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terça-feira, 15 de novembro de 2022

O golpismo na agenda do bolsonarismo: como chegamos até aqui

 

                                                  Créditos da Foto: Sergio Lima/Poder 360

Escrito por Rafael Polari de Alverga Kritski[i]

 

Transcorridas duas semanas desde a vitória do ex-presidente Lula na eleição presidencial, chama atenção a resiliência de protestos que demandam uma intervenção militar perante o resultado do pleito. A crença em informações falsas e teorias conspiratórias, o ensejo autoritário, racismo aberto e utilização de recursos imagéticos que remetem ao nazismo são algumas de suas características estruturantes. Contudo, essas manifestações não devem surpreender: nos últimos anos, consolidou-se uma corrente de extrema-direita no Brasil, a qual tem como marco embrionário exatamente o golpe de Estado ocorrido em 2016. Isto é, combinam-se uma agenda política extremista à direita com demandas autoritárias e golpistas.

O segundo e interrompido mandato de Dilma Rousseff foi atravessado por grandes protestos – principalmente nas capitais estaduais e federal – que demandavam sua deposição. Sendo mais preciso, a oposição não reconheceu o resultado de 2014 e fez de tudo para inviabilizar a gestão: nos dias seguintes ao pleito, o PSDB, então presidido pelo candidato derrotado Aécio Neves, entrou com pedido de auditoria da votação, que se sustentava em denúncias de supostas fraudes expostas em redes sociais. Portanto, não há novidade nesse tipo de recurso e há uma continuidade entre o golpismo de 2014-2016 e o de 2022.

Considero que há uma linha de continuidade entre àquelas manifestações e as atuais, mesmo que marcada por tensões e contradições. Entre 2014 e 2016, os protestantes concentravam um perfil de eleitores de Aécio, brancos, idosos e com renda familiar acima de 10 salários mínimos. Sua pauta difusa se concentrava sob o eixo de destituição da presidenta, num gradiente que variava do apelo ao impeachment ou cassação da chapa até o pedido por intervenção militar ou estrangeira. Estes, mais violentos, eram minoritários no conjunto, mesmo que mais histriônicos. Ali, políticos da direita partidária e entidades federativas de classe financiavam e convocavam os protestos, que foram decisivos para a criação de um aparente clima de maioria favorável à derrubada de Dilma. Isto é, um polo da elite política forjada durante a Nova República insuflou um movimento radical à direita e antidemocrático quando este serviu aos seus propósitos.

Contudo, essa corrente de extrema-direita e autoritária não arrefeceu durante o governo Temer. Pelo contrário: seguindo uma tendência global de emergência de emergência da extrema-direita, seja pela radicalização das direitas tradicionais e/ou pela emergência de novos atores políticos anteriormente periféricos no debate público, houve um profundo rearranjo entre as elites políticas e a extrema-direita chegou ao poder a partir da eleição de Jair Bolsonaro. Sua figura, mitificada pelos seus apoiadores, amalgamou esse movimento em torno de si, gestando uma identidade coletiva para os participantes desses protestos. Não à toa, desde então, são comumente reunidos no vocábulo “bolsonarismo” – o que é um tema de debate.

De lá pra cá, os bolsonaristas se radicalizaram, sempre em sintonia com o intento autoritário – não concretizado, mas desejado – do presidente contra o poder judiciário, a imprensa e partidos e movimentos de esquerda. Os casos de violência política aberta aumentaram, além de um alinhamento evidente de parcelas da burocracia do Estado, sobretudo forças armadas, polícias estaduais e operadores do poder Judiciário a esse movimento. Isto é, o chamado bolsonarismo se alastrou e se solidificou na sociedade civil ao mesmo tempo em que se encrustou no Estado brasileiro em diversas esferas.

Além disso, esse movimento tem a capacidade de ampliar para além de si: mesmo com a piora nas condições de vida da maioria da população e uma gestão genocida da pandemia do coronavírus, Bolsonaro atingiu sólido resultado eleitoral, ficando apenas dois milhões de votos atrás de Lula. Contudo, duas questões têm de ser levadas em conta: a volatilidade de uma parcela do eleitorado que migrou para Jair desde o primeiro turno, considerando que haviam apenas duas candidaturas competitivas; e o uso da máquina pública para uma indústria de compra de votos. Afirmar que o orçamento da união foi todo girado para a tentativa de reeleição, sobretudo nas semanas que antecederam o segundo turno, não é ser superlativo.

Renova-se, então, uma pergunta que tem sido constante nos últimos anos: qual é o tamanho real do chamado bolsonarismo? Essa indagação talvez nunca encontre uma resposta definitiva, considerando a dificuldade de estabelecer os marcadores para um apoio genérico ao Bolsonaro como esse movimento. É necessário, então, estabelecer algumas características para sabermos o que desejamos encontrar. Considero o chamado bolsonarismo uma expressão do neofascismo contemporâneo, que, resumidamente, em minha concepção, se assenta num pressuposto de exclusão – não só política, mas violenta – de determinados agrupamentos sociais identificados como inimigos, sob marcadores ideológicos, de raça, gênero e classe. Por isso, o golpismo atual faz parte de seu repertório: afinal, não é o movimento que tem de se adequar ao sistema político e aos princípios da democracia liberal, mas, por sua natureza antipolítica e violenta, o ordenamento político é que teria de ser alterado para o reestabelecimento de uma hierarquia formal entre cidadãos. É disso que se trata.

Até aqui, as vigílias em frente aos quartéis ou símbolos militares parecem reunir esse movimento, sem angariar apoio no conjunto da sociedade. Creio que, de 2014 pra cá, esse movimento passou por uma depuração: as parcelas menos extremistas foram se distanciando – ou sendo distanciadas, considerando a paranoia presente no discurso delirante –, de modo que o grupo foi ficando cada vez mais coeso em torno da maior radicalidade, mesmo que ampliando socialmente para outras camadas da sociedade. Sua maior expressão nesses atos golpistas, que, vale destacar, estão longe de serem espontâneos, mas sim fruto de muito financiamento obscuro. Portanto, não parece ter tamanho e força para emplacar uma tentativa real de golpe de Estado.

Ainda assim, não é possível ignorar sua presença na cena política brasileira. Utilizando uma palavra que está na moda, o golpismo e o fascismo foram “normalizados”. Há uma complacência – ou mesmo colaboração – dos agentes de repressão em relação aos manifestantes, assim como se espraia em espaços como a imprensa comercial a necessidade de pacificação e unificação do país, isto é, esterilizando o conflito político e propondo uma nova transição pelo alto. Imprensa comercial, aliás, que em duas semanas já age novamente com virulência contra Lula e o PT.

Então, evidencia-se que o Brasil inicia um momento político marcado pela novidade, mas também pela conservação da marca destes últimos oito anos, de uma violenta extrema-direita que não desaparecerá apenas a partir da mudança de governo, mesmo se este obtiver ótimos resultados e aprovação. O chamado bolsonarismo não é um entulho removível, mas uma corrente política que só desaparecerá a partir da construção de uma outra hegemonia, combatendo seus aspectos ideológicos – e suas raízes profundas no traço escravocrata do Brasil –, buscando suas fontes de financiamento e sustentação institucional. Caso contrário, um golpe de Estado, que se fixou novamente como uma ideia em nossa vida política, mesmo que como um espectro, sempre estará à nossa porta.



[i] Professor substituto do Departamento de Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutorando e mestre em Ciência Política pela UFF (PPGCP-UFF). Contato: rafaelkritski@gmail.com

 


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