Como argumentado no texto anterior, pensamos que as múltiplas
crises que estamos vivendo no contexto da pandemia de COVID-19 são,
primeiramente, consequências da racionalidade que o homem burguês estabelece
com a natureza a partir da modernidade. Segundo essa racionalidade o controle
total da natureza é condição sine qua non
para o progresso e se encontra intimamente vinculada com o discurso científico.
Dita racionalidade e uma visão positivista da ciência são dois dos
fundamentos da mentalidade burguesa e, também, pilares do modo de produção
capitalista. A ideia desse texto é fazer alguns apontamentos para uma
genealogia dessa racionalidade e demonstrar que é a partir dela que se
constituem algumas dificuldades para pensar a pandemia. Em síntese: a “colonialidade
da natureza” e o discurso científico que a sustenta impossibilitam ver o que
podemos chamar de dimensão primeira da pandemia: sua alta plausibilidade. Por
quê nos quedamos boquiabertos com o que estamos vivendo agora? Foi uma das
perguntas que nos fizemos no texto anterior. Qualquer resposta a essa pergunta
deveria contemplar, pelo menos, três dimensões do imaginário social: 1. A de
que o homem é superior ao vírus (porque é superior à natureza) e tem ao seu
lado a ciência: logo, um vírus mortal é possível, mas pouco provável, 2. A de
que tal vírus mortal pode causar danos em grande escala: é possível, mas pouco
provável, afinal sempre aparece um remédio, uma vacina…. 3. Aquela em que o
Estado, do tipo mais ou menos “bem estar”, ou seja, algo responsável, com um
corpo de técnicos comprometidos com a causa pública e arquirrival do
neoliberalismo aparecerá: é possível, mas não provável.
A maioria das reflexões elaboradas desde qualquer campo do
pensamento crítico estabelece algum tipo de causalidade entre o colapso
ambiental e a pandemia, entretanto essas causalidades ainda estão sendo
pensadas a partir de uma concepção burguesa de mundo, na qual a relação entre
homem e natureza se dá a partir de uma descontinuidade entre ambos. Na qual a
distinção entre humanos e não humanos são de natureza e não de grau.
Como demonstra Romero (2001) na mentalidade cristã feudal não é
possível observar uma descontinuidade entre homem e “natureza”, o homem está
imerso na natureza e não a reconhece como algo exterior a ele. Ambos são
criações divinas e estão sujeitos aos desejos, mistérios e leis de Deus. As
causalidades são de ordem sobrenatural e por tanto não são cognoscíveis. Para
Romero (o. cit.) a conformação da mentalidade burguesa marca uma ruptura com o
pensamento cristão feudal estabelecendo uma nova forma de compreender a “si” e
ao mundo, observa-se uma mudança nas imagens do homem, da natureza, da
sociedade, da política, da economia e da história.
O processo de secularização (outro tema…) é entendido como fundamental
na conformação dessa nova mentalidade pois rompe a identidade entre real e
irreal (sobrenatural), típica do pensamento medieval. Essa ruptura é fruto do
estabelecimento de uma “relação prática” com uma realidade operativa. Em outras
palavras, a atitude burguesa se preocupa com mecanismos práticos para
relacionar-se com o mundo imediato, com problemas de ordem cotidiana. Para a
burguesia o que se torna cada vez mais relevante é saber quais ações resultam
em determinadas reações e criar mecanismos para solucionar problemas relativos
à suas expectativas. Ao suprimir a dimensão sobrenatural a “realidade” se torna
cognoscível.
O homem passa a ser concebido como sujeito capaz de conhecer e
passível de ser conhecido. A palavra “natureza” começa a ser grafada com maiúscula
representando sua condição de “ente” com existência própria, essa passa a ser
“objeto de estudo” (para os fisiocratas, por exemplo) e de contemplação (como
se pode observar na literatura, principalmente a da época da expansão
colonialista). O domínio sobre a natureza se intensifica: lembremos da dimensão
que Polanyi dá à vinculação do homem com a terra e como o “moinho satânico” a
triturou.
Gudynas afirma que existe uma ideologia do progresso que engloba
diferentes paradigmas sobre o desenvolvimento e, consequentemente, várias
ideias sobre a natureza e seu papel nas estratégias de desenvolvimento. Tal
afirmação de Gudynas (op. cit) pode ser perfeitamente observada na conquista da
América, desde a chegada dos conquistadores ao “novo continente” a relação
orgânica entre o domínio da natureza e a ideia de “progresso” mudou várias
vezes de forma, mas manteve a natureza como uma cesta de recursos (Gudynas, op.
cit. 10). A famosa frase de Eduardo Galeano "O ouro brasileiro deixou
buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra", ainda
que careça de algumas precisões, é ilustrativa do que estamos apontando, seja
sob a ótica mercantilista ou sob a ótica liberal o que vemos è a conformação de
uma colonialidade da natureza sem a qual não poderia haver desenvolvimento do
modo de produção capitalista. A natureza colonial de dito modo de produção já é
conhecida por lo menos desde Rosa Luxemburgo.
Quando começamos a ouvir sobre os casos em China não nos
preocupamos, era possível, mas pouco provável, quando na verdade deveria ser: é
possível e altamente provável. As epidemias e pandemias seguirão sendo cada vez
mais frequentes e possivelmente mais letais.
Uma das grandes dificuldades na contenção e controle do
coronavírus vieram das dificuldades e demoras em implementar o lockdown, nem
falar das oposições. A isso se somam as dificuldades em transformar todas as
“práticas higiênicas sobre o corpo” em uma rotina 24/7 de “práticas de
desinfecção”, que como tais exigem artefatos inacessíveis ou escassos para
grande parte da população mundial, como água e sabão.
O vírus foi destituído da natureza em seu nascimento, ele é filho
da ciência, não foi nomeado por qualquer homem, ou qualquer mulher. Pertence ao
mundo do científico, da saúde, da técnica, dos doutores e suas vacinas. Sua
origem na zoonosis, o contágio pelo ar, o habitar em nossos corpos somados às
fotos da “recuperação da natureza” (ocasionada pelo lockdown) que invadiram as
redes nos mostra que outra vez vemos a fronteira entre homem e natureza
mudando, ao mesmo tempo em que permanece. O vírus continua fora da natureza,
porque foi pensado em chave de normalidade e normalização, por isso se insiste
tanto em uma “nova normalidade”. A busca por essa “nova normalidade” não foi
exatamente marcada por uma preocupação pela sustentabilidade de artefatos
médicos e sanitários, dos barbijos produzidos em países que não cumprem leis
ambientais... Mas afinal, que tem tempo para pensar no “meio ambiente”? Em
primeiro lugar o mais importante: diferenças de grau de natureza.
Bibliografia
Descola, Philippe. Alèm da Natureza e cultura. in Tessituras,
Pelotas, v. 3, n. 1, p. 7-33, 2015
Romero, José Luis. Estudio de la mentalidad burguesa,
Breviarios, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2001.
Gudynas, Eduardo. Ecologia, Economia y Etica del Desarrollo
Sostenible - CLAE, Montevideo, 2004
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