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domingo, 10 de dezembro de 2023

Diálogos em Memórias com Gisele Almeida

 

Foto: Acervo pessoal da professora Gisele Almeida

Entrevistada: Profª Drª Gisele Maria Ribeiro de Almeida[i]

 

Thaymara Assis: Qual a sua principal memória da UFF Campos?

Gisele Almeida: Eu acho que foi a memória do concurso. Eu já tinha estado no espaço da UFF porque o meu companheiro já era professor da UFF enquanto eu ainda estava no doutorado. Ele se mudou para Campos primeiro, eu fiquei entre Campinas e Campos até terminar os créditos do doutorado. Então, o espaço físico não era estranho para mim, mas a primeira vez que eu venho à UFF como pesquisadora foi para prestar o concurso para professora substituta no final de 2013. Eu me lembro das colegas que também estavam participando do processo seletivo, porque não era uma vaga para professora efetiva. Se chama seleção simplificada, que é um processo seletivo e não um concurso. Eu me lembro da gente no bloco da secretaria esperando sair o resultado e as notas das provas que nós tínhamos feito.

Thaymara Assis: Como você acha que a UFF Campos refletiu na sua trajetória enquanto professora e pesquisadora?

Gisele Almeida: Eu diria que refletiu e segue refletindo continuamente. Eu passei o ano de 2014 praticamente todo como professora substituta. Em algum momento teve concurso para professora efetiva, eu prestei, fiquei em segundo lugar e não fui chamada. Aí teve uma vacância e eu como segunda colocada do concurso acabei sendo chamada, mas isso já foi dezembro de 2014. Para mim, as memórias são confusas entre professora substituta e professora efetiva, é difícil eu me separar porque eu vivi tudo como algo único. Quando cheguei para dar aula, eu tinha bastante experiência de sala de aula no ensino superior. Eu fui professora, só com o mestrado, no interior de São Paulo, em uma cidade que se chama Itapeva, no sul do Estado. Eu também fui professora na cidade de Santos, em uma universidade particular que tem lá. E nessas duas universidades eu dei aula para vários cursos. Em Santos, em particular, eu dei aula de Sociologia e Antropologia da Saúde para cursos de Fisioterapia e Enfermagem. Então, quando eu vim dar aula na UFF eu tive aquela sensação de presente, no sentido da dádiva, porque era a possibilidade de dar aula para alunos de Ciências Sociais. Isso eu nunca tinha tido porque eu dava aula de Sociologia para outros cursos, o curso mais próximo da nossa formação de Ciências Sociais foi Relações Internacionais que eu dava em Santos. Mas eu dava para Administração e era aquela sociologia para falar de gerenciamento de conflitos no ambiente de trabalho, que eu não considero tão interessante, até mesmo pelo público. A disciplina de Sociologia do Direito, por exemplo, que apesar do tema ser muito interessante, o alunado é muito conservador e com isso tinha muita disputa. Então, quando cheguei aqui foi essa alegria de estar dando aula para o curso de Ciências Sociais e estar em uma universidade pública. Eu fui formada por uma universidade pública, então para mim era muito importante essa relação com o ensino e aprendizagem que não se confundia com mercadoria. Nas faculdades particulares, mesmo quando são boas, há essa questão das regras. Em Santos, por exemplo, se o aluno faltasse na prova ele tinha que pagar para fazer a prova substitutiva. Não importava o motivo, a pessoa podia ter faltado porque ficou doente e ter um atestado ou ela podia ter faltado porque simplesmente não estudou e não quis ir. Eu achava isso muito errado: por que uma pessoa que faltou com a justificativa de estar doente tem que pagar para poder fazer uma prova substitutiva? Eu achava isso um absurdo! Enfim, não vou dar todos os exemplos que eu poderia dar, mas para te colocar o prazer em estar em um ambiente que eu considerava que seria próximo ao da minha formação que foi na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que é uma universidade referência, então agora eu estou no meu ambiente, no meu habitat.

Claro que houve várias coisas muito interessantes. Eu tive uma turma em que eu dava aula de Teoria Sociológica II. Acho que foi uma das turmas mais prazerosas que eu tive na minha vida porque era um momento de realmente discutir os textos. Foi uma experiência de muito aprendizado para mim de ler aquele texto com eles e com elas, da gente discutir e finalizar a aula dez horas da noite em uma sexta-feira, mesmo podendo sair a hora que quisesse, pois, a lista de presença já havia sido passada. Então, essas experiências foram muito importantes para mim, eu aprendi muito. Mas por outro lado, o que eu também fui vendo é que essa turma, por exemplo, era exceção. Era uma turma que tinha pessoas mais velhas, tinha uma parcela significativa que não sofria muitas situações de vulnerabilidade socioeconômica e eu fui vendo que o que para mim era o mínimo, por exemplo, o aluno ir com o texto lido para sala de aula. Eu já entendia que o aluno não conseguia ler, já aceitava porque já tinha experiência com o ensino superior, mas eu pensava que era como eu fazia. Quando não tinha lido o texto, eu ia para a aula com o texto e ficava tentando acompanhar, ler, prestar atenção e ter o texto para eu saber que ia ler depois. Então, quando eu comecei a me deparar com essas situações do aluno não ter o texto ou escrever trabalhos muito mal escritos, eu entrei em uma situação de cobrança e pensava: “aqui é uma universidade pública e os alunos precisam de uma formação séria, então, eu preciso puxar o nível e não nivelar por baixo”. Então, eu fui percebendo e aprendendo que eu tinha uma visão muito elitizada do acesso ao ensino superior. Eu não tinha o entendimento ainda do impacto das políticas de expansão de acesso às universidades, sobretudo federais, para a entrada de um contingente de jovens que vinham de contextos muito marcados por situações diversas de violências simbólicas, condições econômicas insuficientes para a manutenção deles na cidade, sobretudo, esse contexto de alunos vindo de outras cidades para uma universidade que não tem moradia estudantil, não tem restaurante universitário e onde as bolsas são escassas. Então foi um processo, para mim, transformador entender que eu não podia seguir com a referência do que tinha sido a minha graduação em Economia na Unicamp, que ainda era mais elitista que as Ciências Sociais. Eu fiz as disciplinas das Ciências Sociais simultaneamente. No meu mestrado e doutorado, foi que eu decidi ir para a Sociologia mesmo. Os alunos de Ciências Sociais tinham menos carros do que os da Economia, mas não era uma situação do aluno não ter dinheiro para ir ao restaurante universitário ou não ter dinheiro para fazer uma xérox com frequência. Eu tinha bolsa e eu não vinha de uma família pobre, mas vinha de uma família que fechava as contas na ponta do lápis, então acontecia às vezes de eu fazer a xerox ao invés de comprar o livro que estava caro. Mas é completamente outra situação que a gente encontra aqui e eu comecei a me questionar sobre essa postura que eu entendia como pedagógica que era estimular com que esses alunos e alunas se esforçassem muito. Eu me lembro de uma aula que coloquei uma reportagem de uma revista feminina, a Marie Claire, sobre violência doméstica e era um texto jornalístico panfletário com um conteúdo como: “A cada 5 minutos uma mulher é violentada, isso é um absurdo, não podemos tolerar!” e depois mostrei um texto acadêmico, com os resultados de uma pesquisa sobre violência doméstica que começava a discutir gênero, patriarcado, definir o que era violência doméstica, então eu fui mostrando e questionando “Vocês estão vendo a diferença? Esse texto é jornalístico, não é Ciências Sociais” e os alunos ficaram olhando para mim sem entender a proposta. Eu achava que fazer isso era uma maneira de estimular com que eles procurassem se empenhar mais, estudar mais, se dedicar mais à leitura, à escrita e eu não conseguia, naquele momento, entender como isso se somava a mais um episódio de violência simbólica que essas pessoas já vivenciavam no seu cotidiano de outras formas. Então assim, da minha formação elitizada, da minha posição de classe eu trazia como normalidade um padrão de identificação, ao estudo, a maneira de entender o que é esforço e como podemos nos esforçar com os contextos específicos e tão delicados que ali se faziam presente. Isso foi um processo que começou nesse momento e que hoje eu sou uma outra pessoa. Para começar que eu disponibilizo todos os textos de forma digital, teve uma época que eu ainda fazia pasta concomitantemente, mas agora que é o mesmo preço imprimir ou xerox eu deixo digital porque eu entendo que as pessoas não têm dinheiro para fazer xerox. E essa questão de reconhecer os limites e as possibilidades desse perfil de alunado, então não é com esse discurso de identificação, de ir atrás que eu iria ajudar essas pessoas a seguirem nas suas formações com rigor e compromisso, eu iria ter que recorrer a outras ferramentas pedagógicas. Por exemplo, eu sempre tive aulas centradas em ferramentas dialógicas, nunca fui aquela professora que fica sentada na frente falando, o que a gente chama de modelo francês de educação “os alunos que me acompanhem”. Eu sempre fui de lousa, de ficar em pé, de falar, estimular que as pessoas participassem e trouxesse dúvidas. Mas hoje eu entendo que a maneira como você faz isso pode inibir certas perguntas, colocações, falas, ou seja, não é só dizer “Quem tem alguma dúvida?” ou que “Agora, eu estou abrindo a discussão”. É construir um ambiente em que as pessoas possam se sentir confortáveis e acolhidas para trazerem as suas dúvidas. Então, para mim, esse é o processo de transformação que eu vivi aqui e eu gosto muito de pensar como até meu próprio percurso como pesquisadora.

No meu doutorado, eu estudei a imigração brasileira com destino a França. Por que eu escolhi a França? Tinha um contexto dos países em que tinha crescido a comunidade brasileira que era: Bélgica, Alemanha e França. E foi um crescimento muito significativo, os números são pequenos se você comparar com o contingente de brasileiros nos Estados Unidos, no Japão ou até mesmo em Portugal. Não são números que chegam perto, mas em termos de crescimento sim. A França, por exemplo, tinha saltado de 10 mil para 30 mil, depois para 50 mil e eu comecei a pensar “Nossa, o que está acontecendo aqui?”. Tinham esses três países que eu me lembro bem, mas eu acabei escolhendo a França porque eu já estudava francês também não posso esquecer minha questão como socióloga, apesar de ter feito Economia. Eu me considero socióloga, não entendo nada de Economia. Pela formação que eu acabei tendo e essa questão dos intelectuais franceses. A gente tem uma influência grande do pensamento francês, sobretudo, na sociologia que a gente lê e se forma aqui no Brasil. É claro que também houve comigo nesse meu processo de seleção, o fato do alemão eu nunca ter estudado, eu acho uma língua difícil. Eu já tinha uma dificuldade com francês que ainda é um pouco semelhante, o alemão que os fonemas são mais distantes. Mas o fato é que independente de eu ter escolhido a França ou não, a minha forma de estudar esse fenômeno ainda foi muito marcada por um olhar colonial de ver a França, de analisar a política migratória francesa como uma contradição entre o país que se dizia precursor dos direitos humanos e as políticas migratórias restritivas.

Eu acabei de lançar a minha tese de doutorado. Eu a transformei em livro e eu não tinha condições de mudar o trabalho todo, mas eu fiz um parágrafo na introdução. E quando eu fui lançar o livro em dois eventos acadêmicos, eu trago essa autocrítica. Eu não consegui olhar como muitos projetos migratórios que tomavam a França como esse lugar de referência, como esse olhar estava marcado por noções de colonialidade, assim como, eu mesma estava marcada por concepções centradas nessa herança colonial ao não ter conseguido problematizar e analisar esse fenômeno como eu faria hoje pensando, por exemplo, a hierarquia das nações. Quem vai estudar na França diz: “Queria estudar na França porque é o berço do conhecimento”. Então assim, são coisas que eu não conseguia problematizar, naquele momento, em 2013 que eu escrevo, como hoje eu problematizo. Hoje, por exemplo, eu estou estudando a imigração de mulheres em Portugal pelo eixo analítico da colonialidade de gênero. Para resumir, o que a UFF me transformou foi ter aprendido com essa experiência e com alunas, eu tenho vários alunos muito queridos, mas, sobretudo, neste primeiro momento foram algumas alunas mulheres que me propiciaram o contato com essa leitura do que era a UFF Campos, o que significava a presença delas aqui, de onde elas tinham vindo, quais eram os desafios, e isso mexeu muito comigo em termos de pensar mesmo. Isso acabou causando um movimento de transformação analítica que me levou a realmente adotar outros referenciais, seja para dar aula ou fazer pesquisa.

Foto: Acervo pessoal da professora Gisele Almeida

Thaymara Assis: Eu me identifico apesar de ser aluna, o modo como eu enxergo a vida mudou completamente quando cheguei aqui. Eu sou a aluna que não tem dinheiro para a xerox. Na verdade, eu nunca tive. O seu discurso é muito bonito porque autoavaliação é algo tão necessário para a gente se tornar alguém bom, alguém que é prazeroso conhecer.

Gisele Almeida: Quando eu ainda estava na graduação, eu fui assistir uma palestra de psicanálise porque eu tinha um monte de amigo que fazia Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. Eu fui assistir a palestra sobre o amor na psicanálise e a psicanalista estava falando sobre o livro O banquete de autoria de Platão. Ela acabou a fala dela afirmando “Ou se aprende a amar, ou se fica esperando”. Para resumir, na ideia do Platão nós somos seres faltantes, esferas cindidas e a concepção do amor é esse encontro com a outra parte como se fosse a figura do yin yang que se encaixa perfeitamente. Só que tem uma questão que esse encontro é idealista demais e o debate era sobre isso, que amar significava refletir e problematizar que tipo de amor a gente queria ter. Aprender amar passava por aprender amar as imperfeições, a incompletude, essa falta, inclusive, com a gente mesmo. Então o que eu acho que tenho é buscar esse encontro com o outro, talvez isso que você falou de ser uma pessoa legal para conhecer. Eu acho que eu tenho tido essa busca de tentar ir ao encontro do outro porque eu acho isso o mais radical que a gente pode viver em termos de amorosidade. Mas nem sempre é fácil. Talvez se perguntar para as pessoas que moram comigo se eu sou tudo isso e vão falar que não, pelo dia a dia. E é isso, não é porque falei todas essas coisas que um dia eu não vou ser uma professora intransigente, que um dia vou falar uma besteira porque nós também somos feitos dessas falhas e tenho aprendido a acolher as falhas. Eu falo isso porque eu era bem mais rigorosa antes de ser mãe. Não tolerava um dia de atraso e era rigorosa com isso. Eu planejava tudo, na primeira aula eu já tinha todos os conteúdos, todas as datas de avaliação, descontava nota se atrasasse. Eu era educada, solícita e sempre comprometida com meu trabalho como docente, mas rigorosa. E aí fui mãe e minha vida descambou. Minha filha nasceu prematura, ela ficou um tempo na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), demorou a ir para a escolinha porque não quis mandar com seis meses, pois prematuro tem o sistema imunológico mais comprometido, então esperei fazer um ano para mandar para escola. Mas mesmo ela tendo ido com um ano e três meses, foi só começar a escola que ela teve uma doença atrás da outra, aquelas doenças de criança. Então assim, não tinha como eu ficar naquele rigor, eu mesma chegava me perguntando do que era a aula, porque tinha virado a noite controlando a febre dela. Isso me tornou mais flexível com os alunos e alunas porque eu também tive que me tornar mais flexível comigo. Depois veio a pandemia e foi o ápice disso. Eu pensava “eu, como professora, que estou com meu dinheiro caindo na conta, podendo fazer isolamento social em casa, que ninguém está doente ou passando sufoco, estou completamente transtornada, o que dirá os alunos que às vezes estão trabalhando, com gente doente em casa, o pai desempregado, tem que ir ao mercado escolher se compra sabonete ou iogurte”. Para mim, esse processo é muito saudável, se permitir falhar e isso faz com que a gente acolha melhor a falha do outro.

 

 



[i] Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes. Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

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