
Escrito por Flávia Mendes (UFF)
No domingo passado, 05 de Julho, o programa
de televisão Fantástico da Rede Globo fez uma reportagem mostrando
os casos de desrespeito às medidas de segurança contra o Covid-19
nos bares e restaurantes da cidade do Rio de Janeiro. Três dias
antes os estabelecimentos foram autorizados a reabrir, vídeos de
bares lotados no bairro do Leblon com pessoas sem máscaras e outras
debochando da pandemia e do vírus viralizaram nas redes sociais. A
reportagem que falava dessa polêmica acabou flagrando outro caso que
gerou também muita repercussão.
Num bar na Barra da Tijuca, um casal foi
abordado pelo
fiscal Flávio Graça porque não usava máscara. Ao se dirigir ao
homem como cidadão, ouviu da mulher: "cidadão, não.
Engenheiro civil formado. Melhor do que você!" O vídeo
viralizou na internet, gerou inúmeros memes e se tornou um dos
assuntos mais comentados no país. O caso revela uma das várias
permanências históricas que não conseguimos ainda dar conta e que
nos acompanha desde a nossa formação como nação: o autoritarismo.
A
frase revela a rejeição em ser tratado como cidadão, uma
compreensão
que entende cidadania como algo ruim. Ora, ser cidadão é ser igual
a todos, em direitos e deveres, significa que você participa da
sociedade, da coletividade, e possui direitos civis, políticos e
sociais. A discussão que alguns cientistas sociais fazem aqui no
Brasil é sobre a afirmação dos direitos civis que são comumente
questionados, enquanto teríamos avançado nos direitos sociais e
políticos. Uma espécie de hierarquização da cidadania que vai
pensar alguns indivíduos como melhores que outros.
Quando
a mulher do caso narrado acima afirma que seu companheiro não é
cidadão, ela quis dizer que ele é melhor que os demais. Cidadãos
somos todos no Estado Democrático de direito, mas ser como todos
significa ser igual a todos, e igualdade não é uma marca do Brasil.
A fala da mulher revela um desprezo a igualdade. E sua fala, faz
parte de um discurso que nos acompanha há séculos, está inscrito
numa formação discursiva autoritária. Desde a nossa formação,
marcada pela escravidão, pela
tortura,
e pela
morte
de indígenas e negros, e
por inúmeras
violências institucionalizadas fazem parte da história do Brasil.
Os abusos são inúmeros, assim como os privilégios para as elites
agrárias que eram comuns no Brasil colonial, e mantiveram-se
posteriormente na república para as mesmas elites que se tornaram
urbanas. Durante a escravidão, poucos mandavam e muitos obedeciam.
Na passagem para a república, muitas características da forma como
os poderes eram organizados mantiveram-se. As políticas de controle
social amplamente postas em prática durante a escravidão para
manter os escravos e evitar rebeliões, foram repensadas no começo
da república. Os pobres no Brasil, uma maioria de negros,
ex-escravos, foram fortemente vigiados, controlados e criminalizados
no começo do século XX. As experiências autoritárias deste século
não ajudaram a transformar o Brasil num país mais democrático e
igualitário. A recente democracia implantada após os mais de 20
anos de ditadura civil-militar, não deu conta de diminuir as
desigualdades. Continuamos
um país classista, racista, machista e com inúmeras desigualdades.
Vale
ressaltar
que o discurso
da mulher se inscreve numa genealogia de como os poderes são
exercidos no Brasil. Reflete uma interpretação de como a sociedade
se organiza, trata-se de um modo de pensar comum na sociedade
brasileira que o antropólogo Roberto da Matta muito bem descreveu
no texto "Você sabe com quem está falando?" do livro
Carnavais,
malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
Essa característica
demonstra como a cidadania, a igualdade entre todos, não é vista
como positiva por aqui.
Não
tem como pensarmos cidadania sem o fortalecimento da democracia e
diminuição das desigualdades. Somos uma sociedade profundamente
desigual. Aqui, direitos básicos como moradia, saneamento básico,
saúde, educação, lazer e cultura, não são garantidos para a
grande maioria da população, que vive à margem de direitos
essenciais. Esses direitos que deveriam ser para todos, por serem
usufruídos por poucos, tornam-se privilégios de alguns, e reforça
no imaginário social que esses grupos privilegiados são melhores,
são superiores e devem ser tratados de forma diferenciada
em toda e qualquer situação. Ao afirmar para o fiscal que o marido
dela é engenheiro, e não cidadão, a mulher quis dizer que ele é
superior, e por extensão, ela também é. Essa é uma interpretação
autoritária de quem pensa que está numa posição social superior
aos demais, merece tratamento diferenciado.
A
referência à profissão também é uma marca histórica brasileira
de chamar bachareis de doutor, sobretudo os que se formavam em
direito, engenharia e medicina. Durante séculos, a educação era
para uma minoria, uma pequena elite, e essa hierarquização ainda se
faz presente na sociedade brasileira. A democratização do acesso à
educação não resolveu o problema. O
acesso a Universidade ainda não é para todos, embora as políticas
de cotas tenham ajudado a diminuir as desigualdades no acesso, se
manter na Universidade não é fácil para os alunos mais pobres.
Muitos conseguem ser aprovados, ingressam na Universidade, mas
sofrem para continuar
estudando por quatro, cinco anos, e muitas vezes não conseguem se
formar, são obrigados a abandonar o curso. Por isso, o acesso à
educação, sobretudo ao ensino superior, ainda não é igual para
todos no Brasil, e a mulher do bar na Barra da Tijuca sabe disso. Se
o marido faz parte desse seleto grupo de bachareis em engenharia,
na compreensão dela, mais um motivo para ser tratado de forma
diferenciada. Ele engenheiro, no imaginário social que ainda se
mantém no país, é uma autoridade, logo, a autoridade do fiscal,
foi considerada menor que a dele, e por isso a afirmação: "melhor
do que você!" Numa sociedade igual em direitos e deveres, não
cabe esse tipo de discurso. Para manter certas hierarquias, é
necessário rejeitar a noção de cidadania. Como no Brasil ainda
temos um longo caminho para a construção de uma democracia
inclusiva e cidadã. O
caso
narrado não foi o único. Outros fiscais da vigilância sanitária
também relataram ameaças. Um dos casos recentes é da fiscal Jane
Loureiro que foi ameaçada por um rapaz num bar também na Barra da
Tijuca que disse ser filho de um procurador e que ela perderia, nas
palavras do jovem: "seu empreguinho".
A
historiadora Lilia Schwarcz em entrevista recente nos lembrou de um
provérbio comum no Brasil na época colonial; "aqui, quem rouba
pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Quem rouba mais e
esconde chega logo a visconde", é a ideia de que para os
inimigos a lei, para os amigos, nada, que infelizmente, ainda existe
no país.
É
importante problematizarmos o fato ocorrido porque ele reflete
permanências autoritárias e a rejeição da
noção de cidadania, mas é crucial entendermos que essa não é uma
característica
apenas nossa. O autoritarismo, a rejeição à cidadania, aos
direitos humanos, não é marca apenas do Brasil. Em
outros países, práticas semelhantes acontecem. Vimos e nos chocamos
no último mês com o vídeo do George Floyd sendo asfixiado
por um policial nos Estados Unidos, país que sempre se orgulhou de
afirmar o quão democráticos são. Mas ainda é uma democracia que
mata negros. Em Londres, a reabertura dos Pubs também causou
aglomeração, e lá, como aqui, muitos não usaram máscaras.
Embora
o autoritarismo permaneça como característica
crucial para entendermos como as relações de poder são
estruturadas no Brasil, a problematização que ocorreu nos dias
seguintes ao caso do engenheiro ajuda na popularização de um debate
que é importante para desnaturalizar práticas como essa. Os memes e
críticas que viralizaram e, muito provavelmente por este motivo, a
rápida resposta da empresa que demitiu a mulher são alguns sinais
de que existe ao menos um debate sendo feito, e se a prática ainda
existe, a tolerância a ela parece estar menor.
Referências
ARMANDINHO.
Tiras do Armandinho. Disponível em:
htt://tirasarmandinho.tumblr.com
Acesso
em: 14 Jul. 2020.
CHALHOUB,
Sidney. Visões
da liberdade:
uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CHALHOUB,
Sidney. Trabalho,
lar e botequim:
o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª
ed. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2012.
ECOA, Diana Carvalho de. Cidadão, não.
Revolta à fala mostra que Brasil tem potencial para mudar. Uol,
São Paulo: 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/07/07/cidadao-nao-revolta-a-fala-mostra-que-brasil-tem-potencial-para-mudar.htm Acesso:11
Jul. 2020
FERRAZ, Ricardo. Pubs reabrem na Inglaterra
com aglomerações e cima de revanche. Revista
Veja, 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/pubs-reabremna-inglatera-com-glomeracoes-e-clima-de-revanche/ Acesso:
11 Julh. 2020
MATTA, Roberto da. Você sabe com quem está
falando? Um ensaio sobre a distinção entre indiv;iduo e pessoa no
Brasil. In: Carnavais, malandros
e heróis: para uma sociologia
do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:Rocco, 1997.
SCHWARCZ,
Lilia Moritz. Sobre
o autoritarismo brasileiro.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Muito obrigada por apresentar esse tópico muito congruente. Me acrescentou como ser humano.
ResponderExcluirMuito bom o texto!!!!! Ótima reflexão!!!
ResponderExcluirÓtimo texto, ele nos oferece a oportunidade para outras reflexões. Infelizmente o conceito de cidadania/cidadão é desconhecido por muitas pessoas em nosso país . Algumas lamentáveis atitudes adotadas por inúmeras pessoas revelam o que foi colocado no título desse texto - permanências. Reconhecer que atitudes contra afrodescendentes acontecem em várias partes do nosso continente e em países com situações socioeconômicas bem distintas é muito triste e revela o atraso de algumas sociedades. Gostaria de destacar a referência bibliográfica, muito boa.
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