sergio org. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BRIL, Blandine. Apprentissage et contexte. Intellectica, v. 35, n. 2, p. 251-268, 2002.

LAVE, Jean. Aprendizado como/na prática. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 37-47, jul./dez. 2015

LAVE, Jean & WENGER, Etienne. Situated learning: Legitimate peripheral participation. Cambridge university press, 1991.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, n. 2, p. 56, 2008.

SILVA, Afrânio et al. Sociologia em movimento. 1.ed. São Paulo: Moderna, 2013.


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