Arquivo do blog

sábado, 21 de novembro de 2020

Deslocados e destituídos da natureza

Cabo Domingo


Como argumentado no texto anterior, pensamos que as múltiplas crises que estamos vivendo no contexto da pandemia de COVID-19 são, primeiramente, consequências da racionalidade que o homem burguês estabelece com a natureza a partir da modernidade. Segundo essa racionalidade o controle total da natureza é condição sine qua non para o progresso e se encontra intimamente vinculada com o discurso científico.

Dita racionalidade e uma visão positivista da ciência são dois dos fundamentos da mentalidade burguesa e, também, pilares do modo de produção capitalista. A ideia desse texto é fazer alguns apontamentos para uma genealogia dessa racionalidade e demonstrar que é a partir dela que se constituem algumas dificuldades para pensar a pandemia. Em síntese: a “colonialidade da natureza” e o discurso científico que a sustenta impossibilitam ver o que podemos chamar de dimensão primeira da pandemia: sua alta plausibilidade. Por quê nos quedamos boquiabertos com o que estamos vivendo agora? Foi uma das perguntas que nos fizemos no texto anterior. Qualquer resposta a essa pergunta deveria contemplar, pelo menos, três dimensões do imaginário social: 1. A de que o homem é superior ao vírus (porque é superior à natureza) e tem ao seu lado a ciência: logo, um vírus mortal é possível, mas pouco provável, 2. A de que tal vírus mortal pode causar danos em grande escala: é possível, mas pouco provável, afinal sempre aparece um remédio, uma vacina…. 3. Aquela em que o Estado, do tipo mais ou menos “bem estar”, ou seja, algo responsável, com um corpo de técnicos comprometidos com a causa pública e arquirrival do neoliberalismo aparecerá: é possível, mas não provável.

A maioria das reflexões elaboradas desde qualquer campo do pensamento crítico estabelece algum tipo de causalidade entre o colapso ambiental e a pandemia, entretanto essas causalidades ainda estão sendo pensadas a partir de uma concepção burguesa de mundo, na qual a relação entre homem e natureza se dá a partir de uma descontinuidade entre ambos. Na qual a distinção entre humanos e não humanos são de natureza e não de grau.

Como demonstra Romero (2001) na mentalidade cristã feudal não é possível observar uma descontinuidade entre homem e “natureza”, o homem está imerso na natureza e não a reconhece como algo exterior a ele. Ambos são criações divinas e estão sujeitos aos desejos, mistérios e leis de Deus. As causalidades são de ordem sobrenatural e por tanto não são cognoscíveis. Para Romero (o. cit.) a conformação da mentalidade burguesa marca uma ruptura com o pensamento cristão feudal estabelecendo uma nova forma de compreender a “si” e ao mundo, observa-se uma mudança nas imagens do homem, da natureza, da sociedade, da política, da economia e da história.

O processo de secularização (outro tema…) é entendido como fundamental na conformação dessa nova mentalidade pois rompe a identidade entre real e irreal (sobrenatural), típica do pensamento medieval. Essa ruptura é fruto do estabelecimento de uma “relação prática” com uma realidade operativa. Em outras palavras, a atitude burguesa se preocupa com mecanismos práticos para relacionar-se com o mundo imediato, com problemas de ordem cotidiana. Para a burguesia o que se torna cada vez mais relevante é saber quais ações resultam em determinadas reações e criar mecanismos para solucionar problemas relativos à suas expectativas. Ao suprimir a dimensão sobrenatural a “realidade” se torna cognoscível. 

O homem passa a ser concebido como sujeito capaz de conhecer e passível de ser conhecido. A palavra “natureza” começa a ser grafada com maiúscula representando sua condição de “ente” com existência própria, essa passa a ser “objeto de estudo” (para os fisiocratas, por exemplo) e de contemplação (como se pode observar na literatura, principalmente a da época da expansão colonialista). O domínio sobre a natureza se intensifica: lembremos da dimensão que Polanyi dá à vinculação do homem com a terra e como o “moinho satânico” a triturou.

Gudynas afirma que existe uma ideologia do progresso que engloba diferentes paradigmas sobre o desenvolvimento e, consequentemente, várias ideias sobre a natureza e seu papel nas estratégias de desenvolvimento. Tal afirmação de Gudynas (op. cit) pode ser perfeitamente observada na conquista da América, desde a chegada dos conquistadores ao “novo continente” a relação orgânica entre o domínio da natureza e a ideia de “progresso” mudou várias vezes de forma, mas manteve a natureza como uma cesta de recursos (Gudynas, op. cit. 10). A famosa frase de Eduardo Galeano "O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra", ainda que careça de algumas precisões, é ilustrativa do que estamos apontando, seja sob a ótica mercantilista ou sob a ótica liberal o que vemos è a conformação de uma colonialidade da natureza sem a qual não poderia haver desenvolvimento do modo de produção capitalista. A natureza colonial de dito modo de produção já é conhecida por lo menos desde Rosa Luxemburgo. 

Quando começamos a ouvir sobre os casos em China não nos preocupamos, era possível, mas pouco provável, quando na verdade deveria ser: é possível e altamente provável. As epidemias e pandemias seguirão sendo cada vez mais frequentes e possivelmente mais letais. 

Uma das grandes dificuldades na contenção e controle do coronavírus vieram das dificuldades e demoras em implementar o lockdown, nem falar das oposições. A isso se somam as dificuldades em transformar todas as “práticas higiênicas sobre o corpo” em uma rotina 24/7 de “práticas de desinfecção”, que como tais exigem artefatos inacessíveis ou escassos para grande parte da população mundial, como água e sabão.

O vírus foi destituído da natureza em seu nascimento, ele é filho da ciência, não foi nomeado por qualquer homem, ou qualquer mulher. Pertence ao mundo do científico, da saúde, da técnica, dos doutores e suas vacinas. Sua origem na zoonosis, o contágio pelo ar, o habitar em nossos corpos somados às fotos da “recuperação da natureza” (ocasionada pelo lockdown) que invadiram as redes nos mostra que outra vez vemos a fronteira entre homem e natureza mudando, ao mesmo tempo em que permanece. O vírus continua fora da natureza, porque foi pensado em chave de normalidade e normalização, por isso se insiste tanto em uma “nova normalidade”. A busca por essa “nova normalidade” não foi exatamente marcada por uma preocupação pela sustentabilidade de artefatos médicos e sanitários, dos barbijos produzidos em países que não cumprem leis ambientais... Mas afinal, que tem tempo para pensar no “meio ambiente”? Em primeiro lugar o mais importante: diferenças de grau de natureza.


Bibliografia

Descola, Philippe. Alèm da Natureza e cultura. in Tessituras, Pelotas, v. 3, n. 1, p. 7-33, 2015

Romero, José Luis. Estudio de la mentalidad burguesa, Breviarios, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2001. 

Gudynas, Eduardo. Ecologia, Economia y Etica del Desarrollo Sostenible - CLAE, Montevideo, 2004




Nenhum comentário:

Postar um comentário