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quarta-feira, 21 de julho de 2021

Os cinquenta anos da obra Poliarquia de Robert Dahl (1971-2021)

 



Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)

 

Poucas são as obras que nascem com a marca da eternidade, que são por assim dizer, um "clássico de nascença", ou melhor dizendo, que a despeito das inúmeras mudanças históricas processadas no tempo tenham conservado a originalidade e a importância conceitual do período em que foram produzidas. Tão importante hoje quanto da década de 1970, a obra Poliarquia: participação e oposição, de autoria do cientista político estadunidense Robert Dahl (1915-2014), não perdeu o seu brilho de origem após cinco décadas em relação à primeira edição. Talvez não seja exagerado afirmar que a mensagem democrática que perpassa o conjunto da obra se reveste de certa imprescindibilidade teórica numa época balizada por certos arroubos autoritários de poder. Se é possível sugerir um telos que lastreia a Poliarquia é imperativo situá-la como um esforço sistemático de racionalização centrada no rigor analítico e na exposição responsável de dados empíricos a partir de um aparato conceitual complexo em sua simplicidade elementar.

Sem que soe como exagero, parto da simples ideia de que a Poliarquia se tornou de modo definitivo um patrimônio conceitual da Ciência Política, e por extensão, das Ciências Sociais. A meu ver, nenhum outro autor dos últimos cinquenta anos contribuiu de modo mais significativo do que Robert Dahl para o engrandecimento do léxico técnico da moderna análise política. Neste quesito em particular, sigo o percurso trilhado por Norberto Bobbio que definiu por clássico todo autor em que se pode atribuir o conjunto das três características fundamentais (2000, p. 130-131): a) que seja considerado como um intérprete autêntico do seu próprio tempo, cuja obra seja empregada como um instrumento indispensável para sua compreensão; b) que a sua leitura se mantenha atual com o passar dos anos, e que cada geração subsequente procure reinterpretá-la à luz das novas circunstâncias; e c) que tenha produzido teorias-modelo que nos valemos no nosso cotidiano acadêmico para a compreensão da realidade, ainda que o conceito em questão seja aplicado em um contexto distinto da realidade do autor angariando com o decorrer do tempo o estatuto de categoria mental para explicação de um conjunto de fenômenos. Diante dos fatores apontados, Poliarquia é não somente um clássico da Ciência Política Contemporânea, mas se constitui como referência obrigatória de qualquer pesquisa séria acerca dos processos de democratização sucedidos no século XX.

Valendo-se de variáveis palpáveis que possibilitam ao pesquisador a comparação entre os diferentes regimes políticos mundo afora, Dahl se preocupou com o processo de transição de formas autoritárias de governo para regimes centrados na participação popular e na liberalização da sociedade. Se a discussão sobre o processo de transição de regimes não é algo novo na literatura política (basta lembrar das passagens de Aristóteles na Política ainda no século IV a.C), coube a Robert Dahl destrinchar as principais teses acerca da transição democrática do pós-guerra apresentando uma contribuição inovadora apartada de posições de natureza culturalista erigida em torno de premissas imutáveis e anticientíficas.

A própria compreensão sobre a natureza e os limites acerca da democracia contemporânea passou por um ponto de inflexão a partir dos escritos do cientista político estadunidense. Para não cair num atoleiro semântico, Dahl entendia por poliarquia aquela forma de governo que se mantém continuamente responsiva em relação às demandas e preferências dos cidadãos considerados como politicamente iguais. A democracia, em seu modo de ver, constituía um ponto de chegada, ou melhor dizendo, um limite teórico. Nesse sentido, preferiu o autor se afastar do termo democracia por entender que o mundo atual, habitado por homens e mulheres modernos, se apresenta como uma pobre aproximação do ideal democrático da Antiguidade. Mais do que uma mera mudança terminológica, o conceito de poliarquia se incorporou, de tal modo, ao jargão técnico da Ciência Política que hoje em dia é quase impossível passar sem ele em um congresso ou evento acadêmico de peso.

Em uma época caracterizada pelo retrocesso democrático em vários países do globo, inclusive no Brasil, com a ascensão de uma agenda autoritária capitaneada por grupos políticos de extrema direita, a obra Poliarquia preserva um ethus democrático envolto em uma análise rigorosa sobre os processos de democratização a partir do uso de variáveis políticas. Se coube a Maquiavel demarcar o divórcio entre a política e a ética, ou mesmo, entre a política e a religião, coube, por sua vez, ao cientista político Robert Dahl inovar na explicação da passagem de regimes hegemônicos para as chamadas poliarquias plenas desvinculadas de critérios não políticos, como o suposto vínculo em relação à teoria da modernização (Seymour M. Lipset) ou mesmo à ocorrência de alianças de classe em face de processos históricos concretos (Barrington Moore Jr). Assim, podemos afirmar que o poder de fascínio da obra se encontra em cada página e releva a possibilidade de comparar os regimes à luz de elementos eminentemente políticos. Todo aquele estudante principiado no domínio da Ciência Política ou na grande área de Ciências Sociais deve na sua formação acadêmica ter lido este clássico quinquagenário pelo menos uma vez na vida sob o risco de cassação do diploma. Exageros à parte, o fato é que esta pequena grande obra é tão importante hoje quanto na época em que foi escrita.  

 

Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

DAHL, Robert. A moderna análise política. São Paulo: Lidador, 1970.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Prefácio Fernando Limongi; tradução Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2005.

HELD, David. Modelos de Democracia. Belo Horizonte: Editora Paideia, 1987.

MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.


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