Escrito por Ricardo Bruno Ferreira (UFF)
Um dos paradigmas mais recorrentes da
historiografia brasileira é o que se refere à gradualidade da abolição. Estes
trabalhos se utilizam frequentemente da legislação a respeito do tema como
marco temporal, como, por exemplo, a Lei Eusébio de Queiros (1850), a Lei do
Ventre Livre (1871) e a Lei Áurea (1888). Nos primeiros estudos sobre a
abolição já se via este tipo de periodização, como o trabalho de João Luiz
Alves (1916) que dividiu a história parlamentar em três fases. Na década de 1970,
Paula Beiguelman (1976), seguindo a teoria da gradualidade, dividiu o processo
de abolição em fases distintas, cujo marco temporal seria a legislação.
Em importante trabalho sobre o tema, Jaime
Rodrigues (2000) procurou demonstrar que a gradualidade da abolição se
configurou como um projeto político que teve origem no início do século XIX.
Este, no entanto, era um projeto dentre outros possíveis. Há assim uma
historicidade na vitória deste projeto que merece ser ao mesmo tempo entendida
e desvinculada da análise historiográfica. O autor não nega a importância da
legislação como elemento transformador da relação senhor-escravo. Rodrigues
reconhece que a doutrina da abolição gradual predominou nos estudos históricos,
o que acabou por se tornar um problema quando se trata em analisar o fim do
tráfico. A partir desta perspectiva, deveria se evitar um ponto de vista
retrospectivo em relação ao assunto procurando discutir a questão do tráfico de
modo específico. À época, a elite política ao se deparar com o problema da
abolição se utilizava de expedientes para evitar uma solução imediata deixando
para o futuro a questão. Não havia assim, uma relação direta de causalidade
entre o fim do tráfico e a política da abolição.
A partir de uma perspectiva comparada, Seymour
Drescher (2011) confrontou o processo de abolição sucedido no Brasil com outros
ocorridos no continente americano. Para Drescher, a extinção do tráfico no ano
de 1850 representou uma derrota dos setores ligados à lavoura. A classe
senhorial, reconhecendo a inevitabilidade da emancipação, procurou adiar ao
máximo uma solução definitiva para a escravidão[i].
Por sua vez, Rebecca Scott (1991), autora de um importante trabalho sobre a
abolição em Cuba, afirmou que a gradualidade não era entendida como uma alternativa
para a preservação indefinida do trabalho escravo, mas acima de tudo, como uma
forma de impedir a emancipação imediata.
Na primeira metade do século XIX, verifica-se o
aparecimento de diversas propostas em torno da abolição e do fim do tráfico.
Dentre os defensores do fim do tráfico de africanos, muitos eram contrários à
abolição. Não se vê, desta forma, um vínculo direto entre essas duas teses.
Para muitos autores, o fim do tráfico não era
entendido como uma etapa do processo de abolição, mas, pelo contrário, como uma
medida de fortalecimento do sistema (RODRIGUES, 2000, p. 80): “homens como
Henrique Rebelo encaravam essa medida como um fortalecimento da escravidão por
meio da reprodução endógena, sem a dependência regular de um fluxo contínuo de
africanos atravessando o oceano”. A manutenção da escravidão dependia do
controle sobre os trabalhadores e da imposição da disciplina de modo a corrigir
a “corrupção dos costumes” proporcionada pelos africanos.
Abrolharam no decorrer do século XIX algumas
propostas para a introdução no país do trabalhador imigrante. Em meados da
década de 1840, o Visconde de Abrantes defendeu a colonização estrangeira no
Brasil a partir do ingresso de trabalhadores europeus. Dentre as medidas
destinadas à promoção da colonização estrangeira estava a doação de terras.
Para Abrantes, a doação de terras a entes particulares consistiu num total
fracasso. Sua proposta visava à doação de terras a companhias de colonização
que promovessem a entrada de trabalhadores europeus. Buscava-se, deste modo,
uma alternativa ao trabalho escravo duramente afetado com o fim do tráfico e
com a adoção de medidas restritivas. Segundo Abrantes, a escravidão era um
flagelo que fazia com que todo estrangeiro achasse o trabalho manual no Brasil
algo degradante.
Conclui-se assim que não havia uma correspondência
direta entre o fim do tráfico de africanos e a emancipação de escravos. No
decorrer dos oitocentos pulularam algumas propostas emancipacionistas que não
se enquadravam na perspectiva gradualista então em voga. A partir dos
argumentos expostos, segue-se a trilha de pensar que o fim do tráfico de
escravos propiciado pela Lei Eusébio de Queiroz não deve ser entendido como uma
etapa necessária para a culminância do processo de abolição concluído em 1888.
Esta perspectiva se balizou de um modo geral em uma análise retrospectiva
acerca da história ao operar de forma cumulativa, causal e linear.
Referências
Bibliográficas:
ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ALVES,
João Luís. A questão do elemento servil. A extinção do tráfico e a
lei de repressão de 1850. Liberdade dos nascituros. Rio de Janeiro: RIHGB,
1916.
BEIGUELMAN,
Paula. Formação política do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1976.
COSTA,
Emília Viotti da. A abolição. 8ª ed. São Paulo: Editora UNESP,
2008.
DRESCHER,
Seymour. Abolição: Uma história da Escravidão e do Antiescravismo.
São Paulo: Editora UNESP, 2011.
RODRIGUES,
Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do
tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da
UNICAMP/CECULT, 2000.
SCOTT,
Rebecca J. Emancipação Escrava em Cuba: a transição para o trabalho
livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
[i] Marquês
de Olinda dissera certa vez em sessão realizada no Conselho de Estado no ano de
1866 que “a escravidão é uma chaga que se deve tocar”. O ex-ministro do Império
se notabilizou por assumir uma defesa intransigente a favor do direito de propriedade.
O problema da emancipação deveria ser deixado de lado, para ser resolvido em um
futuro distante, de modo a não fustigar os ânimos dos abolicionistas dispostos tanto
no Parlamento como na sociedade em geral.
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