Escrito por Leonardo Almeida (UNEMAT)[i]
A
partir de uma tomada histórica que considere o desenvolvimento e o crescente
caráter de complexificação que as sociedades e os modelos de democracia
modernas assumem, grande parte do conjunto da teoria política moderna aceita
sem maiores considerações a ideia de que a utilização da democracia direta e de
seus possíveis mecanismos acessórios foram sendo paulatinamente considerados
como inviáveis de serem estabelecidos em poleis
complexas e amplas em seus aspectos territoriais e populacionais. Deste
modo, a representação política termina por ser aceita como o principal
mecanismo para a deliberação dos temas de domínio público no mundo moderno.
Entretanto, a explicação de que o tamanho das populações e dos territórios das
comunidades políticas do mundo moderno e industrial tornam inviáveis quaisquer formas
de participação política diferente da representativa, é um viés explicativo que
simplifica fenômenos que são muito mais amplos e complexos, dado que a inserção
do dispositivo da representação política não foi uma mera decorrência histórica
de um aumento demográfico e/ou da expansão dos territórios.
O
ponto central para o qual apontamos neste contexto é o de não negligenciar os
contatos que as instituições políticas consagradas estabelecem com outras esferas
sociais. Pois, mais do que viabilizar o exercício do poder político em nome da
coletividade em sociedades extensas, numerosas e complexas, o que se verifica é
que o dispositivo da representação política através do método eleitoral possui
uma afinidade eletiva com a amortização das demandas colocadas por este novo
escopo do demos, o qual não é mais
restrito à composição que possuía em períodos de pré-sufrágio, outrora
masculino, adulto, proprietário e livre.
O viés liberal de democracia encontrou na
ideia de representação a maneira com maior eficácia para manter o prisma da
liberdade sobreposto ao da igualdade, dada a preocupação central dos teóricos
clássicos do liberalismo com o direito de propriedade, pois centram a ideia de
liberdade no indivíduo, e com isso coloca em outro plano a dimensão da
igualdade. Ellen Wood, em Democracia
contra capitalismo (2003), traz que a introdução da representação nos
circuitos democráticos não teria sido meramente em razão da impossibilidade de
se exercer a democracia direta em territórios extensos, mas que buscava, de
fato, reduzir a pressão popular nos governos, garantindo, por outro lado, a
presença e a prevalência de interesses originários das elites dominantes.
Quando
da experiência helênica, de fato, apesar da restrição em relação a quem eram os
portadores dos direitos políticos – pois
não existia a perspectiva de inclusão de mulheres, estrangeiros e escravizados,
por exemplo, que resultavam na maior parte da população – quem governava
diretamente era de fato, os que eram entendidos como sendo o povo, os titulares dos direitos
políticos em seu conjunto. Neste contexto, eleições e parlamento são
dispositivos estranhos a esse experimento grego originário e, deste modo,
considerados aristocráticos até, pelo menos, o século XVIII (MIGUEL, 2014).
Resumidamente,
podemos dizer que este modelo de democracia liberal moderna consagra a
democracia, seus valores e obrigações mais elementares confinados ao sistema
político, enquanto entende o mercado e o sistema econômico como se fosse uma zona livre de democracia. Mesmo com esse
mínimo de democracia que se vinculou às instituições políticas consagradas, nas
esferas sociais para além da esfera política, a maioria das formas de sociabilidade
estão marcadas por relações desiguais e autoritárias de privação de direitos
sociais, civis e econômicos básicos, mesmo que ladeadas pela democracia política. Este fenômeno é um
dado que resulta de uma construção fruto da disputa pelo significado do
conceito de democracia em sociedades onde o capitalismo também insurgia, o que
resultou no confinamento dos ideais democráticos ao sistema político, em seus
vieses representativo e eleitoral.
Há fatores de viés econômico externos na
relação entre os países centrais e os periféricos que fazem com que decisões no
centro do capitalismo terminem por ser impostas a países em desenvolvimento,
suplantando decisões tomadas em matéria eleitoral nessas nações. Um exemplo
contemporâneo mais específico é a ideia de autonomia ou independência dos bancos
centrais nacionais. Na Europa, o Banco Central Europeu dita verticalmente as
políticas e regras de austeridade para a maioria dos países do bloco formado
por pequenas economias, em especial as do Leste e do Sul do continente.
Atualmente, então, é possível que um governante eleito esteja pleno de direito,
mas esvaziado de fato, do poder do qual foi investido, já que este tem migrado
fortemente para a esfera econômica, seja antes das eleições, através do
financiamento privado – regulamentado ou não – de campanhas e de partidos
políticos, seja durante os mandatos através de ações de lobby, ou ainda através
do controle e concentração da propriedade dos meios de comunicação. No contexto
brasileiro recente, um Banco Central independente
– tal qual a Emenda Constitucional 95/2016 que impõe um teto de gastos em
especial para a área social como a educação, a saúde e a assistência social por
um período de 20 anos – representa que a política econômica de uma sociedade
deva ser levada à frente com o mínimo de interferências populares ou mesmo do
campo político institucional, ou seja, distante de anseios populares eventualmente
manifestados nas eleições. Desta forma, por mais distorções que a representação
política e o método eleitoral possam provocar, até deste mínimo de democracia o
mercado capitalista contém uma força centrífuga para se esquivar. Dessa
maneira, a economia produz e mantém instituições que viabilizam esse pacto colonial da esfera econômica sobre
o sistema político e sobre o de intensidade já rebaixada, consenso democrático.
Essa
distinção entre política, entendida como o único ente responsável pela defesa e
efetivação dos mecanismos de promoção da igualdade, em oposição ao mercado,
entendido como o campo da promoção da liberdade e isento de responsabilidades
igualitárias é outro grande fosso legado pela teoria liberal ao longo dos
últimos séculos. A diminuição da coesão social, o aumento do ódio de classe, o
racismo, a exacerbação dos nacionalismos e da xenofobia, bem como a emergência
de políticos e de correntes políticas com base nos valores segregacionistas são
resultado desta relação tensa entre democracia e capitalismo. Os mecanismos de
mercado não precisam, em tese, dar conta dos convulsionamentos que provocam em
termos sociais.
Se é verdade que por um lado as eleições livres, universais e iguais contribuíram com determinados avanços específicos, como no caso para o surgimento deste Estado de Bem Estar Social (MARSHALL, 1967), por outro, essa conquista teve por efeito a desmobilização de espaços de luta social fora do campo político, já que toda insatisfação ou satisfação poderia ser exposta através do voto periodicamente, retirando assim, do horizonte de imaginação política dos progressistas do campo democrático, um ordenamento institucional pós-capitalista. E aqui podemos somar às correntes socialistas, também as trabalhistas, as socialdemocratas, as ambientalistas, as feministas etc. Essa isenção de democracia que o mercado e o sistema econômico recebem no capitalismo moderno, portanto, é uma construção que visa permitir, se não ampliar, os fundamentos sobre o qual o sistema está colocado, como o lucro, a propriedade privada e a acumulação de capital. O aprofundamento da democracia neste contexto provoca, de maneira intensa ou mesmo superficial, algum nível de ameaça a estes fundamentos e por isso a intensificação da democracia se configura necessariamente como uma ameaça ao capitalismo moderno, pois que de algum modo ameaçará a lucratividade, a produção da mais-valia, a propriedade individual, a acumulação de um capital cada vez mais financeirizado.
Referências Bibliográficas:
AGUILÓ, A., & ALMEIDA, L. (2021). Teoría de la Democracia de
Boaventura de Sousa Santos: Radicalización y Descolonización Democrática.
In: Utopía Y Praxis Latinoamericana, 27 (94), 256-271.
Disponível em:
https://produccioncientificaluz.org/index.php/utopia/article/view/36123 Acesso
em: 28/07/2021.
MARSHALL, T.H. Cidadania,
classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.
MEDEIROS, Marcelo. A desigualdade no Brasil é disfuncional para
a democracia. [Entrevista] Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/04/politica/1446611627_268265.html
Acesso em: 22/07/2021.
MIGUEL, L. F. Democracia e representação: territórios em
disputa. 1ª ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2014.
WOOD, Ellen. Democracia contra
capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Boitempo, 2003.
[i]
Sociólogo
e Cientista Político. Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
Nenhum comentário:
Postar um comentário