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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

O que Doria tem a nos dizer?

Vitor Vasquez[1]

Aline Atassio[2]



Em entrevistas recentes[3] João Doria (PSDB-SP) tem analisado a política brasileira sob uma perspectiva que permite algumas reflexões sobre o nosso sistema político como um todo. Afinal, nenhum campo do espectro político-partidário escapa ao seu escrutínio, uma vez que o tucano traça considerações sobre a esquerda, o centro e a direita. Neste texto, destacamos alguns assuntos abordados por Doria e conjecturamos como suas interpretações se conectam ao atual cenário de competição partidária no Brasil e, ao mesmo tempo, deixa em aberto possibilidades de atuação, bem como os próximos passos a serem adotados pelas elites políticas.

Sobre o atual governo, o autodeclarado ex-político teceu elogios à gestão petista, destacando o bom desempenho em setores como economia e meio ambiente, além de apresentar Lula como um possível pacificador, isto é, alguém capaz de acabar com a vigente polarização política e, consequentemente, restabelecer o centro político no país. Essa análise elogiosa ao principal partido de esquerda do Brasil pode surpreender, mas sugere uma interessante interpretação da competição política, sobretudo se considerarmos a atenção dada à pacificação e reocupação do centro. Doria parece compreender que o PT é o adversário que estrutura a disputa partidária e, portanto, o inimigo a ser batido. Porém, para fazer isso, é preciso colocar-se enquanto adversário viável, posição que, pelo menos eleitoralmente, vem sendo ocupada pela extrema direita nos últimos anos. Assim, antes de competir com o PT é preciso disputar um eleitorado que, ao menos por ora, associa-se a preferências políticas típicas da direita.

Entretanto, ao tentar se diferenciar da direita radical, Doria pareceu um pouco confuso, ainda que tenha indicado alguns caminhos. Uma parcela significativa do PSDB tentou surfar na onda bolsonarista nos últimos anos, com o próprio Doria fazendo a famosa chapa BolsoDoria. Doria reconhece que isso foi um erro individual ao fazer uma autocrítica (em certo momento ele afirma que pediria desculpas a Lula) como também um equívoco partidário, alertando que o PSDB perdera quase metade de suas prefeituras nas últimas eleições municipais. Por essa interpretação, Doria aparenta compreender que uma retomada do PSDB - e dele mesmo - rumo ao centro seria uma estratégia mais inteligente de competição, sobretudo para voltar a ser o antagonista histórico do PT.

Por outro lado, e esta é a parte ainda nebulosa, Doria, ao mesmo tempo em que tenta se distanciar da extrema direita, acena positivamente ao governo de Tarcísio em São Paulo, especialmente em relação aos seus compromissos com a economia liberal, enfatizando "aspectos técnicos" nas tomadas de decisão e a política de privatização encampada pelo republicano, que visa principalmente Sabesp, metrô e CPTM. E, ainda que ele traga críticas em relação à retirada das câmeras instaladas nos uniformes dos policiais militares do estado, ele adjetiva positivamente o secretário da educação e o classifica como bem intencionado, apesar de afirmar que ele (o secretário) cometeu erros e agiu de forma apressada.

Em suma, por um lado, Doria demarca um território tradicionalmente caro ao PSDB no que diz respeito às pautas econômicas. Por outro lado, se opõe à forma de fazer política do bolsonarismo e aos valores bolsonaristas. Ao combinar estas duas posições, acaba vinculando-se aos políticos que defendem o neoliberalismo, independente de onde se situam no espectro político, como no caso de Tarcísio, que foi ministro da infraestrutura durante o governo Bolsonaro. Finalmente, Doria fez críticas ao seu próprio partido, afirmou que pretende permanecer fora da vida pública e considerou que, embora Bolsonaro esteja politicamente fragilizado, o bolsonarismo - e a extrema direita - continua forte, ao aguardo de uma nova liderança capaz de aglutiná-los.

As entrevistas revelam lucidez de Doria com o cenário político nacional e paulista. Ele parece preocupar-se com a bolsonarização do PSDB, demarcada pelo discurso anti-sistema e anti-política que pouca relação tem com o partido que foi um dos principais competidores do sistema político brasileiro até recentemente. Nesse sentido, retoma nomes como o de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Aloísio Nunes, Mário Covas e do próprio atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, para trazer ao debate políticos profissionais tradicionais exitosos em angariar votos de eleitores localizados na centro-direita. Políticos que se distanciam inclusive do seu próprio perfil de apresentação, o que indica uma autocrítica de Doria a esse respeito.

Shantal Mouffe, cientista política belga, escreveu em O Regresso do Político (1996), que um dos efeitos do (neo)liberalismo foi fazer com que a política, em sua essência, fosse não apenas esquecida, mas também execrada. João Doria, já na eleição para prefeitura de São Paulo em 2016, foi o expoente do modelo político que negava a política e o fazer-político, adotando como contraponto uma proposta de gestão, associada ao mercado, exatamente o que Mouffe aponta como uma ameaça à democracia.

A  fala de Doria conclama o PSDB ao regresso do fazer-político, através da lembrança de alguns de seus principais quadros históricos. A aventura BolsoDoria custou-lhe caro e acreditamos que tenha sido uma nítida ilustração de como aventuras com políticos do baixo-clero ou não-profissionais podem conformar uma ameaça ao próprio sistema democrático. Caso aprenda com o próprio exemplo, o antigo político-gestor, se for voltar à competição eleitoral, deve retornar como político essencial. Pelo menos é o que suas falas mais recentes permitem inferir.

 

Bibliografia

Mouffe, Chantal. O regresso do político. Gradiva: Lisboa, 1996.



[1] Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

[2] Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

[3] Fontes: UOL: https://www.youtube.com/watch?v=gxaadwezcDw ; e Brasil 247: https://www.youtube.com/watch?v=F855vLcJRY4 . Acesso em: 13 out. 2023. 


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