Arquivo do blog

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Não era depressão, era capitalismo*

                                                                                                                                  






     Texto escrito por Flávia Mendes - Doutora em Ciência política (UFF) 

*Pichação no Chile durante as manifestações de 2019



No período de 40 anos, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos de 1980, a depressão tornou-se a principal forma de sofrimento de nossa época. A afirmação do professor e psicanalista Christian Dunker (2021, p. 177) não apresenta nenhuma novidade porque basta um olhar mais atento para os sujeitos de nossa própria convivência que perceberemos que sim, cada vez mais este é o diagnóstico recebido quando os sintomas do sofrimento aparecem. No entanto, o fato do diagnóstico tornar-se recorrente leva a uma naturalização e individualização que parece deslocar a depressão da vida social. A questão que gostaria de levantar nesse breve texto é a relação da depressão com a sociedade que vivemos. O que teria a ver a depressão com a forma de vida que nos é imposta, com a economia e a política? Tudo. O sofrimento é uma característica do momento que vivemos e a hipótese que apresento aqui é que a depressão é uma patologia social (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018).

O atual modelo econômico, o neoliberalismo, não é apenas uma teoria econômica, uma mutação do capitalismo dos anos 1970, pensado por Milton Friedman e seus alunos, conhecidos como Chicagos Boys. O neoliberalismo não é apenas uma nova fase do capitalismo que favorece a financeirização das empresas, o capitalismo imaterial, que naturaliza a existência de uma taxa “natural de desemprego”, fim da presença do Estado garantindo políticas de acesso a médico, moradia, saúde, educação, ele é o retorno da mão invisível do mercado dos primeiros anos do liberalismo e por isso seu nome, neoliberalismo, mas ele é também um modelo de valorização do consumo como formador de identidade e com ele, uma importante transformação é que o sofrimento deixou de ser um problema que atrapalhava o desenvolvimento do trabalhador nas fábricas para ser produzido e administrado para aumentar o desempenho, e “é isso que caracteriza o neoliberalismo no contexto das políticas de sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização”. (DUNKER, 2021, p. 182).

O neoliberalismo não se limita a área econômica, para existir, precisa criar um estilo de vida, ou seja, com novos sujeitos que vivam suas vidas num formato neoliberal. Nesse sentido, sendo todos nós sujeitos dessa época, somos atravessados por essa ideologia, alguns mais que outros, mas somos todos, em alguma medida, sujeitos neoliberais. E o sujeito neoliberal é – ou precisa ser – um sujeito produtivista. Tem que ser proativo, porque esse sujeito quer ser o herói, o vencedor, dono de si. Ou pelo menos precisa pensar que é. Margareth Thatcher afirmou que “a economia é o método. O objetivo é mudar o coração e alma”. (THATCHER apud SAFATLE, 2021, p.24). Para transformar mentes e corações foi preciso reeducar os indivíduos para que se enxergassem como empreendedores de suas próprias vidas a partir da noção de que a racionalidade econômica imposta é a única forma de racionalidade possível.

O professor de filosofia da USP Vladimir Safatle em capítulo escrito no livro que organizou com os psicanalistas e também professores da USP, Christian Dunker e Nelson da Silva Júnior, Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, publicado pela editora Autêntica (2021) observa que é uma falácia acreditar que o Estado torna-se mínimo no neoliberalismo, ao contrário, é necessário um Estado forte em diversas áreas para impor o modelo econômico que retira direitos, fragiliza os laços sociais, retira de todos a possibilidade de organização e planejamento da vida a longo prazo, porque a impermanência torna-se característica de uma época. Se por um lado o Estado deixa de garantir políticas públicas que garantam aposentadoria, universalização da saúde e acesso à educação, por outro lado esse Estado mantém o controle social e as políticas punitivistas. Nesse sentido, a intervenção do Estado não deixa de acontecer, mas ela se dá de outra forma que não mais aquela do modelo keynesiano.

A transformação da escassez em dado evidente só pode ser produzida através da absorção, pelo discurso econômico, da força disciplinar da crença na vulnerabilidade da vida, em sua fragilidade constitutiva. Crença que é fundamental para certa moral e uma circulação de afetos fundados no medo e capazes de motivar a ação em direção ao trabalho compulsivo e à poupança. (SAFATLE, 2021, p. 21).

Para essa “engenharia social” (SAFATLE, 2021, p. 25) funcionar foi necessário uma enorme intervenção social e a despolitização da sociedade, para que as ideias de empreendedorismo, de empresário de si mesmo, e livre-iniciativa reinassem absolutas. Necessário, portanto, o esvaziamento de sindicatos, associações e toda forma de organização coletiva que pudesse se contrapor a este modelo. O neoliberalismo cria um discurso que circula na mídia, nas redes sociais, nas pedagogias escolares, nos discursos políticos, cria uma ideia de normalidade de toda exploração e sofrimento que o capitalismo nos moldes neoliberais nos impõe. Nos acostumamos a passar mais tempo trabalhando que fazendo qualquer outra coisa da vida, a falarmos de trabalho nos horários de lazer, a termos menos direitos trabalhistas que as gerações passadas, a nos sentirmos culpados se não estamos produzindo, pensar no trabalho ou na falta dele no caso das pessoas sem emprego, do momento que acordamos ao momento que vamos dormir, tratar como empreendedor o desempregado que sem condições de ter como pagar as contas e garantir a manutenção da vida torna-se vendedor ambulante, ou vendedor de qualquer outra coisa que consiga criar apenas para não passar fome, acreditar que os trabalhadores de aplicativos são livres e donos do seu tempo, que na empresa onde trabalhamos somos um time, uma família e devemos vestir a camisa da equipe. Passar o horário de almoço trabalhando, almoçar em meio a reuniões – algo muito normalizado nesse tempo pandêmico de trabalho remoto. Aplicar nas escolas pedagogias para os alunos serem produtivos e adaptáveis, corpos dóceis que aceitem sem reclamação tudo que for solicitado, e no caso de sentir tristeza, o próprio sujeito sentir-se culpado porque além de produzir incessantemente é preciso ser feliz, temos que performar.

O sofrimento de viver numa sociedade neoliberal não é individual, porque viver numa sociedade onde nos sentimos todo o tempo vulneráveis, onde os laços sociais são cada vez mais frágeis, onde o Estado que não se apresenta com políticas públicas, antes, retira direitos que foram conquistados com muita luta. Viver com inúmeras incertezas sobre o que será do amanhã são questões sociais que afetam a todos, mas como o sofrimento é sentido por cada na sua particularidade e o diagnóstico clínico é dado individualmente, esse sofrimento torna-se um problema do sujeito.

As modalidades neoliberais de intervenção ocorreram em dois níveis, no social e no psíquico, e se aceitarmos que a vida psíquica é um setor da vida social, então não podemos separar a forma como os processos sociais nos fazem sofrer e compreender que “não sofremos da mesma forma dentro e fora do neoliberalismo” (SAFATLE, 2021, p. 33). Nesse sentido, a frase pichada durante as manifestações que ocorreram em 2019 no Chile nos chama atenção para o fato de que vivemos numa época que nos causa dor e sofrimento.


Referências bibliográficas

DUNKER, Christian. A hipótese depressiva. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento. SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (org.) 1.ed.2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

DUNKER, Christian. Depressão é sofrimento compatível com o neoliberalismo. Entrevista DW, 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/depressão-é-sofrimento-compat%C3%ADvel-com-o-neoliberalismo/a-56653922 Acesso em 28 Jun. 2021.

KEHL, Maria Rita. Depressão e neoliberalismo. Encontros Latespfip, 2016. Youtube Christian Dunker. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cRDdV-_w0P4 Acesso em 29 Jun. 2021.

SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (org.) Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

SAFATLE, Vladimir. A economia moral neoliberal e seus descontentes. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento. SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson da Silva; DUNKER, Christian (orgs.) 1.ed.2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. 

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. È uma boa explicação, mas na ciência precisamos analisar outras tbm. Nesse sentido, quem te parece + deprimido: 1) a pessoa que tem autodisciplina, é proativa e consegue bens a longo prazo pra si e seus próximos; ou 2) a pessoa presa a desejos imediatistas de "não se reprima" que foi convencida que o mundo é um Dark Fantasy do mal, que nada presta, que qualquer coisa que faça é opressão?

    Desde sempre foi preciso autodisciplina e trabalho duro pra sobreviver (infinitamente mais no passado, alias, do que hoje), mas se nossos antepassados sobreviviam a guerras, hoje o sujeito se deprime por conta de um olhar ou palavra torta. Pq será heim? Será q essa depressão subiu nos anos 80 por conta da ascensão de alguma ideologia deprimente?

    Será que a pessoa pode ser feliz quando é privada do bem de poder ajudar o próximo, do bem de consumir e decidir seu destino, e tem de pegar o dinheiro com que ajudaria os mais pobres e o dinheiro que usaria pra consumir e dar todo esse seu dinheiro nas mãos do socialista pra ele, com toda sua boa intenção, "ajudar" os mais pobre no lugar dele e cuidar da vida dele no lugar dele?

    ResponderExcluir
  3. Excelente texto Flávia Mendes!Parabéns! Estamos, sim, vivendo num modelo capitalístico neoliberal periférico patriarcal e necropolítico. Somente as lutas sociais podem criar modos de ativismo que rompem estas barreiras.

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto! Dias sombrios estamos vivendo com essa necropolitica e tudo em nome do lucro e da economia, não importa o custo.

    ResponderExcluir