Escrito
por Carlos Henrique Serra[i] , Marcial Suarez[ii]
e Luís Antônio Francisco de Souza[iii]
Em artigos recentes, refletimos a respeito da
militarização da Segurança Pública no
Brasil, em geral, e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, quando, na
verdade, observa-se que este aspecto da militarização se
potencializa a partir da última década, ou seja, desde os anos de 2010 até o
presente momento.
Em alguns momentos, sustentamos que a
militarização dos aparelhos do Estado e a estatização
dos grupos paramilitares demonstram que o poder de morte e de destruição é central nas estratégias biopolíticas produtoras de desigualdades sociais
e de assimetrias de distribuição de poder no país (SOUZA e SERRA, 2020). Nesse sentido, queremos
enfatizar que a morte ou a possibilidade da morte é parte da engrenagem biopolítica militarizada (SOUZA e SERRA, 2020). Desta forma, as formas de
intervenção militares estão compreendidas na exceção
soberana, onde há uma luta permanente contra
um inimigo imaginário. Sendo assim, matar
é parte integrante de um dispositivo de controle da vida daqueles que merecem
viver a custo do massacre
de quem deve morrer
(SOUZA e SERRA, 2020).
Identificamos que existe uma nova tendência
da militarização durante o governo da
extrema-direita no Brasil, desde 2018. Ainda estamos a observar um
aprofundamento da militarização da segurança e da policialização das forças armadas
(SOUZA e SERRA, 2020). Assim sendo, estamos
a nos deparar com uma milicianização
das polícias militares e quiçá do
exército. A violência sistemática das polícias militares já pode ser enquadrada neste processo na
medida em que não são as autoridades civis eleitas
que exercem o controle das chamadas forças da ordem (SOUZA e SERRA, 2020).
Cabe ainda registrar que a crescente
participação das milícias na construção da ordem/desordem social,
sobretudo no Rio de Janeiro,
também vem provocando a rotinização da
violência policial e do estado, agora, lembrando os grupos de extermínio, com participação de indivíduos
pertencentes às forças policiais/militares (SOUZA e SERRA, 2020).
O caso do Rio de Janeiro oferece para este
estudo um exemplo interessante de pesquisa,
pois ao mesmo tempo em que se identificam três atores centrais; a saber: Comando Vermelho – CV, Amigos dos Amigos –
ADA e o Terceiro Comando Puro - TCP, se pode afirmar que há um quarto ator de
relevância ausente, as milícias. O embate entre as milícias
que possuem laços com órgãos estatais e inclusive representatividade política junto as
câmaras municipais e estaduais e o tráfico são um elemento de complexidade que se soma ao modelo conhecido de
enfrentamento entre facções rivais
do tráfico de drogas (SOUZA, SERRA, SUAREZ
e ROMERO, 2020).
A origem das milícias no Rio de Janeiro
encontra-se imbricada aos grupos de extermínio,
desde os anos 1960. O exemplo mais notório é o ‘Esquadrão da Morte’, do detetive Le Coq (SOUZA, SERRA, SUAREZ e
ROMERO, 2020). Ressalta-se que, neste período,
foi criada a “Scuderie Le Coq”, composta
pelos autodenominados “Homens
de Ouro” da Polícia
do Rio de Janeiro (MISSE,
2011).
Importa destacar que a polícia mineira seria
uma variante dos esquadrões da morte
dos anos 1960/1970, que surge a partir dos anos 1980 e tem sua origem em policiais
e ex-policiais que buscavam oferecer
segurança a pequenos
comércios e localidades mais distantes do centro da
cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, SERRA, SUAREZ
e ROMERO, 2020). Pode-se, então, afirmar que o termo “polícia mineira” se origina de grupos de policiais de Minas
Gerais notórios por suas práticas violentas.
Segundo Burgos (2002) Zaluar & Conceição (2007) foi por meio das
associações de moradores que um novo
arranjo foi sendo estabelecido, ou seja, a proteção não se restringia aos pequenos negócios, mas
também a população das áreas definidas sob a
“jurisdição” destes grupos (SOUZA,
SERRA, SUAREZ e ROMERO,
2020).
E o mais dramático de tudo é que o domínio do
chamado crime organizado não decaiu (SOUZA e SERRA, 2020);
e as milícias, ao que tudo indica,
ganharam mais força
e presença nas comunidades
do Rio e da Grande Rio (Alves, 2011; Cano e Duarte, 2012; Simões, 2019): “os grupos comandados por
policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora de serviço ou ainda
na ativa, aterrorizam a população mais do que os históricos senhores do tráfico como o Comando
Vermelho” (ALVES, 2019).
Observamos que a partir do ano de 2018, com a
chegada de Wilson Witzel ao governo
do Estado do Rio de Janeiro, os números da letalidade policial sobem de maneira significativa, posto que a partir daquele
ano se intensifica a política
de enfrentamento, tendo o
governador dado declarações que reafirmaram essa assertiva, tal como “tiro na cabecinha” numa alusão ao posicionamento de snipers próximos as comunidades
da cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020).
Defende-se a premissa de que a sociedade
brasileira desenvolveu um sistema legal,
punitivo e militarizado que reforça a distribuição desigual de poder. No Rio de Janeiro, em particular, sustentamos que desde a segunda metade dos
anos 90, esta “política do confronto”
ainda é hegemônica e observamos, então, no cenário político atual que houve um aumento da letalidade
do Estado, em face de uma política genocida (SOUZA, SERRA,
SUAREZ e ROMERO, 2020).
Números
do domínio territorial das Milícias
no Rio de Janeiro:
Inúmeros pesquisadores têm se dedicado a
refletir sobre a expansão das milícias no
Rio de Janeiro e, então, o que podemos observar, sem qualquer dúvida, é um
quadro gravíssimo presente
na segurança pública do Rio
de Janeiro.
Na matéria do G1 Rio, em 19/10/2020, Nicolás
Satriano destaca que o Rio tem 3,7 milhões de habitantes
em áreas dominadas pelo crime organizado; milícia controla 57% da
área da cidade (grifos nossos).
Este levantamento (G1 Rio) aponta
para os seguintes dados:
2,1 milhões de pessoas (33% da população)
vivem em área sob o comando de milícias;
1,1 milhão
de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho;
337,2 mil pessoas
(5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando;
48,2 mil pessoas
(0,7% da população) vivem em área dominada pelos
Amigos dos Amigos.
No quadro abaixo, temos o mapeamento, no Rio de Janeiro, do controle de grupos armados no RJ

Fontes: Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP, Pista News.
Deve-se registrar que conforme este levantamento, até o fim de 2019, as milícias dominavam 25,5% dos bairros do Rio. O percentual representa 57,5% da superfície territorial da cidade, onde vivem 33,1% dos habitantes do município – ou seja, mais de 2 milhões dos cerca de 6,74 milhões habitantes calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Cumpre publicizar outro quadro ilustrativo:
Para
o sociólogo Daniel Hirata, "em primeiro lugar, há uma diversificação dos mercados de atuação. Você tem diversos
mercados legais e ilegais, enfim, gás, mercado
imobiliário, luz, 'gatonet', tráfico de drogas, roubo, receptação...
Você tem uma série de mercados que atravessam a cadeia
da legalidade e da ilegalidade, e, portanto essa diversificação
das atividades oferece vantagem competitiva em relação ao tráfico de drogas”
(G1 Rio, 19/10/2020).
No Relatório Final da
pesquisa, “Expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal,
mercado imobiliário e grupos armados”,
realizado pelo Grupo de Estudos sobre Novos Ilegalismos, GENI/UFF,
e pelo Observatório das Metrópoles, IPPUR/UFRJ,
em janeiro de 2021, os dados encontrados reforçam a hipótese de que as milícias contaram com uma dupla vantagem em relação aos “comandos criminais” (Comando
Vermelho, 3º Comando Puro e Amigos dos Amigos): 1) baixa ocorrência de operações policiais nos territórios sob
seu domínio; 2) aumento de seus ganhos com o
mercado imobiliário, através da oferta de proteção para e/ou a execução
de construções irregulares
posteriormente legalizadas, realizadas em bairros que mostram a presença forte da
atividade imobiliária.
Para a nossa reflexão, o principal ponto desta relevante
pesquisa diz respeito ao aspecto de
que “há consistentes indícios de favorecimento das milícias por parte do poder público tanto no que se refere às
operações policiais como no que tange às políticas de licenciamento, legalização e construções imobiliárias de competência predominante da administração municipal” (Relatório Final, 2021).
Devemos retomar Agamben (2004) quando este autor identifica “as zonas cinzentas” existentes entre
o Estado de Direito e o Estado de exceção, pois as fronteiras entre o “legal”
e “ilegal” se fusionam e, então, pode-se
observar que o Estado de Direito
ao produzir as suas próprias ilegalidades, também, produz em larga escala as
exceções permanentes.
Nesse
sentido, em trabalho anterior, chegamos a afirmar que a militarização das polícias e dos dispositivos de segurança e
controle punitivo atua intensamente sob este
binômio: guerra e inimigo. Há, portanto, uma fabricação incessante de
“inimigos” que, sob a ótica da
guerra, precisam ser executados. As exceções permanentes também se fusionam
na militarização das polícias
e da
própria vida (BATTIBUGLI, SERRA, SOUZA e ROMERO,
2021).
No cenário
político contemporâneo, devemos
acrescentar o processo
de milicianização da segurança pública que se imbrica com a militarização das polícias e da
própria existência humana.
Por fim, diante deste quadro gravíssimo, tão bem exposto
e analisado por inúmeros pesquisadores, cumpre destacar que a letalidade policial não se encontra afastada da letalidade do Estado, ou seja, se há letalidade policial, há também a letalidade do Estado. Essas letalidades se imbricam e insistem na formulação e execução
de políticas genocidas, de confronto, extermínio e que acabam por fomentar milícias (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO,
2020), ou, em outras palavras, este quadro aponta concretamente para a potencialização do projeto político
de milicianização na segurança
pública no Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. (2004) - Estado de exceção. Tradução de Iraci D.
Poleti. São Paulo, Boitempo.
BATTIBUGLI, Thais; SERRA, C H A; SOUZA, Luís Francisco de e ROMERO, Gabriel (2021) – Letalidade policial: discursos e práticas legitimadoras da Polícia Militar
de São Paulo. In: Revista
de Direito Público, Brasília, vol.18, n.99, jul-set.
MISSE, Michel (2011) - “Autos de resistência”: uma análise dos
homicídios cometidos por policiais
na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro, editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
SERRA, Carlos Henrique Aguiar;
SUAREZ, Marcial ; SOUZA, Luís Antônio Francisco de (2021). The violence dynamics
in public security: military interventions and
police-related deaths in Brazil. ONATI SOCIO
- LEGAL SERIES, v. 11, p. 1- 22.
SERRA, C.
H. A.; SOUZA, Luís Antônio
Francisco de; VALERIO,
RAPHAEL GUAZZELI (2021).
(Des)encontros entre Giorgio Agamben e Michel Foucault: o que resta do
Estado de direito
no Brasil. Sociedade e Cultura, v. 24, p.
1-26.
SOUZA, Luís Antônio Francisco de;
SERRA, Carlos Henrique Aguiar; BATTIBUGLI,
Thaís. (2019) - Perspectives on the militarization of public security in
contemporary Brazil. ONATI SOCIO - LEGAL SERIES, v. 1, p. 1-16.
SOUZA, Luís
Antônio Francisco de; SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020) - Quando o estado de exceção se torna permanente:
reflexões sobre a militarização da segurança
pública no Brasil. Tempo Social, v. 32, p.205-227.
SUAREZ, Marcial, SERRA, CARLOS HENRIQUE AGUIAR; SOUZA, Luís Antônio Francisco de; ROMERO, Gabriel
(2020). A letalidade em ações policiais. Uma revisão do debate a partir da análise comparativa entre as polícias dos
Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Revista
da Associação Portuguesa de Sociologia, v. 24, p. 85-101.
[i] Professor Associado IV de Ciência Política da UFF. Doutor em História pela UFF.
[ii] Professor Associado II de Ciência Política da UFF. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ.
[iii] Professor Livre-Docente de Sociologia da UNESP. Doutor em Sociologia pela USP.
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