Esta produção busca analisar um material
didático escolar sobre gênero, refletindo sobre o chamado aprendizado situado. Ainda
sendo um dos maiores desafios na Educação, ensinar gênero é ensinar a
diferença, mostrar os processos pelos quais essa diferença foi naturalizada e
as perdas que se tem ao reproduzi-la desse modo. A especialista em Educação, Guacira
Louro (2008) nos apresenta a necessidade de desnaturalizar os marcadores
ligados à sexualidade a partir de processos discursivos e culturais:
“Antes
de simplesmente assumir noções ‘dadas’ de normalidade e de diferença, parece produtivo refletir sobre os processos de inscrição dessas marcas. Não se trata de negar a materialidade dos corpos, mas sim de assumir que é no interior da cultura e de uma cultura específica que características materiais adquirem significados. Como isso tudo aconteceu e acontece? Através
de que mecanismos? Se em tudo isso estão implicadas hierarquias e relações de
poder, por onde passam tais relações? Como se manifestam? Não, a diferença não
é natural, mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos
discursivos e culturais. A diferença é ‘ensinada’” (LOURO, 2008: 22).
O livro didático pode ser uma das ferramentas
de contribuição para esse processo de aprendizagem que desnaturalize as
diferenças ligadas ao gênero, proporcionando ao professor um guia para
discursos e conteúdos que vão além de conformações em práticas docentes e
educativas. Além disso, pode permitir ao estudante se reconhecer no processo
educativo, como será explicitado mais à frente.
Um exemplo dessa ferramenta para pensar
especificamente as questões de gênero é o livro didático de Sociologia (para o
Ensino Médio) “Sociologia em Movimento”, da Editora Moderna (2013), com vários
autores, mestres, doutores e especialistas em Educação e Sociologia.
Chamo a atenção para o livro nesta análise,
pois, ineditamente, o mesmo contém um capítulo próprio para tratar das questões
de gênero, chamado “Gênero e Sexualidade”, localizado mais ao final do livro,
na unidade 6: “A Vida Nas Cidades do Século XX! – Questões centrais de uma
sociedade em construção” da sua primeira edição.
Ao longo do capítulo, são apresentados e
diferenciados os termos sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero, além
da apresentação da construção histórica destes, de forma a desnaturalizar
categorias que enquadram e estereotipam pessoas. A partir dessa discussão
inicial, é possível ao estudante “compreender como a definição cultural de
gênero e orientação sexual é construída socialmente”, além de “reconhecer as
variações de gênero e da sexualidade em diferentes culturas e momentos
históricos” (SILVA, 2013:336). Mais adiante no capítulo, é possível vislumbrar discussões
relacionadas às questões de poder, com o histórico da divisão sexual do
trabalho e da subordinação da mulher nesse processo.
O livro também apresenta pesquisas
relacionadas às temáticas de gênero, abrindo o espaço para autoras que
trabalham nesses estudos, em diferentes vertentes, como a brasileira Cristina
Bruschini, as feministas estadunidenses Angela Davis e Patricia Collins (SILVA,
2013:344-345). Sobre Davis, o livro acaba mostrando a importância da
incorporação do feminismo negro para o debate, confirmando a
interseccionalidade, ainda que não cite o termo nos textos:
“Assim, novas
orientações do feminismo, como o feminismo pós-colonial e o feminismo negro,
criticaram o individualismo burguês do movimento feminista tradicional. Nessa
corrente de pensamento destacam-se a filósofa Angela Davis e a socióloga
Patricia Collins, nos Estado Unidos. De fato, os primeiros estudos feministas
partiam de um ponto de vista de mulheres que, embora compartilhassem a
experiência de opressão da sociedade machista, ainda não contemplavam o ponto
de vista das mulheres negras, pobres, e de países colonizados” (Ibidem: 345).
Além das questões feministas, o livro
também aborda a incorporação dos queers
(ligados aos LGBTQI+) nos estudos de gênero, apresentando conceitos de autores
como Michel Foucault e Judith Butler (SILVA, 2013:348). Também se aproxima dos
temas ligados ao gênero no Brasil, focando na violência contra a mulher e
contra LGBTQI+, e nos movimentos sociais, apresentando ao final do capítulo a
Lei Maria da Penha e indicações de filmes, livros e sites variados sobre a
temática de gênero. Com essas aproximações, é possível instigar o estudante a
“identificar o caráter de gênero entre as desigualdades sociais existentes no
mundo”, além de “relacionar a experiência subjetiva de identidade de gênero às
lutas políticas a favor da diversidade e contra o preconceito e a discriminação”
(Ibidem: 336).
Alguns discursos construídos
historicamente são apresentados, além do papel de instituições na imposição de normas
de comportamento e definição dos papeis de gênero, como a igreja e a família.
Esta parte do livro, apesar de descrever mais detalhadamente o peso cultural da
família patriarcal e da religião como influência segregadora, não apresenta a escola
também como um meio, o que poderia levar a um aprendizado mais reflexivo por
parte dos estudantes sobre a Educação. Ele apenas cita a escola no seguinte
trecho, ao apresentar Parsons: “Talcott Parsons, sociólogo estadunidense,
demonstrou como a divisão de papéis sociais entre homens e mulheres é
reproduzida nas várias instâncias da socialização (família, escola e grupos de
pares) responsáveis por garantir a ordem e a coesão social” (SILVA, 2013:349).
Apesar de não aprofundar a questão da
escola como reprodutora da segregação e desigualdade de gênero, o livro é uma
ferramenta que possibilita entrar nas discussões de gênero com um aporte
teórico e sociológico inicial bem interessante, contribuindo para uma educação
mais contextualizada.
Sobre essa aprendizagem mais contextual,
uma das atividades propostas no livro pode dar pistas de como, após as
discussões teóricas, o estudante pode participar no seu processo de
aprendizagem a partir das suas práticas de trabalho. A atividade é a proposta
de uma pesquisa a ser feita pelos estudantes, com as seguintes considerações: “nos
filmes e programas de TV voltados para crianças, os personagens podem ser
analisados quanto à forma como desempenham seus papéis sociais de gênero, e
podem reafirmar ou contestar padrões de comportamento esperados de meninas e
meninos” (SILVA, 2013:363).
A partir daí, a proposta é que os
estudantes façam uma pesquisa sobre os desenhos animados e programas exibidos
na TV, além de filmes recentes e procurando nos principais personagens dos
sexos femininos e masculinos e nas suas características a expressão das suas
identidades de gênero. A ideia é que eles desenvolvam uma análise sobre suas
pesquisas, vendo se há prevalência de padrões, de que forma é feita alusão às
diferentes sexualidades etc.
Outra proposta é que os estudantes
entrevistem crianças do seu bairro ou escola, perguntando sobre seus desenhos e
filmes favoritos, seus personagens favoritos e suas principais características.
A partir daí os estudantes analisariam padrões, estereótipos e conflitos
envolvendo relações de gênero nestas produções, de forma a pensar nas
influências destas na construção das identidades de gênero e como as crianças
vão agenciando suas identidades nesse processo de socialização.
A partir desse exemplo do livro didático,
é possível pensar na contribuição deste para um aprendizado situado que,
segundo Lave e Wenger, permite aprender em ação, aprender fazendo (1991:02). O
aprendizado situado, além de ser “in situ”, permite funcionalidades do
contexto, da cultura na qual o aprendizado está inserido. Não se trata apenas
de se localizar no espaço e no tempo (LAVE & WENGER, 1991:03), mas de se
situar nas práticas, nos discursos, nas construções sociais da cultura
estudada.
Ao propor a atividade apresentada, o
aluno, após as discussões teóricas, poderá ir além do conhecimento abstrato e
fora do contexto e partir para uma proposta onde ele possa construir, a partir
de atividades e bases legítimas, a aprendizagem para além do espaço escolar
formal, chegando da periferia para o centro de uma “comunidade de prática” (Ibidem:
01).
É claro que a presente análise não abarca
a totalidade da aprendizagem situada dos autores, mas permite tratar de forma
inicial estudantes como elementos ativos na construção do conhecimento e na
participação das práticas de aprendizado.
“Esses estudos têm
em comum o fato de se tratarem de práticas que interessam profundamente aos
seus participantes, direta e indiretamente; envolvem os participantes que se
movem entre contextos de sua vida cotidiana, e isso é importante para
compreender como a mudança na participação acontece. E a própria ideia de
“aprender na prática” implica a existência de mudanças, e com ela a
possibilidade de contribuir para compreender historicamente a mudança na vida
social” (LAVE, 2015:43-44).
Blandine Bril afirma que, quando as pessoas
aprendem a perceber e utilizar possibilidades de ação, reveladas pelo contexto,
ou seja, pelo ambiente (“affordances”),
a aprendizagem ocorre de maneira mais fácil (2002).
O livro didático apresentado e parte de
seu conteúdo e de suas propostas contribuem para, a partir das affordances reveladas, possibilitar
aprendizados mais próximos da realidade do estudante e das suas práticas de
construção do conhecimento, além de fazê-los perceber que o que eles aprendem é
“também corporificado e situado” (LAVE, 2015:40), fruto do contexto e da
cultura na qual ele ocorre.
A proposta de atividade com entrevista e
depois a apresentação dos resultados da pesquisa para a turma também mostra a interação
social como um componente crítico desse aprendizado. A forma de deixar
estudantes, através da pesquisa, chegarem aos seus próprios resultados, permite
um aprendizado que não é intencional ou deliberadamente formatado (LAVE & WENGER,
1991).
Por fim, seria mais eficaz na
contextualização dos processos de aprendizagem apresentar a escola de maneira
reflexiva no debate, em um aporte histórico e atual das práticas e discursos
reproduzidos no espaço escolar que perpetuam a dominação simbólica e a segregação
ligada ao gênero e como influência nas práticas de todos.
A partir do exemplo deste livro didático e
de parte de seu conteúdo, é possível pensar nas contribuições que esse material
pode levar para instrumentalizar uma educação mais contextual e situada, e no
combate à segregação na escola. Por sua vez, a aprendizagem tomada dessa
maneira permite mais elementos para os agenciamentos dos estudantes, sobretudo
os que se identificam com subjetividades consideradas fora do padrão ou da
normalidade.
Torna-se de extrema relevância atual
propor processos de ensino que permitam ao estudante pensar no contexto da sua
aprendizagem e ser ativo nesse processo educacional, partindo para uma
“integração cultural” que não se atenha à realidade daquela escolarização evidenciada
por Pierre Bourdieu, a de “transmissão hereditária do poder e dos privilégios”
(1974: 296) e das desigualdades, mas que permita aos envolvidos no processo
aprenderem com a experiência do outro, num aprendizado marcado pela criticidade
e pelos agenciamentos.
Portanto, pensar nas questões de gênero
inserindo-as no contexto das aulas e atividades escolares, seja a partir dos
diálogos travados e do uso de ferramentas típicas do espaço escolar, como o
livro didático, permite inserir alunas e alunos no debate e na aprendizagem
para além das naturalizações e reproduções, permitindo também aos estudantes
(sobretudo mulheres e LGBTQI+) que se insiram mais nos processos de escolarização.
* Fonte: Federação dos Professores do Estado de São Paulo. Disponível em http://fepesp.org.br/noticia/diversidade-de-genero-e-orientacao-sexual-e-assunto-de-escola/ (acesso em 14 abr 2022).
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Reprodução cultural. Reprodução social. In:
MICELI, Sergio org. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BRIL,
Blandine. Apprentissage et contexte. Intellectica, v. 35, n. 2, p. 251-268, 2002.
LAVE, Jean.
Aprendizado como/na prática. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 37-47, jul./dez.
2015
LAVE, Jean
& WENGER, Etienne. Situated learning: Legitimate peripheral
participation. Cambridge
university press, 1991.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias
contemporâneas. Pro-Posições,
Campinas, v. 19, n. 2, p. 56, 2008.
SILVA, Afrânio et al. Sociologia
em movimento. 1.ed. São Paulo: Moderna, 2013.
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