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terça-feira, 9 de novembro de 2021

O tráfico de africanos e a dimensão política da abolição

 

Fonte: Jean Baptiste Debret, Différentes Nations Nègres (1835).

 

Escrito por Ricardo Bruno Ferreira (UFF)

 

Um dos paradigmas mais recorrentes da historiografia brasileira é o que se refere à gradualidade da abolição. Estes trabalhos se utilizam frequentemente da legislação a respeito do tema como marco temporal, como, por exemplo, a Lei Eusébio de Queiros (1850), a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei Áurea (1888). Nos primeiros estudos sobre a abolição já se via este tipo de periodização, como o trabalho de João Luiz Alves (1916) que dividiu a história parlamentar em três fases. Na década de 1970, Paula Beiguelman (1976), seguindo a teoria da gradualidade, dividiu o processo de abolição em fases distintas, cujo marco temporal seria a legislação.

Em importante trabalho sobre o tema, Jaime Rodrigues (2000) procurou demonstrar que a gradualidade da abolição se configurou como um projeto político que teve origem no início do século XIX. Este, no entanto, era um projeto dentre outros possíveis. Há assim uma historicidade na vitória deste projeto que merece ser ao mesmo tempo entendida e desvinculada da análise historiográfica. O autor não nega a importância da legislação como elemento transformador da relação senhor-escravo. Rodrigues reconhece que a doutrina da abolição gradual predominou nos estudos históricos, o que acabou por se tornar um problema quando se trata em analisar o fim do tráfico. A partir desta perspectiva, deveria se evitar um ponto de vista retrospectivo em relação ao assunto procurando discutir a questão do tráfico de modo específico. À época, a elite política ao se deparar com o problema da abolição se utilizava de expedientes para evitar uma solução imediata deixando para o futuro a questão. Não havia assim, uma relação direta de causalidade entre o fim do tráfico e a política da abolição.

A partir de uma perspectiva comparada, Seymour Drescher (2011) confrontou o processo de abolição sucedido no Brasil com outros ocorridos no continente americano. Para Drescher, a extinção do tráfico no ano de 1850 representou uma derrota dos setores ligados à lavoura. A classe senhorial, reconhecendo a inevitabilidade da emancipação, procurou adiar ao máximo uma solução definitiva para a escravidão[i]. Por sua vez, Rebecca Scott (1991), autora de um importante trabalho sobre a abolição em Cuba, afirmou que a gradualidade não era entendida como uma alternativa para a preservação indefinida do trabalho escravo, mas acima de tudo, como uma forma de impedir a emancipação imediata.

Na primeira metade do século XIX, verifica-se o aparecimento de diversas propostas em torno da abolição e do fim do tráfico. Dentre os defensores do fim do tráfico de africanos, muitos eram contrários à abolição. Não se vê, desta forma, um vínculo direto entre essas duas teses.

Para muitos autores, o fim do tráfico não era entendido como uma etapa do processo de abolição, mas, pelo contrário, como uma medida de fortalecimento do sistema (RODRIGUES, 2000, p. 80): “homens como Henrique Rebelo encaravam essa medida como um fortalecimento da escravidão por meio da reprodução endógena, sem a dependência regular de um fluxo contínuo de africanos atravessando o oceano”. A manutenção da escravidão dependia do controle sobre os trabalhadores e da imposição da disciplina de modo a corrigir a “corrupção dos costumes” proporcionada pelos africanos.

Abrolharam no decorrer do século XIX algumas propostas para a introdução no país do trabalhador imigrante. Em meados da década de 1840, o Visconde de Abrantes defendeu a colonização estrangeira no Brasil a partir do ingresso de trabalhadores europeus. Dentre as medidas destinadas à promoção da colonização estrangeira estava a doação de terras. Para Abrantes, a doação de terras a entes particulares consistiu num total fracasso. Sua proposta visava à doação de terras a companhias de colonização que promovessem a entrada de trabalhadores europeus. Buscava-se, deste modo, uma alternativa ao trabalho escravo duramente afetado com o fim do tráfico e com a adoção de medidas restritivas. Segundo Abrantes, a escravidão era um flagelo que fazia com que todo estrangeiro achasse o trabalho manual no Brasil algo degradante.

Conclui-se assim que não havia uma correspondência direta entre o fim do tráfico de africanos e a emancipação de escravos. No decorrer dos oitocentos pulularam algumas propostas emancipacionistas que não se enquadravam na perspectiva gradualista então em voga. A partir dos argumentos expostos, segue-se a trilha de pensar que o fim do tráfico de escravos propiciado pela Lei Eusébio de Queiroz não deve ser entendido como uma etapa necessária para a culminância do processo de abolição concluído em 1888. Esta perspectiva se balizou de um modo geral em uma análise retrospectiva acerca da história ao operar de forma cumulativa, causal e linear.  

 

Referências Bibliográficas:

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

ALVES, João Luís. A questão do elemento servil. A extinção do tráfico e a lei de repressão de 1850. Liberdade dos nascituros. Rio de Janeiro: RIHGB, 1916.

BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1976.

COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

DRESCHER, Seymour. Abolição: Uma história da Escravidão e do Antiescravismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000.

SCOTT, Rebecca J. Emancipação Escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

 

[i] Marquês de Olinda dissera certa vez em sessão realizada no Conselho de Estado no ano de 1866 que “a escravidão é uma chaga que se deve tocar”. O ex-ministro do Império se notabilizou por assumir uma defesa intransigente a favor do direito de propriedade. O problema da emancipação deveria ser deixado de lado, para ser resolvido em um futuro distante, de modo a não fustigar os ânimos dos abolicionistas dispostos tanto no Parlamento como na sociedade em geral.

 

 


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