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quarta-feira, 7 de abril de 2021

Covid-19 e as Ciências (Sociais) dos Desastres

 

A pandemia ocasionada a partir da infecção do novo Corona Vírus em todo o mundo vem sendo tratada pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (United Nations Office for Disaster Risk Reduction – UNDRR) como um evento relacionado a desastres e à redução de riscos, a partir de suas inúmeras notícias e ações divulgadas em seu site [1]. É comum ver publicações e relatórios produzidos pelo escritório sobre respostas a desastres e a situações de risco, em diversos países, envolvendo o período deste último ano como o “contexto da Covid-19” e a pandemia como a “crise da Covid-19” [2].

Cientistas sociais da área de desastres e catástrofes, como Samantha Montano e Amanda Savitt [3], abordam a necessidade de tratar a pandemia da Covid-19 de forma mais direta e categorizada nos estudos sobre desastres. Tomando como base a conceituação de desastres de Quarantelli e Perry (2005) e considerando uma abordagem que diferencia teoricamente emergências, desastres e catástrofes, as especialistas em eventos de riscos defendem a abordagem da atual pandemia da Covid-19 enquanto uma catástrofe, pois seus efeitos e necessidades são superiores aos dos desastres, além de abrangerem geograficamente todo o mundo, criando impactos generalizados (MONTANO; SAVITT, 2020).

Ao mesmo tempo que possui relação ampla com catástrofes, a pandemia da Covid-19 possui especificidades e difere da formulação atual das catástrofes em certos aspectos, alguns dos quais:

* As mais de duas milhões de mortes ocasionadas no evento ocorreram direta e majoritariamente a partir de doenças, e não por conta de destruições por eventos climáticos como furacões e inundações, ou por consequências de ações humanas como rompimentos de barragens ou “vazamentos” industriais ou radioativos, por exemplo – o que leva ao tratamento da pandemia por parte de alguns teóricos como “desastre biológico” [3].

* As intercorrências, com um número enorme de internações e da necessidade de cuidados e manobras específicas como internação em unidades de tratamento intensivo, intubação e uso de oxigênio, causaram pressão e colapso sobre sistemas de saúde de diversos países ao mesmo tempo, em escala global.

* A pressão também se deu para as governanças, as quais responderam com a imposição do isolamento social, como uma das medidas de prevenção e administração da crise (considerando a pressão da área científica e social para o isolamento, e a pressão dos mercados internos e do mercado financeiro internacional contrária a essas medidas, sob a ameaça de recessão econômica e desemprego).

 * Além disso, diferente das catástrofes, que são relativamente curtas em duração – considerando, é claro, que em determinados eventos seus efeitos sociais e econômicos persistem longamente para os grupos mais vulneráveis – a pandemia é um evento que já possui duração longa e promete ainda persistir por mais meses ou anos.

Estas diferenças sugerem a necessidade da reformulação nos estudos de desastres, pois como afirmam Montano e Savitt:

 

Os esforços para explorar onde a pandemia se encaixa em nossa definição tradicional de eventos de risco é de particular importância agora, pois a resposta à pandemia Covid-19 está em andamento. Esta ocorrência está prestes a gerar uma nova onda de pesquisas sobre desastres e uma melhor compreensão da localização da pandemia pode aumentar o valor de suas descobertas. Além disso, definir apropriadamente a pandemia pode melhorar a eficácia da resposta e da recuperação, potencialmente salvando vidas e protegendo as comunidades (MONTANO; SAVITT, 2020. Tradução minha).

 

Um dos pontos em comum que relacionam a pandemia atual a um evento de risco se dá na sua complexificada origem. Muitos desastres e catástrofes, envolvendo inundações e deslizamentos de terra, por exemplo, apesar de decorrerem de eventos da natureza, possuem causas ligadas à construção histórica e social dos riscos e à ação humana, a qual se torna uma força sobre a Terra num período chamado Antropoceno [4].

A pandemia, apesar de existir a partir da contaminação de um patógeno natural, o vírus Sars-CoV-2, tem suas causas também relacionadas a fatores historicamente construídos – interligados a padrões socioculturais, políticos e econômicos [5] - que foram facilitando, tanto a transmissão do vírus entre seres humanos quanto a descontrolada vulnerabilidade no combate às mortes e às internações. Essa relação só reforça que este tipo de ocorrência histórica, como os desastres e as catástrofes, merece uma atenção que ultrapasse a questão da natureza e/ou sanitária, além de um intenso investimento em pesquisas de gestão de riscos, de resposta às emergências e de prevenção, abarcando diversas áreas acadêmicas, incorporando aos esforços em andamento, relacionados ao combate ao vírus e sua transmissão.

Portanto, o momento da pandemia pede que cientistas sociais da área de desastres passem a formular novos estudos sobre a pandemia da Covid-19 relacionada a eventos de riscos (desastres e catástrofes), de forma a pontuarem ações das devidas áreas governamentais, somando às pautas econômicas e de saúde já existentes, aumentando as respostas desenvolvidas nas políticas públicas e contribuindo para uma saída mais eficaz e rápida da crise e sua repercussão catastrófica.

[*] Homem passa por grafite sobre Covid-19 no Rio de Janeiro 07/10/2020 REUTERS/Ricardo Moraes. Foto tirada de matéria escrita por Gabriel Araujo “Brasil registra 271 novos óbitos por Covid-19 e total vai a 154.176”, da Reuters, disponível em https://www.reuters.com/article/saude-coronavirus-19out-idLTAKBN2742TW (acesso em 04/04/2021).

[1] Disponivel em https://www.undrr.org/hazard/epidemic-pandemic (acesso em 04/04/2021).

[2] Como é possível ver em publicações como “The Americas & the Caribbean: COVID-19 crisis is an opportunity for cities resilience”, disponível em https://www.undrr.org/news/americas-caribbean-covid-19-crisis-opportunity-cities-resilience; “Action Brief: Gender and Disaster Risk Reduction and Response in the Context of COVID-19: The Asia-Pacific Region”, disponível em https://www.undrr.org/publication/action-brief-gender-and-disaster-risk-reduction-and-response-context-covid-19-asia; “Review of COVID-19 Disaster Risk Governance in Asia-Pacific: Towards Multi-Hazard and Multi-Sectoral Disaster Risk Reduction”, disponível em https://www.undrr.org/publication/review-covid-19-disaster-risk-governance-asia-pacific-towards-multi-hazard-and-multi; ou “Tsunami Evacuation during COVID-19: A Guide for School Administrators”, disponível em https://www.undrr.org/publication/tsunami-evacuation-during-covid-19-guide-school-administrators (acessos em 04/04/2021).

[3] Ouvir no podcast “A pandemia é um desastre”, da Universidade Federal de Pernambuco, disponível em https://sites.ufpe.br/rpf/2020/06/19/a-pandemia-e-um-desastre/ (acesso em 04/04/2021) ou ver em “A natureza jurídica da Pandemia Covid-19 como um desastre biológico: um ponto de partida necessário para o Direito”, disponível em https://www.thomsonreuters.com.br/content/dam/openweb/documents/pdf/Brazil/revistas-especializadas/rt-1017-a-natureza-juridica-da-pandemia-covid-19-2.pdf (acesso em 04/04/2021).

[4] Teóricos como Bruno Latour desenvolveram teorias sobre o conceito, que seria a nova época (ceno) da Terra sob o domínio do humano (anthropos).

[5] Pode ser apontado como este tipo de padrão, por exemplo, a criação de animais e a produção alimentícia industrial ou como outro fator a crise climática. Para saber mais, ver “A dimensão ecológica da pandemia”, disponível em http://www.ihu.unisinos.br/597677-a-dimensao-ecologica-das-pandemias (acesso em 04/04/2021).

Bibliografia:

LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2014, v. 57 n 1.

MONTANO, S.; SAVITT, A. Not All Disasters Are Disasters: Pandemic Categorization and Its Consequences. Essay “Covid-19 and the Social Sciences”. Items - Insights from the Social Sciences. September 10, 2020. Disponível em https://items.ssrc.org/covid-19-and-the-social-sciences/disaster-studies/not-all-disasters-are-disasters-pandemic-categorization-and-its-consequences/ (acesso em 04/04/2021).

PERRY, R. W.; QUARANTELLI, E. L. What is a disasters? New answers to old question. Bloomington, IN, USA: Xlibris Corporation, 2005.

QUARANTELLI, E. L. Emergencies, Disasters and Catastrophes Are Different Phenomena. Delaware Disaster Research Center, University of Delaware, Newark, DE, 2000.

 

 


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