Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)
Poucas são as obras que
nascem com a marca da eternidade, que são por assim dizer, um "clássico de
nascença", ou melhor dizendo, que a despeito das inúmeras mudanças históricas
processadas no tempo tenham conservado a originalidade e a importância conceitual
do período em que foram produzidas. Tão importante hoje quanto da década de
1970, a obra Poliarquia: participação e oposição, de autoria do
cientista político estadunidense Robert Dahl (1915-2014), não perdeu o seu brilho de origem
após cinco décadas em relação à primeira edição. Talvez não seja exagerado afirmar
que a mensagem democrática que perpassa o conjunto da obra se reveste de certa
imprescindibilidade teórica numa época balizada por certos arroubos
autoritários de poder. Se é possível sugerir um telos que lastreia a Poliarquia é imperativo situá-la como um esforço sistemático de
racionalização centrada no rigor analítico e na exposição responsável de dados
empíricos a partir de um aparato conceitual complexo em sua simplicidade
elementar.
Sem que soe como exagero,
parto da simples ideia de que a Poliarquia se tornou de modo definitivo
um patrimônio conceitual da Ciência Política, e por extensão, das Ciências
Sociais. A meu ver, nenhum outro autor dos últimos cinquenta anos contribuiu de
modo mais significativo do que Robert Dahl para o engrandecimento do léxico
técnico da moderna análise política. Neste quesito em particular, sigo o
percurso trilhado por Norberto Bobbio que definiu por clássico todo autor em
que se pode atribuir o conjunto das três características fundamentais (2000, p.
130-131): a) que seja considerado como um intérprete autêntico do seu próprio
tempo, cuja obra seja empregada como um instrumento indispensável para sua
compreensão; b) que a sua leitura se mantenha atual com o passar dos anos, e
que cada geração subsequente procure reinterpretá-la à luz das novas
circunstâncias; e c) que tenha produzido teorias-modelo que nos valemos no
nosso cotidiano acadêmico para a compreensão da realidade, ainda que o conceito
em questão seja aplicado em um contexto distinto da realidade do autor
angariando com o decorrer do tempo o estatuto de categoria mental para explicação
de um conjunto de fenômenos. Diante dos fatores apontados, Poliarquia é
não somente um clássico da Ciência Política Contemporânea, mas se constitui
como referência obrigatória de qualquer pesquisa séria acerca dos processos de
democratização sucedidos no século XX.
Valendo-se de variáveis palpáveis
que possibilitam ao pesquisador a comparação entre os diferentes regimes
políticos mundo afora, Dahl se preocupou com o processo de transição de formas
autoritárias de governo para regimes centrados na participação popular e na
liberalização da sociedade. Se a discussão sobre o processo de transição
de regimes não é algo novo na literatura política (basta lembrar das passagens de
Aristóteles na Política ainda no século IV a.C), coube a Robert Dahl destrinchar
as principais teses acerca da transição democrática do pós-guerra apresentando
uma contribuição inovadora apartada de posições de natureza culturalista erigida
em torno de premissas imutáveis e anticientíficas.
A própria compreensão
sobre a natureza e os limites acerca da democracia contemporânea passou por um
ponto de inflexão a partir dos escritos do cientista político estadunidense. Para
não cair num atoleiro semântico, Dahl entendia por poliarquia aquela forma de
governo que se mantém continuamente responsiva em relação às demandas e
preferências dos cidadãos considerados como politicamente iguais. A democracia,
em seu modo de ver, constituía um ponto de chegada, ou melhor dizendo, um limite teórico. Nesse sentido, preferiu o autor se afastar do termo democracia por
entender que o mundo atual, habitado por homens e mulheres modernos, se apresenta
como uma pobre aproximação do ideal democrático da Antiguidade. Mais do que uma
mera mudança terminológica, o conceito de poliarquia se incorporou, de tal modo,
ao jargão técnico da Ciência Política que hoje em dia é quase impossível passar
sem ele em um congresso ou evento acadêmico de peso.
Em uma época caracterizada
pelo retrocesso democrático em vários países do globo, inclusive no Brasil, com
a ascensão de uma agenda autoritária capitaneada por grupos políticos de
extrema direita, a obra Poliarquia preserva um ethus democrático
envolto em uma análise rigorosa sobre os processos de democratização a partir
do uso de variáveis políticas. Se coube a Maquiavel demarcar o divórcio entre a
política e a ética, ou mesmo, entre a política e a religião, coube, por sua
vez, ao cientista político Robert Dahl inovar na explicação da passagem de
regimes hegemônicos para as chamadas poliarquias plenas desvinculadas de
critérios não políticos, como o suposto vínculo em relação à teoria da modernização
(Seymour M. Lipset) ou mesmo à ocorrência de alianças de classe em face de
processos históricos concretos (Barrington Moore Jr). Assim, podemos afirmar que o poder de fascínio da obra se encontra em cada página e releva a
possibilidade de comparar os regimes à luz de elementos eminentemente políticos.
Todo aquele estudante principiado no domínio da Ciência Política ou na grande
área de Ciências Sociais deve na sua formação acadêmica ter lido este clássico
quinquagenário pelo menos uma vez na vida sob o risco de cassação do diploma.
Exageros à parte, o fato é que esta pequena grande obra é tão importante hoje
quanto na época em que foi escrita.
Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a
filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
DAHL, Robert. A moderna análise política. São
Paulo: Lidador, 1970.
DAHL, Robert. Poliarquia: participação e
oposição. Prefácio Fernando Limongi; tradução Celso Mauro Paciornik. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo: 2005.
HELD, David. Modelos de Democracia. Belo
Horizonte: Editora Paideia, 1987.
MACPHERSON, C.B. A democracia liberal.
Origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
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