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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A milicianização no Rio de Janeiro: a segurança pública em foco

Escrito por Carlos Henrique Serra[i] ,     Marcial Suarez[ii] e Luís Antônio Francisco de Souza[iii]

 

Em artigos recentes, refletimos a respeito da militarização da Segurança Pública no Brasil, em geral, e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, quando, na verdade, observa-se que este aspecto da militarização se potencializa a partir da última década, ou seja, desde os anos de 2010 até o presente momento.

Em alguns momentos, sustentamos que a militarização dos aparelhos do Estado e a estatização dos grupos paramilitares demonstram que o poder de morte e de destruição é central nas estratégias biopolíticas produtoras de desigualdades sociais e de assimetrias de distribuição de poder no país (SOUZA e SERRA, 2020). Nesse sentido, queremos enfatizar que a morte ou a possibilidade da morte é parte da engrenagem biopolítica militarizada (SOUZA e SERRA, 2020). Desta forma, as formas de intervenção militares estão compreendidas na exceção soberana, onde uma luta permanente contra um inimigo imaginário. Sendo assim, matar é parte integrante de um dispositivo de controle da vida daqueles que merecem viver a custo do massacre de quem deve morrer (SOUZA e SERRA, 2020).

Identificamos que existe uma nova tendência da militarização durante o governo da extrema-direita no Brasil, desde 2018. Ainda estamos a observar um aprofundamento da militarização da segurança e da policialização das forças armadas (SOUZA e SERRA, 2020). Assim sendo, estamos a nos deparar com uma milicianização das polícias militares e quiçá do exército. A violência sistemática das polícias militares já pode ser enquadrada neste processo na medida em que não são as autoridades civis eleitas que exercem o controle das chamadas forças da ordem (SOUZA e SERRA, 2020).

Cabe ainda registrar que a crescente participação das milícias na construção da ordem/desordem social, sobretudo no Rio de Janeiro, também vem provocando a rotinização da violência policial e do estado, agora, lembrando os grupos de extermínio, com participação de indivíduos pertencentes às forças policiais/militares (SOUZA e SERRA, 2020).

O caso do Rio de Janeiro oferece para este estudo um exemplo interessante de pesquisa, pois ao mesmo tempo em que se identificam três atores centrais; a saber: Comando Vermelho – CV, Amigos dos Amigos – ADA e o Terceiro Comando Puro - TCP, se pode afirmar que há um quarto ator de relevância ausente, as milícias. O embate entre as milícias que possuem laços com órgãos estatais e inclusive representatividade política junto as câmaras municipais e estaduais e o tráfico são um elemento de complexidade que se soma ao modelo conhecido de enfrentamento entre facções rivais do tráfico de drogas (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020).

A origem das milícias no Rio de Janeiro encontra-se imbricada aos grupos de extermínio, desde os anos 1960. O exemplo mais notório é o ‘Esquadrão da Morte’, do detetive Le Coq (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020). Ressalta-se que, neste período, foi criada a “Scuderie Le Coq”, composta pelos autodenominados “Homens de Ouro” da Polícia do Rio de Janeiro (MISSE, 2011).

Importa destacar que a polícia mineira seria uma variante dos esquadrões da morte dos anos 1960/1970, que surge a partir dos anos 1980 e tem sua origem em policiais e ex-policiais que buscavam oferecer segurança a pequenos comércios e localidades mais distantes do centro da cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020). Pode-se, então, afirmar que o termo “polícia mineira” se origina de grupos de policiais de Minas Gerais notórios por suas práticas violentas. Segundo Burgos (2002) Zaluar & Conceição (2007) foi por meio das associações de moradores que um novo arranjo foi sendo estabelecido, ou seja, a proteção não se restringia aos pequenos negócios, mas também a população das áreas definidas sob a “jurisdição” destes grupos (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020).

E o mais dramático de tudo é que o domínio do chamado crime organizado não decaiu (SOUZA e SERRA, 2020); e as milícias, ao que tudo indica, ganharam mais força e presença nas comunidades do Rio e da Grande Rio (Alves, 2011; Cano e Duarte, 2012; Simões, 2019): “os grupos comandados por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora de serviço ou ainda na ativa, aterrorizam a população mais do que os históricos senhores do tráfico como o Comando Vermelho” (ALVES, 2019).

Observamos que a partir do ano de 2018, com a chegada de Wilson Witzel ao governo do Estado do Rio de Janeiro, os números da letalidade policial sobem de maneira significativa, posto que a partir daquele ano se intensifica a política de enfrentamento, tendo o governador dado declarações que reafirmaram essa assertiva, tal como “tiro na cabecinha” numa alusão ao posicionamento de snipers próximos as comunidades da cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020).

Defende-se a premissa de que a sociedade brasileira desenvolveu um sistema legal, punitivo e militarizado que reforça a distribuição desigual de poder. No Rio de Janeiro, em particular, sustentamos que desde a segunda metade dos anos 90, esta “política do confronto” ainda é hegemônica e observamos, então, no cenário político atual que houve um aumento da letalidade do Estado, em face de uma política genocida (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020).

 

Números do domínio territorial das Milícias no Rio de Janeiro:

 

Inúmeros pesquisadores têm se dedicado a refletir sobre a expansão das milícias no Rio de Janeiro e, então, o que podemos observar, sem qualquer dúvida, é um quadro gravíssimo presente na segurança pública do Rio de Janeiro.

Na matéria do G1 Rio, em 19/10/2020, Nicolás Satriano destaca que o Rio tem 3,7 milhões de habitantes em áreas dominadas pelo crime organizado; milícia controla 57% da área da cidade (grifos nossos).

Este levantamento (G1 Rio) aponta para os seguintes dados:

 

2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando    de milícias;

1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho;

337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo   Terceiro Comando;

48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelos Amigos dos Amigos.

 

No quadro abaixo, temos o mapeamento, no Rio de Janeiro, do controle de grupos armados no RJ

      Fontes: Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP, Pista News.

 

Deve-se registrar que conforme este levantamento, até o fim de 2019, as milícias dominavam 25,5% dos bairros do Rio. O percentual representa 57,5% da superfície territorial da cidade, onde vivem 33,1% dos habitantes do município – ou seja, mais de 2 milhões dos cerca de 6,74 milhões habitantes calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Cumpre publicizar outro quadro ilustrativo:



Para o sociólogo Daniel Hirata, "em primeiro lugar, há uma diversificação dos mercados de atuação. Você tem diversos mercados legais e ilegais, enfim, gás, mercado imobiliário, luz, 'gatonet', tráfico de drogas, roubo, receptação... Você tem uma série de mercados que atravessam a cadeia da legalidade e da ilegalidade, e, portanto essa diversificação das atividades oferece vantagem competitiva em relação ao tráfico de drogas” (G1 Rio, 19/10/2020).

No Relatório Final da pesquisa, “Expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados”, realizado pelo Grupo de Estudos sobre Novos Ilegalismos, GENI/UFF, e pelo Observatório das Metrópoles, IPPUR/UFRJ, em janeiro de 2021, os dados encontrados reforçam a hipótese de que as milícias contaram com uma dupla vantagem em relação aos “comandos criminais” (Comando Vermelho, 3º Comando Puro e Amigos dos Amigos): 1) baixa ocorrência de operações policiais nos territórios sob seu domínio; 2) aumento de seus ganhos com o mercado imobiliário, através da oferta de proteção para e/ou a execução de construções irregulares posteriormente legalizadas, realizadas em bairros que mostram a presença forte da atividade imobiliária.

Para a nossa reflexão, o principal ponto desta relevante pesquisa diz respeito ao aspecto de que “há consistentes indícios de favorecimento das milícias por parte do poder público tanto no que se refere às operações policiais como no que tange às políticas de licenciamento, legalização e construções imobiliárias de competência predominante da administração municipal” (Relatório Final, 2021).

Devemos retomar Agamben (2004) quando este autor identifica “as zonas cinzentas” existentes entre o Estado de Direito e o Estado de exceção, pois as fronteiras entre o “legal” e “ilegal” se fusionam e, então, pode-se observar que o Estado de Direito ao produzir as suas próprias ilegalidades, também, produz em larga escala as exceções permanentes.

Nesse sentido, em trabalho anterior, chegamos a afirmar que a militarização das polícias e dos dispositivos de segurança e controle punitivo atua intensamente sob este binômio: guerra e inimigo. Há, portanto, uma fabricação incessante de “inimigos” que, sob a ótica da guerra, precisam ser executados. As exceções permanentes também se fusionam na militarização das polícias e da própria vida (BATTIBUGLI, SERRA, SOUZA e ROMERO, 2021).

No cenário político contemporâneo, devemos acrescentar o processo de milicianização da segurança pública que se imbrica com a militarização das polícias    da própria existência humana.

Por fim, diante deste quadro gravíssimo, tão bem exposto e analisado por inúmeros pesquisadores, cumpre destacar que a letalidade policial não se encontra afastada da letalidade do Estado, ou seja, se letalidade policial, também a letalidade do Estado. Essas letalidades se imbricam e insistem na formulação e execução de políticas genocidas, de confronto, extermínio e que acabam por fomentar milícias (SOUZA, SERRA, SUAREZ e ROMERO, 2020), ou, em outras palavras, este quadro aponta concretamente para a potencialização do projeto político de milicianização na segurança pública no Rio de Janeiro.

 

Referências bibliográficas:

 

AGAMBEN, Giorgio. (2004) - Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo, Boitempo.

BATTIBUGLI, Thais; SERRA, C H A; SOUZA, Luís Francisco de e ROMERO, Gabriel (2021) Letalidade policial: discursos e práticas legitimadoras da Polícia Militar de São Paulo. In: Revista de Direito Público, Brasília, vol.18, n.99, jul-set.

MISSE, Michel (2011) - “Autos de resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro, editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/images/curriculo/jcr.gifSERRA, Carlos Henrique Aguiar; SUAREZ, Marcial ; SOUZA, Luís Antônio Francisco de (2021). The violence dynamics in public security: military interventions and police-related deaths in Brazil. ONATI SOCIO - LEGAL SERIES, v. 11, p. 1- 22.

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/images/curriculo/jcr.gifSERRA, C. H. A.; SOUZA, Luís Antônio Francisco de; VALERIO, RAPHAEL GUAZZELI (2021). (Des)encontros entre Giorgio Agamben e Michel Foucault: o que resta do Estado de direito no Brasil. Sociedade e Cultura, v. 24, p. 1-26.

SOUZA, Luís Antônio Francisco de; SERRA, Carlos Henrique Aguiar; BATTIBUGLI, Thaís. (2019) - Perspectives on the militarization of public security in contemporary Brazil. ONATI SOCIO - LEGAL SERIES, v. 1, p. 1-16.

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/images/curriculo/jcr.gifSOUZA, Luís Antônio Francisco de; SERRA, Carlos Henrique Aguiar (2020) - Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública     no      Brasil. Tempo Social,  v. 32, p.205-227.

SUAREZ, Marcial, SERRA, CARLOS HENRIQUE AGUIAR; SOUZA, Luís Antônio Francisco de; ROMERO, Gabriel (2020). A letalidade em ações policiais. Uma revisão do debate a partir da análise comparativa entre as polícias dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Revista da Associação Portuguesa de Sociologia, v. 24, p. 85-101.



[i] Professor Associado IV de Ciência Política da UFF. Doutor em História pela UFF.

[ii] Professor Associado II de Ciência Política da UFF. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ.

[iii] Professor Livre-Docente de Sociologia da UNESP. Doutor em Sociologia pela USP.

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