Arquivo do blog

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cidadão, não. Engenheiro civil formado: permanências históricas e autoritarismo no Brasil

                                                                                                                       
     Escrito por Flávia Mendes (UFF) 
    
    No domingo passado, 05 de Julho, o programa de televisão Fantástico da Rede Globo fez uma reportagem mostrando os casos de desrespeito às medidas de segurança contra o Covid-19 nos bares e restaurantes da cidade do Rio de Janeiro. Três dias antes os estabelecimentos foram autorizados a reabrir, vídeos de bares lotados no bairro do Leblon com pessoas sem máscaras e outras debochando da pandemia e do vírus viralizaram nas redes sociais. A reportagem que falava dessa polêmica acabou flagrando outro caso que gerou também muita repercussão.
    Num bar na Barra da Tijuca, um casal foi abordado pelo fiscal Flávio Graça porque não usava máscara. Ao se dirigir ao homem como cidadão, ouviu da mulher: "cidadão, não. Engenheiro civil formado. Melhor do que você!" O vídeo viralizou na internet, gerou inúmeros memes e se tornou um dos assuntos mais comentados no país. O caso revela uma das várias permanências históricas que não conseguimos ainda dar conta e que nos acompanha desde a nossa formação como nação: o autoritarismo.
    A frase revela a rejeição em ser tratado como cidadão, uma compreensão que entende cidadania como algo ruim. Ora, ser cidadão é ser igual a todos, em direitos e deveres, significa que você participa da sociedade, da coletividade, e possui direitos civis, políticos e sociais. A discussão que alguns cientistas sociais fazem aqui no Brasil é sobre a afirmação dos direitos civis que são comumente questionados, enquanto teríamos avançado nos direitos sociais e políticos. Uma espécie de hierarquização da cidadania que vai pensar alguns indivíduos como melhores que outros.
    Quando a mulher do caso narrado acima afirma que seu companheiro não é cidadão, ela quis dizer que ele é melhor que os demais. Cidadãos somos todos no Estado Democrático de direito, mas ser como todos significa ser igual a todos, e igualdade não é uma marca do Brasil. A fala da mulher revela um desprezo a igualdade. E sua fala, faz parte de um discurso que nos acompanha há séculos, está inscrito numa formação discursiva autoritária. Desde a nossa formação, marcada pela escravidão, pela tortura, e pela morte de indígenas e negros, e por inúmeras violências institucionalizadas fazem parte da história do Brasil. Os abusos são inúmeros, assim como os privilégios para as elites agrárias que eram comuns no Brasil colonial, e mantiveram-se posteriormente na república para as mesmas elites que se tornaram urbanas. Durante a escravidão, poucos mandavam e muitos obedeciam. Na passagem para a república, muitas características da forma como os poderes eram organizados mantiveram-se. As políticas de controle social amplamente postas em prática durante a escravidão para manter os escravos e evitar rebeliões, foram repensadas no começo da república. Os pobres no Brasil, uma maioria de negros, ex-escravos, foram fortemente vigiados, controlados e criminalizados no começo do século XX. As experiências autoritárias deste século não ajudaram a transformar o Brasil num país mais democrático e igualitário. A recente democracia implantada após os mais de 20 anos de ditadura civil-militar, não deu conta de diminuir as desigualdades. Continuamos um país classista, racista, machista e com inúmeras desigualdades.
    Vale ressaltar que o discurso da mulher se inscreve numa genealogia de como os poderes são exercidos no Brasil. Reflete uma interpretação de como a sociedade se organiza, trata-se de um modo de pensar comum na sociedade brasileira que o antropólogo Roberto da Matta muito bem descreveu no texto "Você sabe com quem está falando?" do livro Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Essa característica demonstra como a cidadania, a igualdade entre todos, não é vista como positiva por aqui.
    Não tem como pensarmos cidadania sem o fortalecimento da democracia e diminuição das desigualdades. Somos uma sociedade profundamente desigual. Aqui, direitos básicos como moradia, saneamento básico, saúde, educação, lazer e cultura, não são garantidos para a grande maioria da população, que vive à margem de direitos essenciais. Esses direitos que deveriam ser para todos, por serem usufruídos por poucos, tornam-se privilégios de alguns, e reforça no imaginário social que esses grupos privilegiados são melhores, são superiores e devem ser tratados de forma diferenciada em toda e qualquer situação. Ao afirmar para o fiscal que o marido dela é engenheiro, e não cidadão, a mulher quis dizer que ele é superior, e por extensão, ela também é. Essa é uma interpretação autoritária de quem pensa que está numa posição social superior aos demais, merece tratamento diferenciado.
    A referência à profissão também é uma marca histórica brasileira de chamar bachareis de doutor, sobretudo os que se formavam em direito, engenharia e medicina. Durante séculos, a educação era para uma minoria, uma pequena elite, e essa hierarquização ainda se faz presente na sociedade brasileira. A democratização do acesso à educação não resolveu o problema. O acesso a Universidade ainda não é para todos, embora as políticas de cotas tenham ajudado a diminuir as desigualdades no acesso, se manter na Universidade não é fácil para os alunos mais pobres. Muitos conseguem ser aprovados, ingressam na Universidade, mas sofrem para continuar estudando por quatro, cinco anos, e muitas vezes não conseguem se formar, são obrigados a abandonar o curso. Por isso, o acesso à educação, sobretudo ao ensino superior, ainda não é igual para todos no Brasil, e a mulher do bar na Barra da Tijuca sabe disso. Se o marido faz parte desse seleto grupo de bachareis em engenharia, na compreensão dela, mais um motivo para ser tratado de forma diferenciada. Ele engenheiro, no imaginário social que ainda se mantém no país, é uma autoridade, logo, a autoridade do fiscal, foi considerada menor que a dele, e por isso a afirmação: "melhor do que você!" Numa sociedade igual em direitos e deveres, não cabe esse tipo de discurso. Para manter certas hierarquias, é necessário rejeitar a noção de cidadania. Como no Brasil ainda temos um longo caminho para a construção de uma democracia inclusiva e cidadã. O caso narrado não foi o único. Outros fiscais da vigilância sanitária também relataram ameaças. Um dos casos recentes é da fiscal Jane Loureiro que foi ameaçada por um rapaz num bar também na Barra da Tijuca que disse ser filho de um procurador e que ela perderia, nas palavras do jovem: "seu empreguinho".
    A historiadora Lilia Schwarcz em entrevista recente nos lembrou de um provérbio comum no Brasil na época colonial; "aqui, quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Quem rouba mais e esconde chega logo a visconde", é a ideia de que para os inimigos a lei, para os amigos, nada, que infelizmente, ainda existe no país.
    É importante problematizarmos o fato ocorrido porque ele reflete permanências autoritárias e a rejeição da noção de cidadania, mas é crucial entendermos que essa não é uma característica apenas nossa. O autoritarismo, a rejeição à cidadania, aos direitos humanos, não é marca apenas do Brasil. Em outros países, práticas semelhantes acontecem. Vimos e nos chocamos no último mês com o vídeo do George Floyd sendo asfixiado por um policial nos Estados Unidos, país que sempre se orgulhou de afirmar o quão democráticos são. Mas ainda é uma democracia que mata negros. Em Londres, a reabertura dos Pubs também causou aglomeração, e lá, como aqui, muitos não usaram máscaras.
    Embora o autoritarismo permaneça como característica crucial para entendermos como as relações de poder são estruturadas no Brasil, a problematização que ocorreu nos dias seguintes ao caso do engenheiro ajuda na popularização de um debate que é importante para desnaturalizar práticas como essa. Os memes e críticas que viralizaram e, muito provavelmente por este motivo, a rápida resposta da empresa que demitiu a mulher são alguns sinais de que existe ao menos um debate sendo feito, e se a prática ainda existe, a tolerância a ela parece estar menor.

Referências
ARMANDINHO. Tiras do Armandinho. Disponível em: htt://tirasarmandinho.tumblr.com Acesso em: 14 Jul. 2020.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª ed. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2012.

ECOA, Diana Carvalho de. Cidadão, não. Revolta à fala mostra que Brasil tem potencial para mudar. Uol, São Paulo: 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/07/07/cidadao-nao-revolta-a-fala-mostra-que-brasil-tem-potencial-para-mudar.htm Acesso:11 Jul. 2020

FERRAZ, Ricardo. Pubs reabrem na Inglaterra com aglomerações e cima de revanche. Revista Veja, 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/pubs-reabremna-inglatera-com-glomeracoes-e-clima-de-revanche/ Acesso: 11 Julh. 2020

MATTA, Roberto da. Você sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indiv;iduo e pessoa no Brasil. In: Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:Rocco, 1997.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.













3 comentários:

  1. Muito obrigada por apresentar esse tópico muito congruente. Me acrescentou como ser humano.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom o texto!!!!! Ótima reflexão!!!

    ResponderExcluir
  3. Ótimo texto, ele nos oferece a oportunidade para outras reflexões. Infelizmente o conceito de cidadania/cidadão é desconhecido por muitas pessoas em nosso país . Algumas lamentáveis atitudes adotadas por inúmeras pessoas revelam o que foi colocado no título desse texto - permanências. Reconhecer que atitudes contra afrodescendentes acontecem em várias partes do nosso continente e em países com situações socioeconômicas bem distintas é muito triste e revela o atraso de algumas sociedades. Gostaria de destacar a referência bibliográfica, muito boa.

    ResponderExcluir