Foto: Charge de Zé Dassilva*
Escrito por Suellen Correa
Sabemos que a pandemia da
Covid-19 vem sendo relacionada ao impulsionamento da frente neoliberal e
capitalista junto à diminuição de direitos sociais que vem ocorrendo recentemente
em alguns contextos (como o brasileiro), a partir de reflexões de autores como
a canadense Naomi Klein e seus estudos sobre a “doutrina do choque” [1].
Para além deste momento de crise
ser tomado como justificativa institucional de impor ideias e medidas mais
radicais do livre mercado, a exemplo das reformas austeras e das privatizações
– como desenvolvido e apresentado em ensaio anterior [2] – a pandemia também pode ser
problematizada a partir de ações pontuais de agentes sociais que a tomam
enquanto oportunidades para fins específicos, ligados a relações de poder e ao
enriquecimento.
Durante a crise da pandemia pelo Corona
vírus, vimos inúmeros casos de denúncias de irregularidades envolvendo desvios de
vacinas contra a Covid-19 em alguns municípios e estados brasileiros, por
exemplo, em Tocantins, Roraima e Rio Grande do Sul [3]. Os casos de desvios
envolveram profissionais da saúde e mesmo pessoas com perfil profissional
falso. Alguns desses episódios de desvio estão relacionados à venda dos
imunizantes e ao favorecimento de pessoas que até então ainda aguardavam a liberação
da sua faixa etária na fila da imunização, como também ocorreu no Paraná [4].
Além de irregularidades
envolvendo desvios, houve casos ligados ao processo de aplicação das doses das
vacinas, conforme ocorreu em um município do estado do Rio de Janeiro, onde o
próprio prefeito foi flagrado em um vídeo aplicando vacina em morador em abril
deste ano, mesmo não sendo habilitado tecnicamente para a função [5].
Além do ocorrido, a vacinação
nesse município foi permeada de aglomerações e de confusões em relação ao
público vacinante. A Justiça do Rio chegou a decretar a indisponibilidade de
bens do prefeito, no valor de R$ 2,45 milhões, a partir de uma ação de
investigação de irregularidades no processo de imunização. Uma ação de
improbidade administrativa foi ajuizada devido à “recusa do prefeito em
obedecer ao Plano Nacional de Vacinação (PNI), em atender às decisões judiciais
que determinaram respeito aos grupos prioritários e em reservar vacinas para
aplicação da segunda dose da CoronaVac”, além das “constantes aglomerações
constatadas durante a vacinação” [6].
O ato de um prefeito ser visto mais
próximo da população ao vacinar um morador, ainda que não seja a sua função, ou
passar na frente da fila da imunização um determinado grupo de pessoas, são exemplos
de como certas políticas públicas podem ser tomadas como oportunidades políticas
de criar laços de interesses. Essas ações pessoalizadas podem comportar relações
de poder e visar a sua manutenção, por exemplo.
Outros casos de irregularidades foram
vivenciados nesta pandemia, dessa vez na compra de aparelhos respiradores e em
tratamentos da Covid-19, envolvendo agentes públicos e empresários no Amazonas [7].
Ainda em setembro deste ano, o governador desse estado virou réu pelo Superior
Tribunal de Justiça, a partir de denúncia da Procuradoria Geral da União, além
do seu vice, servidores públicos e empresários [8], o que traz a reflexão de
como esse tipo de disfunção no serviço público pode ser comum, mas sendo mais moralizado
e vilipendiado em momentos de crise e de desastre, como uma pandemia.
A CPI da Pandemia (ou CPI da Covid),
Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no Senado para apurar a conduta do
governo federal durante a pandemia da Covid-19, é outro caso da pronta resposta
a denúncias ocorridas durante a crise pandêmica. Após meses de trabalho, a CPI
da Pandemia aprovou seu relatório final sugerindo o indiciamento do presidente
da República por crimes desde os comuns, relacionados ao Código Penal, até
crimes de responsabilidade e contra a humanidade. Somando ao presidente, são 77
pessoas, entre elas seus filhos, ministros, ex-ministros, deputados federais,
médicos e empresários que estão na lista dos indiciamentos, bem como as
empresas [9].
Além do negacionismo (e fake News) em relação ao vírus e do
atraso com a compra das vacinas, cabe destacar aqui as suspeitas de corrupção
nas negociações para a compra dos imunizantes pelo Ministério da Saúde
envolvendo empresas [10]. Essas práticas de desvios envolvendo empresários e o
poder público mostram como por trás delas podem existir relações que valorizam
e priorizam o lucro e fins particulares.
Sabemos que as vacinas, mesmo
fabricadas por empresas privadas, foram incorporadas ao Programa Nacional de
Imunizações (PNI) do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, isto não quer
dizer que o interesse púbico e coletivo prevaleçam nesse processo de gestão da
saúde. Em torno de ações institucionais e de políticas públicas - como as
ligadas ao combate da doença e à imunização nacional – podem existir também
relações de trocas ligadas a expectativas de ganho e de lucro ou a arranjos
políticos de apoio mútuo e de manutenção do poder. Foi o que as situações
expostas durante os trabalhos da CPI evidenciaram aos olhares mais atentos.
A pandemia da Covid-19 vem nos
mostrando que dela resultou uma intensificação (ou pelo menos a reafirmação) de
relações entre empresários e agentes públicos e a utilização do público como
oportunidade de ganhos privados (sejam eles políticos ou econômicos) por parte
de alguns atores sociais, na medida em que uma crise como a pandemia movimenta verbas
vultosas e demanda diversos arranjos institucionais e parcerias
público-privadas. Foi possível também, a partir dessa catástrofe que vem nos
acompanhando há mais de um ano e das ações de denúncias e de investigações que
já vem ocorrendo, confirmar o que a antropóloga indiana, Veena Das, nos ensina
de que há múltiplas soberanias em jogo nas situações políticas, e que os atores
possuem noções e morais variadas [11].
Por fim, esses dados e eventos aqui apresentados só reforçam a ideia de que a pandemia, apesar de ser uma crise global ligada a um patógeno da natureza, não é natural, tampouco igual para todos, pois se relaciona às subjetividades e condicionamentos sociais. Seu surtos e consequências podem “ter intensidades, qualidades e formas de agravo muito distintas e estabelece relações com as condições socioeconômicas, culturais, ambientais, coletivas ou mesmo individuais” [12], como o número de mortes aqui no Brasil demonstrou. Daí a importância de se evitar concepções universalistas e a necessidade de uma ciência que leve cada vez mais em conta os diversos aspectos da vida social.
* Fonte: Diário Catarinense, disponível em https://m.facebook.com/diariocatarinense/photos/a.246619255379344/6099611080080103/?type=3 (acesso em 05 nov. 2021).
[1] KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a
ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. - Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
___________. Coronavirus: Como
vencer o capitalismo que se abastece de desastres? The Intercept, 21 mar 2020.
Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/
(acesso em 04 nov. 2021).
[2] Texto disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/07/covid-19-e-o-capitalismo-de-desastre.html?m=1
(acesso em 04 nov. 2021).
[3] Ver sobre em https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2021/06/policia-federal-investiga-suspeita-de-desvio-de-vacinas-contra-a-covid-19-no-sul-do-tocantins;
https://www.istoedinheiro.com.br/rr-medica-e-exonerada-por-suposto-desvio-de-vacinas-para-membros-do-judiciario/
e https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2021/09/policia-indicia-cinco-funcionarias-por-desvio-de-vacinas-contra-covid-19-em-posto-de-saude-de-porto-alegre-cku6zcx460037019m43ikkxs9.html
(acesso em 04 nov. 2021).
[4] Ver em https://g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2021/05/20/apos-desvio-de-vacinas-mp-pr-investiga-denuncias-de-fura-fila-na-imunizacao-contra-a-covid-19.ghtml
(acesso em 04 nov. 2021).
[5] Ver em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/04/12/prefeito-de-duque-de-caxias-e-flagrado-aplicando-vacina-foi-encenacao.htm (acesso em 04 nov. 2021).
[6] Ver em https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-05/covid-19-justica-decreta-bloqueio-de-bens-de-prefeito-de-caxias-rj (acesso em 04 nov. 2021).
[7] Ver em https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/09/20/denuncia-contra-governador-do-am-por-irregularidades-na-pandemia-e-analisada-no-stj.ghtml
(acesso em 04 nov. 2021).
[8] Ver em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/stj-aceita-denuncia-e-governador-do-am-vira-reu-por-irregularidades-em-uso-de-verbas-da-pandemia.shtml
(acesso em 04 nov. 2021).
[9] Ver em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-10/cpi-da-pandemia-aprova-relatorio-final-e-pede-80-indiciamentos
(acesso em 04 nov. 2021).
[10] Ver em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/20/cpi-da-pandemia-principais-pontos-do-relatorio
(acesso em 04 nov. 2021).
[11] DAS, Veena. Corruption and the Possibility of Life.
Mimeo, 2012.
[12] MATTA, G.C., REGO, S.,
SOUTO, E.P., SEGATA, J., eds. A Covid-19 no Brasil e as Várias Faces da
Pandemia: apresentação. In: Os impactos
sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à
pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora FIOCRUZ, 2021, pp.
15-24.
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