Greve de trabalhadores na Volkswagen durante a Ditadura
Escrito por Flávia Mendes
No livro “O que resta da ditadura” organizado por
Edson Teles e Vladimir Safatle, embora tenha em seu título uma afirmação, nos
indaga a pensar: afinal, o que resta da Ditadura? O próprio livro nos responde:
resta tudo, menos a Ditadura (SAFATLE; TELES, 2010). Em abril do próximo
ano o golpe militar-civil-empresarial fará 60 anos e a herança deixada daqueles
21 anos em que os militares estiveram no poder não deve ser deixada de lado e
esquecida, pelo contrário, deve ser pesquisada e denunciada, para que seja
feita justiça de reparação e para que não sendo esquecida, a história não se
repita. Comprometidos com os direitos humanos, um grupo formado por mais de 55
pesquisadores de diversas Universidades do país pesquisaram dez empresas
durante um ano e meio no projeto “Responsabilidade de empresas por violações de
direitos durante a Ditadura” coordenado pelos professores da Unifesp, Edson
Teles, Carla Osmo e Marília Calazans.
A ditadura não foi apenas
militar. Sabemos que teve apoio civil e empresarial. Afirmar que a ditadura
também foi empresarial significa que empresas e empresários foram cúmplices do
regime autoritário brasileiro imposto entre os anos de 1964 a 1985. No projeto
citado acima, foram pesquisadas a Petrobras, Companhia Docas de Santos, Itaipu,
Companhia Siderúrgica Nacional – CSN – Aracruz Celulose, Folha de São Paulo,
Fiat, Paranapanema, Josapar e Cobrasma Cada empresa investigada tinha um professor
coordenador além de uma equipe de pesquisadores.
O financiamento das pesquisas veio do processo
vitorioso que levou a um acordo extrajudicial envolvendo a Volkswagen, que
firmou em 2020 um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC – com pagamento de R$
36 milhões destinados à reparação das vítimas da Ditadura e outra parte
destinada a projetos de memória e reparação. Desse total, R$ 2 milhões foram
direcionados para que o projeto das dez empresas citadas acima fosse
desenvolvido, numa parceria entre o Ministério Público Federal – MPF
– Ministério Público do Estado de São Paulo – MPSP
– e o Centro de Antropologia Forense – Caaf – da
Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.
Também estão sendo investigadas as empresas Belgo
Mineira, Mannesmann e Embraer, a partir dos recursos de outro TAC firmado entre
o MPF e a Companhia Energética de São Paulo em virtude da companhia não ter
cumprido as condições exigidas para implementação do Parque Estadual Rio do
Peixe. Essas últimas pesquisas tem previsão de terem seus relatórios entregues
em Dezembro de 2023.
No caso da Volkswagen, a partir das denúncias dos
trabalhadores da empresa que se organizaram numa associação de vítimas, foram
apuradas denúncias de violações com comprovações e testemunhos sobre a
violência que ocorria no período da ditadura dentro das fábricas da empresa,
assim como a participação da Volks na polícia política da ditadura, no
Departamento de Ordem Política e Social – Dops – e perseguição a trabalhadores.
As dez empresas investigadas tiveram seus
relatórios entregues há poucos meses, além da publicização de aspectos
relevantes de cada pesquisa feita no I Seminário Ditadura, Empresas e Violações
de Direitos, realizado na Unifesp entre os dias 05 e 07 de Junho deste
ano, e também no documento intitulado Informe Público
disponibilizado no site do Caaf (https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/).
Sobre as empresas investigadas por violações aos
direitos humanos que já tiveram seus respectivos relatórios entregues, há
indícios de prisão, tortura e morte de trabalhadores (inclusive no interior das
empresas), formação de listas sujas de demitidos, expulsão de indígenas,
quilombolas e colonos de suas terras para dar lugar a empreendimento
empresarial.
No Brasil, a legislação impede que empresas sejam
processadas criminalmente, então o caminho para buscar reparação é a área
cível. As exceções são os crimes ambientais, contra a ordem econômica e à
economia popular, por isso, tortura, mortes e remoção forçada de indígenas e
quilombolas não se encaixam. Outra abordagem criminal que dificulta a reparação
é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de 2010 que julgou a Lei de
Anistia Constitucional.
Os relatórios foram entregues ao Ministério Público
para que apure se há indícios de violação à lei por cada uma das empresas e, se
for o caso, propor ações judiciais de responsabilização, mas também outros
atores podem a partir dos relatórios abrir uma ação contra as empresas.
Importante ressaltar, que as pesquisas não esgotam o assunto e nem chegaram a
conclusões finais, pelo contrário, visam desdobramentos e o estímulo a novas
pesquisas no campo da justiça de transição sobre as relações empresariais com o
período ditatorial.
Do ponto de vista acadêmico as pesquisas foram
desenvolvidas com muita inovação no que diz respeito às metodologias
utilizadas. Devido a dificuldade de acesso aos dados, cada grupo de
pesquisadores criou estratégias e caminhos muitas vezes inovadores para ter
acesso a informações, testemunhas, documentos e reportagens da época. Um dos
objetivos do trabalho era criar uma metodologia, já que as apurações eram
feitas não sobre um indivíduo, nem o Estado, em vários casos era um ente
privado, e a dificuldade de acesso aos arquivos era grande, assim como a
dificuldade das testemunhas darem depoimentos. Por isso, foi importante a
criação de estratégias metodológicas, inclusive, porque existem outras empresas
que ainda não foram investigadas e também tiveram relações com a ditadura,
assim como o fato de que existem violações que permanecem até os dias atuais e
não foram encerradas com a redemocratização.
Em várias investigações as empresas privadas
argumentaram não terem mais os arquivos, e no caso das empresas estatais os
documentos foram enviados para arquivos públicos, onde o acesso também não era
fácil porque ou não estão organizados ou se perderam. No caso das empresas
estatais que foram privatizadas o argumento é que não são mais a mesma empresa,
não tem mais domínio e nem obrigação sobre o que fizeram (TELES, 2023).
Os resultados preliminares receberam a tipificação
de violações considerando os diferentes grupos atingidos, como trabalhadores da
empresa; povos indígenas, quilombolas ou camponeses (UNIFESP, 2023,
p. 10). Quase todas as pesquisas tiveram enorme dificuldade de acesso aos
arquivos da empresa investigada e em todos os casos os relatórios entregues não
significam o encerramento da investigação, uma vez que há muito ainda para ser
apurado (OLIVEIRA, 2023).
De maneira geral é possível afirmar que o principal
motivo para apoio das empresas à ditadura era econômico, mais que político e
ideológico. É importante pensar, por exemplo, que diversos sindicatos eram
fortes até 1964, e essas organizações causavam problemas para as empresas
expandirem, terem mais lucros e benefícios econômicos. A ditadura colaborou
para a destruição da organização dos trabalhadores (TELES, 2023).
Não basta a gente ter acesso à memória e à verdade
e não fazer disso um ato de reparação. O acesso a essas histórias é fundamental
pra gente entender o que nós somos enquanto país, enquanto sociedade, o que nós
somos enquanto Estado de direito, na medida em que, na transição da ditadura
para a democracia, isso não foi abordado e essas relações permaneceram. Agora,
insisto, só vai ter efeito se a gente juntar o direito à memória e à verdade
com o direito à justiça. É preciso fazer dessas informações um ato de justiça
(TELES, 2023).
O
que se espera é que outras empresas sejam investigadas e que o país construa
memória, verdade e justiça sobre esse violento período da nossa história. Nesse
sentido, as pesquisas tiveram como motivação o compromisso com os direitos
humanos, e um olhar de esperança que enxerga a justiça no horizonte.
Referências bibliográficas
OLIVEIRA, Marcelo. As 12 empresas investigadas por seus elos com a
ditadura. Nexo Jornal, Julho de 2023. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2023/07/06/As-12-empresas-investigadas-por-seus-elos-com-a-ditadura Acesso
em 30 Set. 2023.
TELES, Edson. Empresas cúmplices da ditadura: É preciso fazer das
informações um ato de justiça (entrevista cedida a Thiago Domenici). Agência
Pública. Disponível em: https://apublica.org/2023/05/empresas-cumplices-da-ditadura-e-preciso-fazer-das-informacoes-um-ato-de-justica/ Acesso
em 01 Out. 2023.
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura:
a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Universidade Federal de são Paulo , 2023. Centro de Antropologia
Forense, projeto Responsabilidade de empresas por violações de direitos
durante a ditadura. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf Acesso
em 27 Set. 2023.
Universidade Federal de São Paulo, 2023. Centro de Antropologia
Forense. Disponível em https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/ Acesso
28 Set. 2023.
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