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terça-feira, 1 de setembro de 2020

Governamentalidade perversa em tempos de pandemia: o empuxo ao pior

 


Bárbara Breder Machado(UFF)[1]

Texto revisado por: Flávia Mendes (UFF) e  Dulcinéia Medeiros (UDTF)

 

 

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 50 mil mortos e ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados.[2] (...)

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 62 mil mortos pelo COVID-19 e ultrapassa a barreira de 1 milhão de infectados[3] (...)

No momento em que escrevo as linhas deste ensaio, o Brasil soma mais de 120 mil mortos pelo COVID-19 e ultrapassa a barreira de 3 milhões de infectados[4].  (...)

 

Este ensaio foi escrito em três meses e, neste processo, a retificação dos dados objetivos do número de mortos pela COVID-19 no Brasil não foi apenas um simples ato de atualização para referenciar o presente trabalho. É, em si mesmo, um analisador. Pois, ainda que os números comprovem o aumento substancial de produção de cadáveres neste átimo temporal, as praias do Rio de Janeiro seguem batendo recorde de banhistas. Período, no qual deveríamos estar, segundo normativas da OMS, em isolamento social. Porém, os bares e restaurantes reabertos no Rio de Janeiro, estão lotados de clientes aglomerados que dispensam máscaras e ignoram os protocolos sanitários. Cenário que se repete em diversas outras cidades pelo Brasil.

Longe de ser falta de informação ou acesso ao conhecimento, queremos defender aqui o argumento de que a conduta destes indivíduos corrobora o encaminhamento genocida da política brasileira. E marca o acirramento do que aqui pretendemos esboçar a partir da senda foucaultiana como governamentalidade[5] perversa.

Pareados como uníssono nas afirmações cínicas: - “E daí?”/  “eu não sou coveiro” / “pessoas morrem”[6]/ “vou abrir o comércio, morra quem morrer”[7] estas frases fazem reativar a análise Arendtiana sobre o julgamento de Eichman em Jerusalém e traz à cena a noção da banalidade do mal, a qual Roudinesco, retoma para pensar a partir de Freud a localização no psiquismo um universal da diferença perversa em cada um.

Retomando as análises de Zizek pretendemos dar algum contorno possível para a compreensão da lógica cínica de operação que coloca em cena o discurso perverso, tal como Lacan o concebe. Abrindo-nos a possibilidade de reler a afirmação freudiana de que a neurose é o negativo da perversão. E que, por isso, o pior captura a todos nós, na medida em que, trata-se de uma parte obscura de nós mesmos[8]. De algum lugar, opera em nós e orienta nossas condutas, para além da racionalidade (a tempos destituída de seu lugar central da motivação humana). “os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos” (Roudinesco, 2008, p.13)

Para iniciar a articulação das chaves teóricas aqui postas, partiremos da célebre troca de correspondência entre Freud e Einstein no período do fim da segunda grande guerra. O físico recorria ao psicanalista para entender o motivo que levou a civilização retornar ao nível da barbárie, e consultava sobre possíveis medidas profiláticas para que não viéssemos mais enquanto sociedade a descer a estes níveis. Convocação esta a que Freud responde que, na verdade, a civilização nunca esteve em condição elevada e que nos habita o empuxo a destruição e a agressividade.

 

Destaco aqui algumas passagens:

 

Questões que Einstein coloca a Freud:

 

“Este é o problema: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra (...) Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando”. (30 de julho de 1932)

Resposta de Freud a Einstein:

“Passo agora a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, de que neles exige em atividade alguma coisa um instinto de ódio e de destruição que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um pulsão dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. (...) Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada (...) Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. (...) A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha” (setembro de 1932)

 

Se outrora, Freud, em seu tempo recebera a “alcunha” de pessimista, para nossos, poderíamos classificá-lo como realista. Pois sua obra soube pontuar aquilo que temos tentado, sem sucesso tamponar, e de certo modo “esconder”, sobre o pretenso racionalismo, celebrado pela perspectiva da rational choice. Não somos motivados somente pela consciência, o aparelho psíquico não se reduz a razão. A segunda tópica freudiana indica que grande parte da psique humana é inconsciente.  O ódio nos habita, (também) nos forma e conduz nossas ações, localizado através do constructo teórico denominado pulsão de morte. E é ela quem conduz os corpos bronzeados na beira da praia, enquanto milhares de outros se fecham em covas. É ela quem ilumina os rostos sorridentes, vívidos de uma euforia patológica nos bares, enquanto um universo incontável de famílias choram seus mortos.

 

“a pulsão destruidora, dizia Freud é a condição primordial de toda a sublimação, uma vez que é característica do homem –se é que esta existe – não é senão a aliança do próprio homem, da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização, uma espécie de passagem da natureza à cultura. (Roudineco, 2008, p. 100)

 

Aqueles que rompem a quarentena por escolha[9] e circulam nas vias públicas não parecem apresentar qualquer indício de culpa, dado que ali estão e publicizam através de posts nas redes sociais os “rolês de quarentena”. Querem ver-se sendo vistos. Isto faz parte do jogo da pulsão escópica, tal como o gozo exibicionista. Parecem não temer ou se importar pela transgressão da lei, sem qualquer remorso publicam suas fotos e denunciam, eles mesmos, seus atos transgressores. Deliberadamente se transformam em vetores, disseminadores de vírus numa lógica “homem-bomba” de flerte com a morte.

Fomentados pelo discurso em empuxo ao pior, lançam-se em um jogo macabro muito similar ao de “roleta russa”, a espera que a sorte ou azar o atinjam, arriscam-se e agudizam a vulnerabilidade daqueles que estão em grupo de risco. O racismo aí se expõe como intensidade, tal como o etarismo e o elitismo que insistem em legitimar através de seus discursos e práticas como vidas nuas, corpos matáveis: Trabalhador, negro, pobre, mulheres, moradores de periferia. E na esteira, os trabalhadores da linha de frente do combate ao covid-19. E isto sem culpa ou mínimo constrangimento.

O que nos indica que os referenciais simbólicos da lei sofreram grave erosão, ruíram como areia (tal como a da praia), diante de nossos olhos, não sendo mais capaz de estabelecer efeito de freio ao gozo. Elemento necessário para a vida em sociedade.  A transgressão tem via aberta, à luz do dia, sem pudor ou sanções. Cenário que se abre pela gestação da pandemia realizada pelo viés genocida.

Enquanto os demais países realizam a gestão da crise, aqui testemunhamos atônitos e inibidos, a gestação da crise e sua transformação em verdadeira arma biológica. E a correlata produção do terror, terreno instável, insegurança, medo e vulnerabilidade que produzem o cenário profícuo para o crescimento de medidas autoritárias. E encontra porto e ressonância na multidão, que deliberadamente opera como vetor e arrisca-se na curva de pico de contágio. Sem política pública, que direcione ao coletivo, sem balizas, que oriente as condutas e desejos ao bem comum, orientada pela pulsão de vida, o que resta é a lógica perversa.

Freud localiza que uma das funções da castração, além da renúncia pulsional, é a união do desejo à lei, abrindo possibilidade da vida em sociedade. No caso em tela, percebemos que a um certo desatar deste laço civilizatório  e o desejo não se encontra mais balizado pela lei, em efeito, abre-se em seu lugar à via franca à transgressão. Funcionamento clássico da perversão, enquanto estrutura clínica.

O perverso, diferente do neurótico não abre mão do prazer, recusa-se a submeter-se, em resposta atua com o mecanismo do desmentido e não da aceitação do recalque como ocorre na estrutura neurótica.  “O perverso dedica-se ao menos em fantasia ser objeto do gozo do Outro” (Fink, p.144, ano)

Não é verdadeiro afirmar que a aqueles que se recusam ao isolamento social ao romper um pacto de responsabilidade coletivo, sejam em suas estruturas clínicas, perversos, em absoluto. Isto seria psicologizar gravemente a questão. Nosso questionamento está centrado na afirmação freudiana de que a perversão sendo o negativo da neurose é “ativada” ou “acionada” em tempos em que os referenciais simbólicos estão em derrocada, dado o direcionamento da governamentalidade que opera como discurso perverso. O que promove o desatar o desejo da lei e produzindo graves conseqüências sociais, na medida em que, direciona condutas orientadas pela pulsão de morte. Logo, em oposição à construção e as expectativas civilizatórias.

Assim, o que a psicanálise proporciona é uma desnaturalização dos processos humanos que não são regidos somente pela ordem biológica, mas que respondem a outros domínios. Neste sentido, a inserção do homem na chamada “civilização”, não se faz sem ônus para o indivíduo e para a própria sociedade, que é estruturada de forma artificial, assim como a lei. O que o perverso nos mostra é que esta estruturação é frágil e pode ser ultrapassada a qualquer momento, suspendendo qualquer ilusão, que insistimos em depositar na estrutura de ordenação social, na expectativa de sermos salvaguardados das intempéries da natureza, inclusive, das ações humanas. Portanto, se a constituição da psique é conflitiva e está estruturada em um domínio de tensão de forças, o espectro social também se formará sobre este terreno.

            Partindo do escopo teórico da psicanálise, encontramos em  Zizek a chave para compreensão da operação do cinismo. Ao ressaltar o caráter cínico do discurso da sociedade contemporânea, Zizek, aborda o papel da ideologia na sedimentação da realidade social. Para o autor, é a fantasia ideológica que estrutura a realidade. Isto quer dizer que, a realidade é estruturada, fundada e confeccionada através da fantasia, que por sua vez, emerge em resposta a instauração da lei social - com o encontro (sempre) traumático com o real. O que não podemos perder de vista é que a concepção de lei proposta por Zizek, é a pertinente ao campo psicanalítico, o que promove a entrada em cena de um escopo teórico peculiar, que nos é vital adentrar, a fim de compreender de forma sólida a correlação entre a fantasia e a ideologia.

            A fantasia política tem como função preencher certa lacuna deixada pela instauração da lei, ou seja, a instauração da falta no campo do Outro. Ou ainda, pela consolidação do campo simbólico, que promove a emergência do sujeito no campo humano propriamente dito. É importante ressaltar, que a instauração da lei, correlata a emergência da fantasia promove a regulamentação do gozo e a produção de verdade. Entretanto, devemos ter em mente o caráter inconsciente da fantasia, na medida em que, rege a realidade e atividade humana, em um desconhecimento constitutivo. Isto quer dizer que, existe um desconhecimento acerca da fantasia, sobre a qual pouco se pode saber. O desconhecimento consciente da fantasia é proporcional ao poder de conformação, da fantasia, que trabalha como uma “matriz psíquica, que funciona como uma espécie de filtro em relação ao mundo externo” (COUTINHO JORGE, 2010, pág. 10). 

Entretanto, na lógica cínica a operação se dá de forma mais específica, pois não se trata de um desconhecimento, o acesso ao saber está franco, porém este apresenta amalgamado com a verdade, aos moldes totalitários.  Em seu documentário “Guia pervertido da ideologia”(2012), Zizek formula esta relação com a fantasia da seguinte forma: “eles sabem o que fazem e por isso o fazem”. O que é consonante com a análise aqui proposta, tanto a questão pública quanto o cidadão que se recusa ao isolamento social como meio de combate à pandemia sabem o que fazem. “o discurso do mestre exclui a fantasia. É isto exatamente o que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego” (Lacan, p.114, 1992)

Desta forma, a lógica cínica, está articulada com o conceito lacaniano de discurso do mestre, que se estabelece em moldes perversos, ao submeter o outro a puro objeto. Neste caso, descartáveis e passíveis de serem aniquilados pelo covid-19.

Conceber como natural as mortes que poderiam ser evitadas seja pela aplicação de políticas públicas de gestão da pandemia, seja pela circulação voluntária no espaço público presentifica a necropolítica e fazer girar, portanto, a lógica perversa que promove a aniquilação do outro, rebaixado à dimensão de objeto.

Neste eixo, nos interessa o encontro que Mbembe faz girar entre o pensamento foucaultiano e o Arenditiano justo na localização da política da raça como o constructo que viabiliza o fomento da política da morte. Segundo o autor:

“Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é a “condição para a aceitabilidade do fazer morrer”” (p.18)

 

            Nosso grifo pretende destacar a condição de naturalização das mortes passíveis de serem efetivadas, que pode nos ajudar a compreender a expressão “novo normal” forjada no Brasil 2020. O que o momento pandêmico faz mover neste país está para além das conseqüências sanitárias decorrentes do cororonavírus. Estabelece-se aíuma espécie do retorno de um passado violento recalcado, que justamente por não ter sido elaborado, olhado de frente como empreitada coletiva, está destinado à repetição.

            Queremos sustentar nestas linhas que o racismo, a misoginia e o moralismo cristão, pilares do processo de colonização, e que pautam a negação da alteridade sustentam, ainda hoje, o discurso de ódio que permite a naturalização das vidas tidas como “indignas de serem vividas”. A lógica da governamentalidade perversa que se impôs como na esfera política é, ao mesmo tempo, fruto destes vetores enraizados na subjetividade brasileira que se fez hegemônica e, também, fruto desta.

Ou seja, se por um lado a entrada do bolsonarismo no poder se deve ao efeito catalisador destes vetores de ódio que pululam no imaginário social, por outro, a nutre através do discurso de ódio veiculado como arma de guerra.

            Da mesma forma, o uso político da pandemia do COVID-19 além de oferecer território propício para a aplicação de medidas autoritárias, dado a gestão do medo, também pode ser entendida como estratégia de guerra. Que se utiliza de arma biológica, tal como gás sarin, antraz e outras armas bioquímicas.

Os chamados “cloroquiners” ou “bolsominion” sectários do presidente, atuam na vida ordinária como “algoritmos do pior”, ao utilizar as redes sociais como ferramentas de guerra: uso estratégico da desinformação e veiculação de discurso de ódio via fake news. Ao passo que na vida cotidiana, atuam como verdadeiros homens-bomba, Kamikazes contemporâneos, ao insistirem na transgressão do isolamento social.

            Arriscam-se ao contato social, ao mesmo tempo em que vulnerabilizam, ainda mais, certos grupos populacionais que não dispõe de medidas protetivas ao vírus. Sabemos que o cuidado de higiene básica são essenciais para a preservação da vida neste momento. E sabemos igualmente que grande parcela da população sequer dispõe de água encanada e itens como sabão, máscaras e luvas, elementos necessários para previnir o contato com o coronavírus.

Desta forma, os “homens-bomba-do-Leblon” e os kamikazes-bronzeados-do-Arpoador”[10] destilam além do discurso de ódio, as armas bioquímicas pela cidade, sendo assim semeadores da morte avalizada pelo Estado genocida. A ramificação dos atos de execução nos chamam atenção pela frivolidade, e pela ausência de culpa das ações mortíferas dos “roles”, que lançam a narrativa cínica da “imunidade de rebanho” como álibi. O que faz ecoar em sua premissa “a necessidade de alguns morrerem para que outros fiquem imunizados” a definição de Mbembe:  “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é” (p.41). Argumento comum que apresenta o “homem comum” que presentifica aquilo que Hanna Arendt classifica como “banalidade do mal”.

A diferença, no entanto é que, em 2020, as ações micro-fascistas não são orquestradas objetivamente pelo Estado, no sentido em que não são “ordens burocráticas” que estão sendo cumpridas. Senão, um alistamento voluntário, em alguns casos, alienados, que levam ao pior. Materialização ultracontemporânea da modalidade global do necropoder: a saber, que o direito de matar já não constituem o monopólio exclusivo dos Estados, e o exército regular já não é o único a exercer essa função (Mbembe p.52). Nestas linhas, o autor refere-se ao poder paralelo, das milícias e das associações paramilitares, que no Brasil, parece somar-se a este novo contingente de “soldados” alistados voluntariamente a circular pela cidade, colocando a si mesmos e aos demais em risco.

            Explicamos: parece-nos que existe uma adesão à lógica cínica (que a psicanálise pode nos ajudar a compreender), pois, diferente do que aponta Mbembe em seu ensaio, o suicídio e assassinato aqui, não estão na lógica do sacrifício e redenção. Não se trata de encarar à morte como via de afirmação da liberdade, tal como estabelece o giro hegeliano. Em absoluto, aqui a sideração pela morte e o empuxo ao pior, materializados na produção de mais de 100 mil cadáveres faz a criação de um contingente de mercenários, dispostos a operar a necropolítica ordinariamente e muitos deles associados a partir de sua alienação.

Seja a alienação pensando ao esclarecimento racional do caráter mortífero de seus atos tendo em vista a produção das fake news em larga escala, criando através da desinformação uma desorientação da população em geral, dado a ausência de políticas de enfrentamento.

Seja a alienação na chave perversa. Não se trata de uma ação que desconhece suas conseqüências. Neste sentido, a alienação se encontra na impossibilidade de vislumbrar outra forma de sociabilidade que não passe pela relação de domínio. Seja ter o outro como objeto, ou ser em si mesmo dominado[11].

Desta forma, acreditamos esta ser uma nova forma de constituição de “máquina de guerra”. Esta, em tela de análise, possui como combustível a moral veiculada pelo cristofascismo[12] que promove a adesão irrestrita e cega destes sectários. “tecnologias de destruição tornam-se mais táteis, mais anatômicas e sensoriais, dentro do qual escolha se dá entre a vida e a morte (...) agora representada pelo massacre” (Mbembe. P.59).

Repetimos: Em 30 de agosto de 2020 o Brasil registra mais de 120 mil mortos, dados subnotificados. “As maneiras de matar variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente reduzidos à condição de simples esqueletos.” (Mbembe.p.60) 

Mbembe segue a reflexão sobre as formas possíveis de matar questionando a diferença de fazê-lo via tanque de guerra, helicóptero mísseis ou o próprio corpo. Aqui, ele se refere ao homem-bomba, mas nos faz refletir sobre o uso letal do corpo assintomático em relação ao COVID-19 daqueles que intencionalmente transgridem o isolamento social. “O homem-bomba não veste nenhum uniforme de soldado e não exibe nenhuma arma” (...) “a esse respeito é significativo o local em que a emboscada é colocada: o ponto de ônibus, a cafeteria, a discoteca, o mercado, a guarita, a rua, em suma, espaços da vida cotidiana” (p.63) poderíamos incluir: os bares do Leblon, as praias do Rio de Janeiro... O autor também destaca o caráter invisível da arma, que dissimulada faz parte do corpo... o que no nosso caso em tela, toma proporções literais. “O corpo não esconde apenas a arma. Ele é transformado em arma, não em sentido metafórico, mas no sentido verdadeiramente balístico” (Mbembe p.63). 

Uma guerra “corpo-a-corpo”, porém, que se difere terminantemente ao sacrifício e redenção entendido na chave Heideggeriana da morte como “libertação do terror da servidão”.  O caso brasileiro, o alistamento ao empuxo ao pior parece-nos atender (e a tender), justo ao oposto, a saber, a lógica da servidão voluntária tal como posto pro Étienne de La Boétie, submetendo-se ao tirano e dando a ele meios necessários para perpetuar sua opressão.

Assim, a política de empuxo ao pior, a transgressão da lei, e ao mais-de-gozar, produz como efeito, a dilaceração dos laços sociais. E tem trazido à luz, a face obscura de nós mesmos, materializada na banalidade do mal, culminando nos números cada vez mais elevados de produção de corpos.

 

***

 

O pensador argentino, Jorge Alemand tem promovido o debate acerca do que chamou de conjecturas sobre a esquerda lacaniana. Seu intento gira em tornoda possibilidade de pensar um projeto emancipatório a partir da psicanálise francesa. Projeto este que não se pretende todo e completo, senão, parcial, circunstancial e articulado segundo a conjuntura particular que se apresenta. Seu argumento central é que este campo de saber pode oferecer recursos que façam frente ao movimento circular do capitalismo que possui exigências impossíveis de domar. Sob a justificativa da crise, o que se presentifica é o Estado de Exceção, que promove a proliferação de vidas nuas, indivíduos matáveis.

O que se desdobra a partir daí, é a exigência do sacrifício e da renúncia em prol do acúmulo de poucos; enquanto o mercado acumula o indivíduo renuncia. Como vimos, há um ponto de gozo que une o indivíduo ao discurso, sendo ele mesmo engrenagem do sistema, participante ativo desta lógica, e por isso, comprometido com ela.

A gravidade deste sistema é que cada vez mais, o capitalismo não necessita dos laços sociais e tem ampliado os efeitos de exceção, produzindo excluídos em massa e o esmaecimento da política.  Alemand ressalta que é necessário pensar em um projeto emancipatório que leve em conta a dimensão humana, no sentido de dar lugar ao que falha, ao que manca; em última instância ao inconsciente e seus efeitos. E propõe o conceito de solidão comum, como ponto de partida.  Entendendo como comum não o caráter homogêneo e igualitário entre os homens, e sim o lugar onde a diferença pode se abrir como tal. (Machado, 2015)[13]

            Portanto, para pensar as implicações políticas da teoria psicanalítica, trazemos à cena a chamada “ferida narcísica” denominada por Freud ao afirmar que o “Eu não é senhor em sua própria morada”, referindo-se ao componente inconsciente presente na formação psíquica. Neste sentido, é preciso ter em conta a complexidade do aparelho  psíquico e principalmente, compreender que ela não está referida a lógica cartesiana, fundamentada na razão. Portanto, a referência behaviorista que o comportamento é a expressão direta da psique humana e passível de adaptação ao meio social é deficitária. Na medida em que o que está em jogo não é um organismo em oposição a realidade ou ainda, uma concepção “desajustada” a realidade. E sim, uma realidade que se forma em correlação a construção de subjetividade.

Portanto, precisamos ter em vista que, tanto a análise do cenário político atual, quanto a construção de políticas públicas aplicadas, têm de levar em conta a complexidade, e a tensão existente no aparelho psíquico, sob pena de fracasso. Ou seja, é necessário que a coluna de sustentação das práticas que visam transformação social ou comportamental, não esteja direcionada, ingenuamente, somente a simples conscientização e ampliação de informações a população. Tendo em vista que não é somente a razão que se há de atingir; É necessário, portanto, compreender a dinâmica subjetiva envolvida nas realidades sociais que se objetiva transformar, neste caso, chamar a responsabilização sob esta escolha e tratá-la como tal.

Neste caso em tela, é importante ressaltar que a transgressão que o perversos colocam em jogo ao recusar-se abrir mão de gozo, é também uma tentativa de fazer valer a lei. Em outras palavras: seu objetivo menos evidente é dar existência à Lei: fazer com que exista o Outro como lei. “O perverso, por outro lado, não deseja em função da lei. Isto é, não deseja aquilo que foi proibido, em vez disso ele tem de fazer a lei existir” (Fink, p.201. ano). E neste sentido, resta-nos a colocar a questão se a transgressão promovida nestes tempos de pandemia, no Brasil, não se trataria de um apelo perverso para a instauração da lei, ainda que para isso seja necessária a transposição de seu limite. Dado que no âmbito da governamentalidade perversa os referenciais simbólicos que deveriam sustentar o recalcamento (e seguir fazendo valer o enlace do desejo à lei) estão em ruínas. E funcionam, pelo contrário como imperativo de gozo e empuxo ao pior, fazendo esgarçar o tecido civilizatório.

É nesta direção que a análise sobre a estrutura perversa nos encaminha: em certa medida de que a transgressão da lei cumpre certa função de retirá-lo do lugar de objeto do Outro, e de algum modo, funciona como uma tentativa de restaurá-la, ainda que passado seu limite. Sendo o perverso aquele de desmente a castração, que barra o acesso a via direta de gozo, interdição necessária para a vida em comum, nos parece que aqueles que estão nas ruas, atuam nesta mesma lógica: recusam-se a abrir mão de suas satisfações, ainda que o preço a ser pago seja colocar sua própria vida em risco e aumentar o número de morte que poderiam ser evitadas[14].    

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AGAMBEM, Giorgio: Estado de Exceção 2004, Boitempo, São Paulo/SP

ALEMAN, Jorge. Horizontes neoliberales en la subjetividad. Buenos Aires: Gramma Ediciones, 2016

ARENDT, Hannah: Origens do Totalitarismo. Antisemitismo, imperialismo, totalitarismo, Cia de Bolso, São Paulo, SP 2015

COUTINHO, Jorge: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. VOL.2 A clínica da fantasia; ZAHAR, Rio de Janeiro 2010;

DE LA BÓETIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Editora Martin Claret, 2015, 3ª reimpressão

 

FREUD, Reflexões sobre o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1980;

________ Por que a Guerra? (1932) Rio de Janeiro, Imago 1980;

 

FOUCAULT, História da Sexualidade VOL. 1 A vontade de saber, Graal, São Paulo, 2005

____________ Ditos e escritos vol.1: “Problematização do Sujeito: Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise”. Ed. Forense universitária, Rio de Janeiro, 2011

LACAN, Jacques O seminário, livro 17 o avesso da psicanálise. 2007, Zahar

MBEMBE, Achille, Necropolítica, 2018, n-1edições.

MACHADO, Bárbara Breder: Política e Psicanálise (des)encontros entre Foucault e Lacan, Universidade Federal Fluminense, 2015.

ROUDINESCO, Elisabeth: “A parte obscura de nós mesmos”

Documentário: FIENES, Sophie, Guia pervertido da Ideologia, 2012

 



[1] Professora adjunta do Departamento de Psicologia UFF/ESR 

[2]  Junho 2020

[3] Julho 2020       https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020

[4] Agosto 2020        https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 acessado em 03/07/2020

[5] Por ‘governamentalidade’ entendo o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específi ca, ainda que complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por forma maior de saber a economia política, por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Segundo, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e desde muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros: soberania, disciplina, e que, por uma parte, levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, de outra parte] , ao desenvolvimento de toda uma série de saberes (Foucault, 2004a , p. 111-112).

[6]Falas do presidente da República em 2020 sobre as mortes evitáveis pela pandemia de coronavírus. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm. acessado em 03/07/2020

[7]Fala do prefeito de Itabuna, Bahia ao declarar a reabertura do comércio em 30/06/2020 disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/07/02/video-prefeito-de-itabuna-diz-que-comercio-sera-reaberto-a-partir-de-9-de-julho-morra-quem-morrer.ghtml acessado em 03/07/2020

[8]                    Elisabeth Roudinesco, 2008

[9]                    (dado que muitos trabalhadores estão impedidos de deixar seus postos de trabalho)

[10]                 Vale ressaltar que a referência a cidade do Rio de Janeiro trata-se de uma metáfora. Na medida em que a transgressão do isolamento social acontece em diversas outras cidades do país.

[11]                 Argumento desenvolvido em “diálogos interdisciplinares e indisciplinados sobre pandemia. No blog diálogos do fim do mundo  disponível em: https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2020/08/dialogos-indisciplinados-e.html

[13]                 MACHADO, Bárbara Breder: “Política e Psicanálise (des) encontros entre Lacan e Foucault, Universidade Federal Fluminense, 2015

[14] Sobre a imagem, trata-se de colagem de dois noticiários disponíveis em: Banhista lotam paria do Leblon, no Rio de Janeiro: decreto municipal liberou os ambulantes e o banho de mar, mas não a permanência na areia (Wilton Junior/Estadão Conteúdo) https://exame.com/brasil/a-pandemia-acabou-praias-lotam-no-final-de-semana-veja-fotos/ Homem derruba cruzes e ataca homenagem a vítimas da Covid-19 no Riohttps://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/homem-derruba-cruzes-e-ataca-homenagem-a-vitimas-da-covid-19-no-rio.shtml

 

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