Bárbara Breder
Machado(UFF)[1]
Texto revisado
por: Flávia Mendes (UFF) e Dulcinéia
Medeiros (UDTF)
No momento em que
escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 50 mil mortos e
ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados.[2]
(...)
No momento em que
escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 62 mil mortos pelo COVID-19
e ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados[3]
(...)
No momento em que
escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 120 mil mortos pelo COVID-19
e ultrapassa a barreira de 3 milhões de infectados[4]. (...)
Este ensaio foi escrito
em três meses e, neste processo, a retificação dos dados objetivos do número de
mortos pela COVID-19 no Brasil não foi apenas um simples ato de atualização para referenciar o presente trabalho. É, em si
mesmo, um analisador. Pois, ainda que os números comprovem o aumento
substancial de produção de cadáveres neste átimo temporal, as praias do Rio de
Janeiro seguem batendo recorde de banhistas. Período, no qual deveríamos estar,
segundo normativas da OMS, em isolamento social. Porém, os bares e restaurantes
reabertos no Rio de Janeiro, estão lotados de clientes aglomerados que
dispensam máscaras e ignoram os protocolos sanitários. Cenário que se repete em
diversas outras cidades pelo Brasil.
Longe de ser falta de
informação ou acesso ao conhecimento, queremos defender aqui o argumento de que
a conduta destes indivíduos corrobora o encaminhamento genocida da política
brasileira. E marca o acirramento do que aqui pretendemos esboçar a partir da
senda foucaultiana como governamentalidade[5]
perversa.
Pareados como uníssono
nas afirmações cínicas: - “E daí?”/ “eu não sou coveiro” / “pessoas morrem”[6]/
“vou abrir o comércio, morra quem morrer”[7]
estas frases fazem reativar a análise Arendtiana sobre o julgamento de Eichman
em Jerusalém e traz à cena a noção da banalidade do mal, a qual Roudinesco,
retoma para pensar a partir de Freud a localização no psiquismo um universal da
diferença perversa em cada um.
Retomando as análises
de Zizek pretendemos dar algum contorno possível para a compreensão da lógica
cínica de operação que coloca em cena o discurso perverso, tal como Lacan o
concebe. Abrindo-nos a possibilidade de reler a afirmação freudiana de que a
neurose é o negativo da perversão. E que, por isso, o pior captura a todos nós,
na medida em que, trata-se de uma parte obscura de nós mesmos[8].
De algum lugar, opera em nós e orienta nossas condutas, para além da
racionalidade (a tempos destituída de seu lugar central da motivação humana). “os perversos são uma parte de nós mesmos,
uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular:
nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos” (Roudinesco,
2008, p.13)
Para iniciar a
articulação das chaves teóricas aqui postas, partiremos da célebre troca de
correspondência entre Freud e Einstein no período do fim da segunda grande
guerra. O físico recorria ao psicanalista para entender o motivo que levou a
civilização retornar ao nível da barbárie, e consultava sobre possíveis medidas
profiláticas para que não viéssemos mais enquanto sociedade a descer a estes
níveis. Convocação esta a que Freud responde que, na verdade, a civilização
nunca esteve em condição elevada e que nos habita o empuxo a destruição e a
agressividade.
Destaco aqui algumas passagens:
Questões que Einstein coloca a Freud:
“Este
é o problema: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra
(...) Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar
a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de
guerra, a serviço da ambição de poucos? Como esses mecanismos conseguem tão bem
despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem
suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de
si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em
estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo,
relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva.
Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos
considerando”. (30 de julho de 1932)
Resposta de Freud a
Einstein:
“Passo
agora a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa
surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela
guerra, e insere a suspeita, de que neles exige em atividade alguma coisa um
instinto de ódio e de destruição que coopera com os esforços dos mercadores da
guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na
existência de um pulsão dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos
ocupado realmente em estudar suas manifestações. (...) Gostaria, não obstante,
de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é
de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de
especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura
viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de
matéria inanimada (...) Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o
que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações
agressivas dos homens. (...) A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade
humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada
mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles
não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é
uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar
a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar
aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem
morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha” (setembro de 1932)
Se outrora, Freud, em
seu tempo recebera a “alcunha” de pessimista, para nossos, poderíamos
classificá-lo como realista. Pois sua obra soube pontuar aquilo que temos
tentado, sem sucesso tamponar, e de certo modo “esconder”, sobre o pretenso
racionalismo, celebrado pela perspectiva da rational choice. Não somos
motivados somente pela consciência, o aparelho psíquico não se reduz a razão. A
segunda tópica freudiana indica que grande parte da psique humana é
inconsciente. O ódio nos habita,
(também) nos forma e conduz nossas ações, localizado através do constructo
teórico denominado pulsão de morte. E é ela quem conduz os corpos bronzeados na
beira da praia, enquanto milhares de outros se fecham em covas. É ela quem
ilumina os rostos sorridentes, vívidos de uma euforia patológica nos bares,
enquanto um universo incontável de famílias choram seus mortos.
“a pulsão destruidora, dizia
Freud é a condição primordial de toda a sublimação, uma vez que é
característica do homem –se é que esta existe – não é senão a aliança do
próprio homem, da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização,
uma espécie de passagem da natureza à cultura. (Roudineco, 2008, p. 100)
Aqueles que rompem a quarentena por
escolha[9] e
circulam nas vias públicas não parecem apresentar qualquer indício de culpa,
dado que ali estão e publicizam através de posts
nas redes sociais os “rolês de quarentena”. Querem ver-se sendo vistos. Isto
faz parte do jogo da pulsão escópica, tal como o gozo exibicionista. Parecem
não temer ou se importar pela transgressão da lei, sem qualquer remorso
publicam suas fotos e denunciam, eles mesmos, seus atos transgressores.
Deliberadamente se transformam em vetores, disseminadores de vírus numa lógica
“homem-bomba” de flerte com a morte.
Fomentados pelo
discurso em empuxo ao pior, lançam-se em um jogo macabro muito similar ao de “roleta
russa”, a espera que a sorte ou azar o atinjam, arriscam-se e agudizam a
vulnerabilidade daqueles que estão em grupo de risco. O racismo aí se expõe
como intensidade, tal como o etarismo e o elitismo que insistem em legitimar
através de seus discursos e práticas como vidas nuas, corpos matáveis:
Trabalhador, negro, pobre, mulheres, moradores de periferia. E na esteira, os
trabalhadores da linha de frente do combate ao covid-19. E isto sem culpa ou
mínimo constrangimento.
O que nos indica que os
referenciais simbólicos da lei sofreram grave erosão, ruíram como areia (tal
como a da praia), diante de nossos olhos, não sendo mais capaz de estabelecer
efeito de freio ao gozo. Elemento necessário para a vida em sociedade. A transgressão tem via aberta, à luz do dia,
sem pudor ou sanções. Cenário que se abre pela gestação da pandemia realizada pelo viés genocida.
Enquanto os demais
países realizam a gestão da crise, aqui testemunhamos atônitos e inibidos, a gestação da crise e sua transformação em
verdadeira arma biológica. E a correlata produção do terror, terreno instável,
insegurança, medo e vulnerabilidade que produzem o cenário profícuo para o
crescimento de medidas autoritárias. E encontra porto e ressonância na
multidão, que deliberadamente opera como vetor e arrisca-se na curva de pico de
contágio. Sem política pública, que direcione ao coletivo, sem balizas, que
oriente as condutas e desejos ao bem comum, orientada pela pulsão de vida, o
que resta é a lógica perversa.
Freud localiza que uma
das funções da castração, além da renúncia pulsional, é a união do desejo à
lei, abrindo possibilidade da vida em sociedade. No caso em tela, percebemos
que a um certo desatar deste laço civilizatório
e o desejo não se encontra mais balizado pela lei, em efeito, abre-se em
seu lugar à via franca à transgressão. Funcionamento clássico da perversão,
enquanto estrutura clínica.
O perverso, diferente
do neurótico não abre mão do prazer, recusa-se a submeter-se, em resposta atua
com o mecanismo do desmentido e não da aceitação do recalque como ocorre na
estrutura neurótica. “O perverso dedica-se ao menos em fantasia
ser objeto do gozo do Outro” (Fink, p.144, ano)
Não é verdadeiro
afirmar que a aqueles que se recusam ao isolamento social ao romper um pacto de
responsabilidade coletivo, sejam em suas estruturas clínicas, perversos, em
absoluto. Isto seria psicologizar gravemente a questão. Nosso questionamento
está centrado na afirmação freudiana de que a perversão sendo o negativo da
neurose é “ativada” ou “acionada” em tempos em que os referenciais simbólicos
estão em derrocada, dado o direcionamento da governamentalidade que opera como
discurso perverso. O que promove o desatar o desejo da lei e produzindo graves
conseqüências sociais, na medida em que, direciona condutas orientadas pela
pulsão de morte. Logo, em oposição à construção e as expectativas
civilizatórias.
Assim, o que a
psicanálise proporciona é uma desnaturalização dos processos humanos que não
são regidos somente pela ordem biológica, mas que respondem a outros domínios.
Neste sentido, a inserção do homem na chamada “civilização”, não se faz sem
ônus para o indivíduo e para a própria sociedade, que é estruturada de forma
artificial, assim como a lei. O que o perverso nos mostra é que esta estruturação
é frágil e pode ser ultrapassada a qualquer momento, suspendendo qualquer
ilusão, que insistimos em depositar na estrutura de ordenação social, na
expectativa de sermos salvaguardados das intempéries da natureza, inclusive,
das ações humanas. Portanto, se a constituição da psique é conflitiva e está
estruturada em um domínio de tensão de forças, o espectro social também se
formará sobre este terreno.
Partindo
do escopo teórico da psicanálise, encontramos em Zizek a chave para compreensão da operação do
cinismo. Ao ressaltar o caráter cínico do discurso da sociedade contemporânea,
Zizek, aborda o papel da ideologia na sedimentação da realidade social. Para o
autor, é a fantasia ideológica que estrutura a realidade. Isto quer dizer que,
a realidade é estruturada, fundada e confeccionada através da fantasia, que por
sua vez, emerge em resposta a instauração da lei social - com o encontro
(sempre) traumático com o real. O que não podemos perder de vista é que a
concepção de lei proposta por Zizek, é a pertinente ao campo psicanalítico, o
que promove a entrada em cena de um escopo teórico peculiar, que nos é vital
adentrar, a fim de compreender de forma sólida a correlação entre a fantasia e
a ideologia.
A fantasia
política tem como função preencher certa lacuna deixada pela instauração da
lei, ou seja, a instauração da falta no campo do Outro. Ou ainda, pela
consolidação do campo simbólico, que promove a emergência do sujeito no campo
humano propriamente dito. É importante ressaltar, que a instauração da lei,
correlata a emergência da fantasia promove a regulamentação do gozo e a
produção de verdade. Entretanto, devemos ter em mente o caráter inconsciente da
fantasia, na medida em que, rege a realidade e atividade humana, em um
desconhecimento constitutivo. Isto quer dizer que, existe um desconhecimento acerca
da fantasia, sobre a qual pouco se pode saber. O desconhecimento consciente da
fantasia é proporcional ao poder de conformação, da fantasia, que trabalha como
uma “matriz psíquica, que funciona como uma espécie de filtro em relação ao
mundo externo” (COUTINHO JORGE, 2010, pág. 10).
Entretanto, na lógica cínica a operação
se dá de forma mais específica, pois não se trata de um desconhecimento, o
acesso ao saber está franco, porém este apresenta amalgamado com a verdade, aos
moldes totalitários. Em
seu documentário “Guia pervertido da
ideologia”(2012), Zizek formula esta relação com a fantasia da seguinte
forma: “eles sabem o que fazem e por isso
o fazem”. O que é consonante com a análise aqui proposta, tanto a questão
pública quanto o cidadão que se recusa ao isolamento social como meio de
combate à pandemia sabem o que fazem. “o
discurso do mestre exclui a fantasia. É isto exatamente o que faz dele, em seu
fundamento, totalmente cego” (Lacan, p.114, 1992)
Desta forma, a lógica
cínica, está articulada com o conceito lacaniano de discurso do mestre, que se
estabelece em moldes perversos, ao submeter o outro a puro objeto. Neste caso,
descartáveis e passíveis de serem aniquilados pelo covid-19.
Conceber como natural
as mortes que poderiam ser evitadas seja pela aplicação de políticas públicas
de gestão da pandemia, seja pela circulação voluntária no espaço público
presentifica a necropolítica e fazer girar, portanto, a lógica perversa que
promove a aniquilação do outro, rebaixado à dimensão de objeto.
Neste eixo, nos
interessa o encontro que Mbembe faz girar entre o pensamento foucaultiano e o
Arenditiano justo na localização da política da raça como o constructo que
viabiliza o fomento da política da morte. Segundo o autor:
“Na economia do biopoder, a
função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as
funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é a “condição para a aceitabilidade do fazer morrer”” (p.18)
Nosso grifo
pretende destacar a condição de naturalização das mortes passíveis de serem
efetivadas, que pode nos ajudar a compreender a expressão “novo normal” forjada
no Brasil 2020. O que o momento pandêmico faz mover neste país está para além
das conseqüências sanitárias decorrentes do cororonavírus. Estabelece-se aíuma
espécie do retorno de um passado violento recalcado, que justamente por não ter
sido elaborado, olhado de frente como empreitada coletiva, está destinado à
repetição.
Queremos
sustentar nestas linhas que o racismo, a misoginia e o moralismo cristão,
pilares do processo de colonização, e que pautam a negação da alteridade
sustentam, ainda hoje, o discurso de ódio que permite a naturalização das vidas
tidas como “indignas de serem vividas”. A lógica da governamentalidade perversa
que se impôs como na esfera política é, ao mesmo tempo, fruto destes vetores
enraizados na subjetividade brasileira que se fez hegemônica e, também, fruto
desta.
Ou seja, se por um lado
a entrada do bolsonarismo no poder se deve ao efeito catalisador destes vetores
de ódio que pululam no imaginário social, por outro, a nutre através do
discurso de ódio veiculado como arma de guerra.
Da
mesma forma, o uso político da pandemia do COVID-19 além de oferecer território
propício para a aplicação de medidas autoritárias, dado a gestão do medo,
também pode ser entendida como estratégia de guerra. Que se utiliza de arma
biológica, tal como gás sarin, antraz e outras armas bioquímicas.
Os chamados
“cloroquiners” ou “bolsominion” sectários do presidente, atuam na vida
ordinária como “algoritmos do pior”, ao utilizar as redes sociais como ferramentas
de guerra: uso estratégico da desinformação e veiculação de discurso de ódio
via fake news. Ao passo que na vida cotidiana, atuam como verdadeiros
homens-bomba, Kamikazes contemporâneos, ao insistirem na transgressão do
isolamento social.
Arriscam-se
ao contato social, ao mesmo tempo em que vulnerabilizam, ainda mais, certos
grupos populacionais que não dispõe de medidas protetivas ao vírus. Sabemos que
o cuidado de higiene básica são essenciais para a preservação da vida neste
momento. E sabemos igualmente que grande parcela da população sequer dispõe de
água encanada e itens como sabão, máscaras e luvas, elementos necessários para
previnir o contato com o coronavírus.
Desta forma, os
“homens-bomba-do-Leblon” e os kamikazes-bronzeados-do-Arpoador”[10]
destilam além do discurso de ódio, as armas bioquímicas pela cidade, sendo
assim semeadores da morte avalizada pelo Estado genocida. A ramificação dos
atos de execução nos chamam atenção pela frivolidade, e pela ausência de culpa
das ações mortíferas dos “roles”, que lançam a narrativa cínica da “imunidade
de rebanho” como álibi. O que faz ecoar em sua premissa “a necessidade de alguns morrerem para que outros fiquem imunizados”
a definição de Mbembe: “a soberania é a capacidade de definir quem
importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é” (p.41).
Argumento comum que apresenta o “homem comum” que presentifica aquilo que Hanna
Arendt classifica como “banalidade do mal”.
A diferença, no entanto
é que, em 2020, as ações micro-fascistas não são orquestradas objetivamente
pelo Estado, no sentido em que não são “ordens burocráticas” que estão sendo
cumpridas. Senão, um alistamento voluntário, em alguns casos, alienados, que
levam ao pior. Materialização ultracontemporânea da modalidade global do
necropoder: a saber, que o direito de matar já não constituem o monopólio
exclusivo dos Estados, e o exército regular já não é o único a exercer essa
função (Mbembe p.52). Nestas linhas, o autor refere-se ao poder paralelo, das
milícias e das associações paramilitares, que no Brasil, parece somar-se a este
novo contingente de “soldados” alistados voluntariamente a circular pela
cidade, colocando a si mesmos e aos demais em risco.
Explicamos:
parece-nos que existe uma adesão à lógica cínica (que a psicanálise pode nos
ajudar a compreender), pois, diferente do que aponta Mbembe em seu ensaio, o
suicídio e assassinato aqui, não estão na lógica do sacrifício e redenção. Não
se trata de encarar à morte como via de afirmação da liberdade, tal como
estabelece o giro hegeliano. Em absoluto, aqui a sideração pela morte e o
empuxo ao pior, materializados na produção de mais de 100 mil cadáveres faz a
criação de um contingente de mercenários, dispostos a operar a necropolítica
ordinariamente e muitos deles associados a partir de sua alienação.
Seja a alienação
pensando ao esclarecimento racional do caráter mortífero de seus atos tendo em
vista a produção das fake news em
larga escala, criando através da desinformação uma desorientação da população
em geral, dado a ausência de políticas de enfrentamento.
Seja a alienação na
chave perversa. Não se trata de uma ação que desconhece suas conseqüências.
Neste sentido, a alienação se encontra na impossibilidade de vislumbrar outra
forma de sociabilidade que não passe pela relação de domínio. Seja ter o outro
como objeto, ou ser em si mesmo dominado[11].
Desta forma,
acreditamos esta ser uma nova forma de constituição de “máquina de guerra”.
Esta, em tela de análise, possui como combustível a moral veiculada pelo
cristofascismo[12]
que promove a adesão irrestrita e cega destes sectários. “tecnologias de
destruição tornam-se mais táteis, mais anatômicas e sensoriais, dentro do qual
escolha se dá entre a vida e a morte (...) agora representada pelo massacre”
(Mbembe. P.59).
Repetimos: Em 30 de agosto de 2020 o Brasil registra
mais de 120 mil mortos, dados subnotificados. “As maneiras de matar variam
muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente
reduzidos à condição de simples esqueletos.” (Mbembe.p.60)
Mbembe segue a reflexão
sobre as formas possíveis de matar questionando a diferença de fazê-lo via tanque
de guerra, helicóptero mísseis ou o próprio corpo. Aqui, ele se refere ao
homem-bomba, mas nos faz refletir sobre o uso letal do corpo assintomático em
relação ao COVID-19 daqueles que intencionalmente transgridem o isolamento
social. “O homem-bomba não veste nenhum
uniforme de soldado e não exibe nenhuma arma” (...) “a esse respeito é
significativo o local em que a emboscada é colocada: o ponto de ônibus, a
cafeteria, a discoteca, o mercado, a guarita, a rua, em suma, espaços da vida
cotidiana” (p.63) poderíamos incluir: os
bares do Leblon, as praias do Rio de Janeiro... O autor também destaca o
caráter invisível da arma, que dissimulada faz parte do corpo... o que no nosso
caso em tela, toma proporções literais. “O
corpo não esconde apenas a arma. Ele é transformado em arma, não em sentido
metafórico, mas no sentido verdadeiramente balístico” (Mbembe p.63).
Uma
guerra “corpo-a-corpo”, porém, que se difere terminantemente ao sacrifício e
redenção entendido na chave Heideggeriana da morte como “libertação do terror
da servidão”. O caso brasileiro, o
alistamento ao empuxo ao pior parece-nos atender (e a tender), justo ao oposto,
a saber, a lógica da servidão voluntária tal como posto pro Étienne de La
Boétie, submetendo-se ao tirano e dando a ele meios necessários para perpetuar
sua opressão.
Assim, a política de
empuxo ao pior, a transgressão da lei, e ao mais-de-gozar, produz como efeito,
a dilaceração dos laços sociais. E tem trazido à luz, a face obscura de nós
mesmos, materializada na banalidade do mal, culminando nos números cada vez
mais elevados de produção de corpos.
***
O pensador argentino,
Jorge Alemand tem promovido o debate acerca do que chamou de conjecturas sobre
a esquerda lacaniana. Seu intento gira em tornoda possibilidade de pensar um
projeto emancipatório a partir da psicanálise francesa. Projeto este que não se
pretende todo e completo, senão, parcial, circunstancial e articulado segundo a
conjuntura particular que se apresenta. Seu argumento central é que este campo
de saber pode oferecer recursos que façam frente ao movimento circular do
capitalismo que possui exigências impossíveis de domar. Sob a justificativa da
crise, o que se presentifica é o Estado de Exceção, que promove a proliferação
de vidas nuas, indivíduos matáveis.
O que se desdobra a
partir daí, é a exigência do sacrifício e da renúncia em prol do acúmulo de
poucos; enquanto o mercado acumula o indivíduo renuncia. Como vimos, há um
ponto de gozo que une o indivíduo ao discurso, sendo ele mesmo engrenagem do sistema,
participante ativo desta lógica, e por isso, comprometido com ela.
A gravidade deste
sistema é que cada vez mais, o capitalismo não necessita dos laços sociais e
tem ampliado os efeitos de exceção, produzindo excluídos em massa e o
esmaecimento da política. Alemand
ressalta que é necessário pensar em um projeto emancipatório que leve em conta
a dimensão humana, no sentido de dar lugar ao que falha, ao que manca; em
última instância ao inconsciente e seus efeitos. E propõe o conceito de solidão
comum, como ponto de partida. Entendendo
como comum não o caráter homogêneo e igualitário entre os homens, e sim o lugar
onde a diferença pode se abrir como tal. (Machado, 2015)[13]
Portanto,
para pensar as implicações políticas da teoria psicanalítica, trazemos à cena a
chamada “ferida narcísica” denominada por Freud ao afirmar que o “Eu não é senhor em sua própria morada”, referindo-se
ao componente inconsciente presente na formação psíquica. Neste sentido, é
preciso ter em conta a complexidade do aparelho
psíquico e principalmente, compreender que ela não está referida a
lógica cartesiana, fundamentada na razão. Portanto, a referência behaviorista
que o comportamento é a expressão direta da psique humana e passível de
adaptação ao meio social é deficitária. Na medida em que o que está em jogo não
é um organismo em oposição a realidade ou ainda, uma concepção “desajustada” a
realidade. E sim, uma realidade que se forma em correlação a construção de
subjetividade.
Portanto, precisamos
ter em vista que, tanto a análise do cenário político atual, quanto a
construção de políticas públicas aplicadas, têm de levar em conta a
complexidade, e a tensão existente no aparelho psíquico, sob pena de fracasso.
Ou seja, é necessário que a coluna de sustentação das práticas que visam
transformação social ou comportamental, não esteja direcionada, ingenuamente,
somente a simples conscientização e ampliação de informações a população. Tendo
em vista que não é somente a razão que se há de atingir; É necessário, portanto, compreender a dinâmica
subjetiva envolvida nas realidades sociais que se objetiva transformar, neste
caso, chamar a responsabilização sob esta escolha e tratá-la como tal.
Neste caso em tela, é importante ressaltar que a transgressão que o
perversos colocam em jogo ao recusar-se abrir mão de gozo, é também uma
tentativa de fazer valer a lei. Em outras palavras: seu objetivo menos evidente
é dar existência à Lei: fazer com que exista o Outro como lei. “O perverso, por outro lado, não deseja em
função da lei. Isto é, não deseja aquilo que foi proibido, em vez disso ele tem
de fazer a lei existir” (Fink, p.201. ano). E neste sentido, resta-nos a
colocar a questão se a transgressão promovida nestes tempos de pandemia, no
Brasil, não se trataria de um apelo perverso para a instauração da lei, ainda
que para isso seja necessária a transposição de seu limite. Dado que no âmbito
da governamentalidade perversa os referenciais simbólicos que deveriam
sustentar o recalcamento (e seguir fazendo valer o enlace do desejo à lei)
estão em ruínas. E funcionam, pelo contrário como imperativo de gozo e empuxo
ao pior, fazendo esgarçar o tecido civilizatório.
É nesta direção que a análise sobre a estrutura perversa nos
encaminha: em certa medida de que a transgressão da lei cumpre certa função de
retirá-lo do lugar de objeto do Outro, e de algum modo, funciona como uma
tentativa de restaurá-la, ainda que passado seu limite. Sendo o perverso aquele
de desmente a castração, que barra o acesso a via direta de gozo, interdição
necessária para a vida em comum, nos parece que aqueles que estão nas ruas,
atuam nesta mesma lógica: recusam-se a abrir mão de suas satisfações, ainda que
o preço a ser pago seja colocar sua própria vida em risco e aumentar o número
de morte que poderiam ser evitadas[14].
***
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEM, Giorgio: Estado de Exceção 2004,
Boitempo, São Paulo/SP
ALEMAN,
Jorge. Horizontes neoliberales en la subjetividad. Buenos Aires: Gramma
Ediciones, 2016
ARENDT, Hannah: Origens do Totalitarismo.
Antisemitismo, imperialismo, totalitarismo, Cia de Bolso, São Paulo, SP 2015
COUTINHO, Jorge: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan.
VOL.2 A clínica da fantasia; ZAHAR, Rio de Janeiro 2010;
DE LA BÓETIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária. São
Paulo: Editora Martin Claret, 2015, 3ª reimpressão
FREUD, Reflexões sobre o
tempo de guerra e morte (1915). Rio
de Janeiro: Imago, 1980;
________ Por que a Guerra?
(1932) Rio de Janeiro, Imago 1980;
FOUCAULT, História da Sexualidade VOL. 1 A vontade de
saber, Graal, São Paulo, 2005
____________ Ditos e escritos vol.1: “Problematização do Sujeito:
Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise”. Ed. Forense universitária, Rio de
Janeiro, 2011
LACAN, Jacques O seminário, livro 17 o avesso
da psicanálise. 2007, Zahar
MBEMBE, Achille, Necropolítica, 2018,
n-1edições.
MACHADO, Bárbara Breder: Política e
Psicanálise (des)encontros entre Foucault e Lacan, Universidade Federal
Fluminense, 2015.
ROUDINESCO, Elisabeth: “A parte obscura de nós
mesmos”
Documentário: FIENES, Sophie, Guia pervertido da Ideologia, 2012
[1] Professora adjunta do Departamento de Psicologia UFF/ESR
[2] Junho 2020
[3] Julho 2020 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020
[4] Agosto 2020 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020
[5] Por ‘governamentalidade’ entendo o conjunto
constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os
cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específi ca, ainda
que complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por forma maior
de saber a economia política, por instrumento técnico essencial os dispositivos
de segurança. Segundo, por ‘governamentalidade’ entendo a
tendência, a linha de força que, em
todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e desde muito tempo, à preeminência
desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros:
soberania, disciplina, e que, por uma parte, levou ao desenvolvimento de toda uma
série de aparelhos específicos de governo [e, de outra parte] , ao
desenvolvimento de toda uma série de saberes (Foucault, 2004a , p. 111-112).
[6]Falas do presidente da República em 2020 sobre as mortes evitáveis pela pandemia de coronavírus. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm. acessado em 03/07/2020
[7]Fala do prefeito de Itabuna, Bahia ao declarar a reabertura do comércio em 30/06/2020 disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/07/02/video-prefeito-de-itabuna-diz-que-comercio-sera-reaberto-a-partir-de-9-de-julho-morra-quem-morrer.ghtml acessado em 03/07/2020
[8] Elisabeth Roudinesco, 2008
[9] (dado que muitos trabalhadores estão impedidos de deixar seus postos de trabalho)
[10] Vale ressaltar que a referência a cidade do Rio de Janeiro trata-se de uma metáfora. Na medida em que a transgressão do isolamento social acontece em diversas outras cidades do país.
[11] Argumento desenvolvido em “diálogos interdisciplinares e indisciplinados sobre pandemia. No blog diálogos do fim do mundo disponível em: https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2020/08/dialogos-indisciplinados-e.html
[12] Sobre “cristofacismo” ler Fábio Py https://theintercept.com/2020/05/01/cristofascismo-bolsonaro-pascoa/
[13] MACHADO, Bárbara Breder: “Política e Psicanálise (des) encontros entre Lacan e Foucault, Universidade Federal Fluminense, 2015
[14]
Sobre a imagem, trata-se de colagem de dois noticiários disponíveis em: Banhista
lotam paria do Leblon, no Rio de Janeiro: decreto municipal liberou os ambulantes
e o banho de mar, mas não a permanência na areia (Wilton Junior/Estadão
Conteúdo) https://exame.com/brasil/a-pandemia-acabou-praias-lotam-no-final-de-semana-veja-fotos/
Homem derruba cruzes e ataca homenagem a vítimas da
Covid-19 no Riohttps://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/homem-derruba-cruzes-e-ataca-homenagem-a-vitimas-da-covid-19-no-rio.shtml
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