A pandemia ocasionada a partir da infecção
do novo Corona Vírus em todo o mundo vem sendo tratada pelo Escritório das
Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (United Nations Office for
Disaster Risk Reduction – UNDRR) como um evento relacionado a desastres e à
redução de riscos, a partir de suas inúmeras notícias e ações divulgadas em seu
site [1]. É comum ver publicações e relatórios produzidos pelo
escritório sobre respostas a desastres e a situações de risco, em diversos países,
envolvendo o período deste último ano como o “contexto da Covid-19” e a
pandemia como a “crise da Covid-19” [2].
Cientistas sociais da área de desastres e
catástrofes, como Samantha Montano e Amanda Savitt [3], abordam a necessidade
de tratar a pandemia da Covid-19 de forma mais direta e categorizada nos
estudos sobre desastres. Tomando como base a conceituação de desastres de
Quarantelli e Perry (2005) e considerando uma abordagem que diferencia
teoricamente emergências, desastres e catástrofes, as especialistas em eventos
de riscos defendem a abordagem da atual pandemia da Covid-19 enquanto uma
catástrofe, pois seus efeitos e necessidades são superiores aos dos desastres,
além de abrangerem geograficamente todo o mundo, criando impactos generalizados
(MONTANO; SAVITT, 2020).
Ao mesmo tempo que possui relação ampla
com catástrofes, a pandemia da Covid-19 possui especificidades e difere da formulação
atual das catástrofes em certos aspectos, alguns dos quais:
* As mais de duas milhões de mortes
ocasionadas no evento ocorreram direta e majoritariamente a partir de doenças,
e não por conta de destruições por eventos climáticos como furacões e
inundações, ou por consequências de ações humanas como rompimentos de barragens
ou “vazamentos” industriais ou radioativos, por exemplo – o que leva ao
tratamento da pandemia por parte de alguns teóricos como “desastre biológico”
[3].
* As intercorrências, com um número enorme
de internações e da necessidade de cuidados e manobras específicas como
internação em unidades de tratamento intensivo, intubação e uso de oxigênio,
causaram pressão e colapso sobre sistemas de saúde de diversos países ao mesmo
tempo, em escala global.
* A pressão também se deu para as governanças,
as quais responderam com a imposição do isolamento social, como uma das medidas
de prevenção e administração da crise (considerando a pressão da área
científica e social para o isolamento, e a pressão dos mercados internos e do
mercado financeiro internacional contrária a essas medidas, sob a ameaça de
recessão econômica e desemprego).
* Além
disso, diferente das catástrofes, que são relativamente curtas em duração –
considerando, é claro, que em determinados eventos seus efeitos sociais e econômicos
persistem longamente para os grupos mais vulneráveis – a pandemia é um evento
que já possui duração longa e promete ainda persistir por mais meses ou anos.
Estas diferenças sugerem a necessidade da
reformulação nos estudos de desastres, pois como afirmam Montano e Savitt:
Os esforços para explorar onde a pandemia
se encaixa em nossa definição tradicional de eventos de risco é de particular
importância agora, pois a resposta à pandemia Covid-19 está em andamento. Esta
ocorrência está prestes a gerar uma nova onda de pesquisas sobre desastres e
uma melhor compreensão da localização da pandemia pode aumentar o valor de suas
descobertas. Além disso, definir apropriadamente a pandemia pode melhorar a
eficácia da resposta e da recuperação, potencialmente salvando vidas e
protegendo as comunidades (MONTANO; SAVITT, 2020. Tradução minha).
Um dos pontos em comum que relacionam a
pandemia atual a um evento de risco se dá na sua complexificada origem. Muitos
desastres e catástrofes, envolvendo inundações e deslizamentos de terra, por
exemplo, apesar de decorrerem de eventos da natureza, possuem causas ligadas à construção histórica e social dos riscos e à ação humana, a qual se torna uma
força sobre a Terra num período chamado Antropoceno [4].
A pandemia, apesar de existir a partir da
contaminação de um patógeno natural, o vírus Sars-CoV-2, tem suas causas também
relacionadas a fatores historicamente construídos – interligados a padrões socioculturais,
políticos e econômicos [5] - que foram facilitando, tanto a transmissão do
vírus entre seres humanos quanto a descontrolada vulnerabilidade no combate às
mortes e às internações. Essa relação só reforça que este tipo de ocorrência
histórica, como os desastres e as catástrofes, merece uma atenção que
ultrapasse a questão da natureza e/ou sanitária, além de um intenso
investimento em pesquisas de gestão de riscos, de resposta às emergências e de
prevenção, abarcando diversas áreas acadêmicas, incorporando aos esforços em
andamento, relacionados ao combate ao vírus e sua transmissão.
Portanto, o momento da pandemia pede que cientistas
sociais da área de desastres passem a formular novos estudos sobre a pandemia
da Covid-19 relacionada a eventos de riscos (desastres e catástrofes), de forma
a pontuarem ações das devidas áreas governamentais, somando às pautas
econômicas e de saúde já existentes, aumentando as respostas desenvolvidas nas
políticas públicas e contribuindo para uma saída mais eficaz e rápida da crise
e sua repercussão catastrófica.
[*] Homem passa por
grafite sobre Covid-19 no Rio de Janeiro 07/10/2020 REUTERS/Ricardo Moraes.
Foto tirada de matéria escrita por Gabriel Araujo “Brasil registra 271 novos
óbitos por Covid-19 e total vai a 154.176”, da Reuters, disponível em https://www.reuters.com/article/saude-coronavirus-19out-idLTAKBN2742TW
(acesso em 04/04/2021).
[1] Disponivel em https://www.undrr.org/hazard/epidemic-pandemic
(acesso em 04/04/2021).
[2] Como é possível ver
em publicações como “The Americas & the Caribbean: COVID-19 crisis is an
opportunity for cities resilience”, disponível em https://www.undrr.org/news/americas-caribbean-covid-19-crisis-opportunity-cities-resilience;
“Action Brief: Gender and Disaster Risk Reduction and Response in the Context
of COVID-19: The Asia-Pacific Region”, disponível em https://www.undrr.org/publication/action-brief-gender-and-disaster-risk-reduction-and-response-context-covid-19-asia;
“Review of COVID-19 Disaster Risk Governance in Asia-Pacific: Towards
Multi-Hazard and Multi-Sectoral Disaster Risk Reduction”, disponível em https://www.undrr.org/publication/review-covid-19-disaster-risk-governance-asia-pacific-towards-multi-hazard-and-multi;
ou “Tsunami Evacuation during COVID-19: A Guide for School Administrators”,
disponível em https://www.undrr.org/publication/tsunami-evacuation-during-covid-19-guide-school-administrators
(acessos em 04/04/2021).
[3] Ouvir no podcast “A
pandemia é um desastre”, da Universidade Federal de Pernambuco, disponível em https://sites.ufpe.br/rpf/2020/06/19/a-pandemia-e-um-desastre/
(acesso em 04/04/2021) ou ver em “A natureza jurídica da Pandemia Covid-19 como
um desastre biológico: um ponto de partida necessário para o Direito”, disponível
em https://www.thomsonreuters.com.br/content/dam/openweb/documents/pdf/Brazil/revistas-especializadas/rt-1017-a-natureza-juridica-da-pandemia-covid-19-2.pdf
(acesso em 04/04/2021).
[4] Teóricos como Bruno
Latour desenvolveram teorias sobre o conceito, que seria a nova época (ceno) da
Terra sob o domínio do humano (anthropos).
[5] Pode ser apontado
como este tipo de padrão, por exemplo, a criação de animais e a produção
alimentícia industrial ou como outro fator a crise climática. Para saber mais,
ver “A dimensão ecológica da pandemia”, disponível em http://www.ihu.unisinos.br/597677-a-dimensao-ecologica-das-pandemias
(acesso em 04/04/2021).
Bibliografia:
LATOUR, Bruno. Para
distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, São
Paulo, USP, 2014, v. 57 n 1.
MONTANO, S.; SAVITT, A.
Not All Disasters Are Disasters: Pandemic Categorization and Its Consequences.
Essay “Covid-19 and the Social Sciences”. Items - Insights from the Social
Sciences. September 10, 2020. Disponível em https://items.ssrc.org/covid-19-and-the-social-sciences/disaster-studies/not-all-disasters-are-disasters-pandemic-categorization-and-its-consequences/
(acesso em 04/04/2021).
PERRY, R. W.;
QUARANTELLI, E. L. What is a disasters? New answers to old question.
Bloomington, IN, USA: Xlibris Corporation, 2005.
QUARANTELLI, E. L.
Emergencies, Disasters and Catastrophes Are Different Phenomena. Delaware
Disaster Research Center, University of Delaware, Newark, DE, 2000.
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