Escrito por Rafael Polari de Alverga Kritski[i]
Transcorridas
duas semanas desde a vitória do ex-presidente Lula na eleição presidencial,
chama atenção a resiliência de protestos que demandam uma intervenção militar
perante o resultado do pleito. A crença em informações falsas e teorias
conspiratórias, o ensejo autoritário, racismo aberto e utilização de recursos
imagéticos que remetem ao nazismo são algumas de suas características
estruturantes. Contudo, essas manifestações não devem surpreender: nos últimos
anos, consolidou-se uma corrente de extrema-direita no Brasil, a qual tem como
marco embrionário exatamente o golpe de Estado ocorrido em 2016. Isto é,
combinam-se uma agenda política extremista à direita com demandas autoritárias
e golpistas.
O segundo e
interrompido mandato de Dilma Rousseff foi atravessado por grandes protestos –
principalmente nas capitais estaduais e federal – que demandavam sua deposição.
Sendo mais preciso, a oposição não reconheceu o resultado de 2014 e fez de tudo
para inviabilizar a gestão: nos dias seguintes ao pleito, o PSDB, então
presidido pelo candidato derrotado Aécio Neves, entrou com pedido de auditoria
da votação, que se sustentava em denúncias de supostas fraudes expostas em
redes sociais. Portanto, não há novidade nesse tipo de recurso e há uma
continuidade entre o golpismo de 2014-2016 e o de 2022.
Considero que
há uma linha de continuidade entre àquelas manifestações e as atuais, mesmo que
marcada por tensões e contradições. Entre 2014 e 2016, os protestantes concentravam
um perfil de eleitores de Aécio, brancos, idosos e com renda familiar acima de
10 salários mínimos. Sua pauta difusa se concentrava sob o eixo de destituição
da presidenta, num gradiente que variava do apelo ao impeachment ou cassação da
chapa até o pedido por intervenção militar ou estrangeira. Estes, mais
violentos, eram minoritários no conjunto, mesmo que mais histriônicos. Ali,
políticos da direita partidária e entidades federativas de classe financiavam e
convocavam os protestos, que foram decisivos para a criação de um aparente
clima de maioria favorável à derrubada de Dilma. Isto é, um polo da elite
política forjada durante a Nova República insuflou um movimento radical à
direita e antidemocrático quando este serviu aos seus propósitos.
Contudo, essa
corrente de extrema-direita e autoritária não arrefeceu durante o governo
Temer. Pelo contrário: seguindo uma tendência global de emergência de
emergência da extrema-direita, seja pela radicalização das direitas
tradicionais e/ou pela emergência de novos atores políticos anteriormente
periféricos no debate público, houve um profundo rearranjo entre as elites
políticas e a extrema-direita chegou ao poder a partir da eleição de Jair
Bolsonaro. Sua figura, mitificada pelos seus apoiadores, amalgamou esse
movimento em torno de si, gestando uma identidade coletiva para os
participantes desses protestos. Não à toa, desde então, são comumente reunidos
no vocábulo “bolsonarismo” – o que é um tema de debate.
De lá pra cá,
os bolsonaristas se radicalizaram, sempre em sintonia com o intento autoritário
– não concretizado, mas desejado – do presidente contra o poder judiciário, a
imprensa e partidos e movimentos de esquerda. Os casos de violência política aberta
aumentaram, além de um alinhamento evidente de parcelas da burocracia do
Estado, sobretudo forças armadas, polícias estaduais e operadores do poder
Judiciário a esse movimento. Isto é, o chamado bolsonarismo se alastrou e se
solidificou na sociedade civil ao mesmo tempo em que se encrustou no Estado
brasileiro em diversas esferas.
Além disso,
esse movimento tem a capacidade de ampliar para além de si: mesmo com a piora
nas condições de vida da maioria da população e uma gestão genocida da pandemia
do coronavírus, Bolsonaro atingiu sólido resultado eleitoral, ficando apenas
dois milhões de votos atrás de Lula. Contudo, duas questões têm de ser levadas
em conta: a volatilidade de uma parcela do eleitorado que migrou para Jair
desde o primeiro turno, considerando que haviam apenas duas candidaturas
competitivas; e o uso da máquina pública para uma indústria de compra de votos.
Afirmar que o orçamento da união foi todo girado para a tentativa de reeleição,
sobretudo nas semanas que antecederam o segundo turno, não é ser superlativo.
Renova-se,
então, uma pergunta que tem sido constante nos últimos anos: qual é o tamanho
real do chamado bolsonarismo? Essa indagação talvez nunca encontre uma resposta
definitiva, considerando a dificuldade de estabelecer os marcadores para um
apoio genérico ao Bolsonaro como esse movimento. É necessário, então, estabelecer
algumas características para sabermos o que desejamos encontrar. Considero o
chamado bolsonarismo uma expressão do neofascismo contemporâneo, que, resumidamente,
em minha concepção, se assenta num pressuposto de exclusão – não só política,
mas violenta – de determinados agrupamentos sociais identificados como
inimigos, sob marcadores ideológicos, de raça, gênero e classe. Por isso, o
golpismo atual faz parte de seu repertório: afinal, não é o movimento que tem
de se adequar ao sistema político e aos princípios da democracia liberal, mas,
por sua natureza antipolítica e violenta, o ordenamento político é que teria de
ser alterado para o reestabelecimento de uma hierarquia formal entre cidadãos.
É disso que se trata.
Até aqui, as
vigílias em frente aos quartéis ou símbolos militares parecem reunir esse
movimento, sem angariar apoio no conjunto da sociedade. Creio que, de 2014 pra
cá, esse movimento passou por uma depuração: as parcelas menos extremistas
foram se distanciando – ou sendo distanciadas, considerando a paranoia presente
no discurso delirante –, de modo que o grupo foi ficando cada vez mais coeso em
torno da maior radicalidade, mesmo que ampliando socialmente para outras
camadas da sociedade. Sua maior expressão nesses atos golpistas, que, vale
destacar, estão longe de serem espontâneos, mas sim fruto de muito
financiamento obscuro. Portanto, não parece ter tamanho e força para emplacar
uma tentativa real de golpe de Estado.
Ainda assim,
não é possível ignorar sua presença na cena política brasileira. Utilizando uma
palavra que está na moda, o golpismo e o fascismo foram “normalizados”. Há uma
complacência – ou mesmo colaboração – dos agentes de repressão em relação aos
manifestantes, assim como se espraia em espaços como a imprensa comercial a
necessidade de pacificação e unificação do país, isto é, esterilizando o
conflito político e propondo uma nova transição pelo alto. Imprensa comercial,
aliás, que em duas semanas já age novamente com virulência contra Lula e o PT.
Então,
evidencia-se que o Brasil inicia um momento político marcado pela novidade, mas
também pela conservação da marca destes últimos oito anos, de uma violenta
extrema-direita que não desaparecerá apenas a partir da mudança de governo,
mesmo se este obtiver ótimos resultados e aprovação. O chamado bolsonarismo não
é um entulho removível, mas uma corrente política que só desaparecerá a partir
da construção de uma outra hegemonia, combatendo seus aspectos ideológicos – e
suas raízes profundas no traço escravocrata do Brasil –, buscando suas fontes
de financiamento e sustentação institucional. Caso contrário, um golpe de
Estado, que se fixou novamente como uma ideia em nossa vida política, mesmo que
como um espectro, sempre estará à nossa porta.
[i] Professor substituto do Departamento de
Ciências Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutorando
e mestre em Ciência Política pela UFF (PPGCP-UFF). Contato:
rafaelkritski@gmail.com
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