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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Pandemia enquanto oportunidade econômica e política (para poucos)

 

 Foto: Charge de Zé Dassilva* 


Escrito por Suellen Correa   

    Sabemos que a pandemia da Covid-19 vem sendo relacionada ao impulsionamento da frente neoliberal e capitalista junto à diminuição de direitos sociais que vem ocorrendo recentemente em alguns contextos (como o brasileiro), a partir de reflexões de autores como a canadense Naomi Klein e seus estudos sobre a “doutrina do choque” [1].

    Para além deste momento de crise ser tomado como justificativa institucional de impor ideias e medidas mais radicais do livre mercado, a exemplo das reformas austeras e das privatizações – como desenvolvido e apresentado em ensaio anterior [2] – a pandemia também pode ser problematizada a partir de ações pontuais de agentes sociais que a tomam enquanto oportunidades para fins específicos, ligados a relações de poder e ao enriquecimento.

    Durante a crise da pandemia pelo Corona vírus, vimos inúmeros casos de denúncias de irregularidades envolvendo desvios de vacinas contra a Covid-19 em alguns municípios e estados brasileiros, por exemplo, em Tocantins, Roraima e Rio Grande do Sul [3]. Os casos de desvios envolveram profissionais da saúde e mesmo pessoas com perfil profissional falso. Alguns desses episódios de desvio estão relacionados à venda dos imunizantes e ao favorecimento de pessoas que até então ainda aguardavam a liberação da sua faixa etária na fila da imunização, como também ocorreu no Paraná [4].

    Além de irregularidades envolvendo desvios, houve casos ligados ao processo de aplicação das doses das vacinas, conforme ocorreu em um município do estado do Rio de Janeiro, onde o próprio prefeito foi flagrado em um vídeo aplicando vacina em morador em abril deste ano, mesmo não sendo habilitado tecnicamente para a função [5].

    Além do ocorrido, a vacinação nesse município foi permeada de aglomerações e de confusões em relação ao público vacinante. A Justiça do Rio chegou a decretar a indisponibilidade de bens do prefeito, no valor de R$ 2,45 milhões, a partir de uma ação de investigação de irregularidades no processo de imunização. Uma ação de improbidade administrativa foi ajuizada devido à “recusa do prefeito em obedecer ao Plano Nacional de Vacinação (PNI), em atender às decisões judiciais que determinaram respeito aos grupos prioritários e em reservar vacinas para aplicação da segunda dose da CoronaVac”, além das “constantes aglomerações constatadas durante a vacinação” [6].

    O ato de um prefeito ser visto mais próximo da população ao vacinar um morador, ainda que não seja a sua função, ou passar na frente da fila da imunização um determinado grupo de pessoas, são exemplos de como certas políticas públicas podem ser tomadas como oportunidades políticas de criar laços de interesses. Essas ações pessoalizadas podem comportar relações de poder e visar a sua manutenção, por exemplo.

    Outros casos de irregularidades foram vivenciados nesta pandemia, dessa vez na compra de aparelhos respiradores e em tratamentos da Covid-19, envolvendo agentes públicos e empresários no Amazonas [7]. Ainda em setembro deste ano, o governador desse estado virou réu pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir de denúncia da Procuradoria Geral da União, além do seu vice, servidores públicos e empresários [8], o que traz a reflexão de como esse tipo de disfunção no serviço público pode ser comum, mas sendo mais moralizado e vilipendiado em momentos de crise e de desastre, como uma pandemia.

    A CPI da Pandemia (ou CPI da Covid), Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no Senado para apurar a conduta do governo federal durante a pandemia da Covid-19, é outro caso da pronta resposta a denúncias ocorridas durante a crise pandêmica. Após meses de trabalho, a CPI da Pandemia aprovou seu relatório final sugerindo o indiciamento do presidente da República por crimes desde os comuns, relacionados ao Código Penal, até crimes de responsabilidade e contra a humanidade. Somando ao presidente, são 77 pessoas, entre elas seus filhos, ministros, ex-ministros, deputados federais, médicos e empresários que estão na lista dos indiciamentos, bem como as empresas [9].

    Além do negacionismo (e fake News) em relação ao vírus e do atraso com a compra das vacinas, cabe destacar aqui as suspeitas de corrupção nas negociações para a compra dos imunizantes pelo Ministério da Saúde envolvendo empresas [10]. Essas práticas de desvios envolvendo empresários e o poder público mostram como por trás delas podem existir relações que valorizam e priorizam o lucro e fins particulares.

    Sabemos que as vacinas, mesmo fabricadas por empresas privadas, foram incorporadas ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, isto não quer dizer que o interesse púbico e coletivo prevaleçam nesse processo de gestão da saúde. Em torno de ações institucionais e de políticas públicas - como as ligadas ao combate da doença e à imunização nacional – podem existir também relações de trocas ligadas a expectativas de ganho e de lucro ou a arranjos políticos de apoio mútuo e de manutenção do poder. Foi o que as situações expostas durante os trabalhos da CPI evidenciaram aos olhares mais atentos.

    A pandemia da Covid-19 vem nos mostrando que dela resultou uma intensificação (ou pelo menos a reafirmação) de relações entre empresários e agentes públicos e a utilização do público como oportunidade de ganhos privados (sejam eles políticos ou econômicos) por parte de alguns atores sociais, na medida em que uma crise como a pandemia movimenta verbas vultosas e demanda diversos arranjos institucionais e parcerias público-privadas. Foi possível também, a partir dessa catástrofe que vem nos acompanhando há mais de um ano e das ações de denúncias e de investigações que já vem ocorrendo, confirmar o que a antropóloga indiana, Veena Das, nos ensina de que há múltiplas soberanias em jogo nas situações políticas, e que os atores possuem noções e morais variadas [11].

    Por fim, esses dados e eventos aqui apresentados só reforçam a ideia de que a pandemia, apesar de ser uma crise global ligada a um patógeno da natureza, não é natural, tampouco igual para todos, pois se relaciona às subjetividades e condicionamentos sociais. Seu surtos e consequências podem “ter intensidades, qualidades e formas de agravo muito distintas e estabelece relações com as condições socioeconômicas, culturais, ambientais, coletivas ou mesmo individuais” [12], como o número de mortes aqui no Brasil demonstrou. Daí a importância de se evitar concepções universalistas e a necessidade de uma ciência que leve cada vez mais em conta os diversos aspectos da vida social. 

* Fonte: Diário Catarinense, disponível em   https://m.facebook.com/diariocatarinense/photos/a.246619255379344/6099611080080103/?type=3 (acesso em 05 nov. 2021).

[1] KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

___________. Coronavirus: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres? The Intercept, 21 mar 2020. Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 04 nov. 2021).

[2] Texto disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/07/covid-19-e-o-capitalismo-de-desastre.html?m=1 (acesso em 04 nov. 2021).

[3] Ver sobre em https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2021/06/policia-federal-investiga-suspeita-de-desvio-de-vacinas-contra-a-covid-19-no-sul-do-tocantins; https://www.istoedinheiro.com.br/rr-medica-e-exonerada-por-suposto-desvio-de-vacinas-para-membros-do-judiciario/ e https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2021/09/policia-indicia-cinco-funcionarias-por-desvio-de-vacinas-contra-covid-19-em-posto-de-saude-de-porto-alegre-cku6zcx460037019m43ikkxs9.html (acesso em 04 nov. 2021).

[4] Ver em https://g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2021/05/20/apos-desvio-de-vacinas-mp-pr-investiga-denuncias-de-fura-fila-na-imunizacao-contra-a-covid-19.ghtml (acesso em 04 nov. 2021).

[5] Ver em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/04/12/prefeito-de-duque-de-caxias-e-flagrado-aplicando-vacina-foi-encenacao.htm (acesso em 04 nov. 2021).

[6] Ver em https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-05/covid-19-justica-decreta-bloqueio-de-bens-de-prefeito-de-caxias-rj (acesso em 04 nov. 2021).

[7] Ver em  https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/09/20/denuncia-contra-governador-do-am-por-irregularidades-na-pandemia-e-analisada-no-stj.ghtml (acesso em 04 nov. 2021).

[8] Ver em  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/stj-aceita-denuncia-e-governador-do-am-vira-reu-por-irregularidades-em-uso-de-verbas-da-pandemia.shtml (acesso em 04 nov. 2021).

[9] Ver em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-10/cpi-da-pandemia-aprova-relatorio-final-e-pede-80-indiciamentos (acesso em 04 nov. 2021).

[10] Ver em  https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/20/cpi-da-pandemia-principais-pontos-do-relatorio (acesso em 04 nov. 2021).

[11] DAS, Veena. Corruption and the Possibility of Life. Mimeo, 2012.

[12] MATTA, G.C., REGO, S., SOUTO, E.P., SEGATA, J., eds. A Covid-19 no Brasil e as Várias Faces da Pandemia: apresentação. In: Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora FIOCRUZ, 2021, pp. 15-24.


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