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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Por que punir? Para que punir? A sanha punitivista na contemporaneidade

Escrito por Carlos Henrique Serra (UFF)[i]

 

O campo das Ciências Humanas, e, muito particularmente, os saberes constituídos na Sociologia, há tempos estão a produzir trabalhos acadêmicos sobre a punição, os dispositivos de controle punitivos, sistema penal, e outros temas afins, mas que estabelecem uma estreita ligação com aquilo que Foucault denominou como “arte de punir” (FOUCAULT, 1987).

Nesse sentido, para começo das considerações que pretendemos desenvolver aqui, formulamos algumas indagações, duas em especial: Por que punir? Para que punir?

Como já foi mencionado anteriormente, Foucault, no texto “A sociedade punitiva” (FOUCAULT, 1997), reflete a respeito dos mecanismos engendrados pelas sociedades no sentido preciso de como as sociedades pensaram e aplicaram a punição, através de instituições que foram criadas quando do momento de implantação da ordem burguesa, ou melhor, do capitalismo.

Estamos a nos referir, tomando de empréstimo as lentes de Foucault, sobre os sentidos da punição, da prisão, e, acima de tudo, que o sistema penal, no capitalismo, na sociedade burguesa europeia, ao adotar a privação de liberdade como a pena por excelência, produz a “delinquência” (FOUCAULT, 1997).

Há uma ressalva importante que deve ser destacada: as reflexões foucaultianas se debruçam acerca da sociedade europeia e assim sendo, o autor enfatiza com propriedade que a disciplina é um dos instrumentos singulares do capitalismo. Desta forma, para Foucault, o disciplinamento é um aspecto essencial para se tentar compreender todo esse arcabouço presente na “arte de punir”.

Devemos problematizar alguns aspectos e um deles, sem dúvida, diz respeito à produção acadêmica existente na Ciência Política no que tange à questão da punição. Assim, parece que este campo de saber, com toda a sua trajetória histórica e significativa, que a partir da Filosofia Política na Grécia Antiga, com filósofos como Sófocles, Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, tentando refletir sobre a temática do Poder e das relações de poder em si, não dá a devida importância para a punição, do exercício desta nas sociedades contemporâneas e dos dispositivos punitivos que se fusionam nas instituições formais de controle social.

Enquanto possibilidade interpretativa, sustentamos a premissa de que há um equívoco teórico e conceitual de considerar a punição como “questão jurídica”, sendo, pertencente tão somente do campo do Direito Penal, e que, então, apenas este saber deve atuar no exercício e concepção da punição.

O que defendemos caminha na contramão desta perspectiva, pois, na verdade, a punição é uma questão primordialmente política e que deve sim, portanto, ser estudada pela Ciência Política.

Se entendemos que a pena não é um conceito jurídico, mas político, e que se configura enquanto “inflição de dor sem sentido” (ZAFFARONI, 1991), começamos a tentar compreender  qual o sentido de se punir e para que se pune nas sociedades contemporâneas.

Tentando responder a essas indagações, que estruturam o presente trabalho, sublinhamos outro pressuposto que nos orienta: há uma sacralização da pena nas sociedades contemporâneas.

Em outras palavras, a pena aparece enquanto um dogma, algo sagrado, ou melhor, na expressão de Nilo Batista, a pena surge como uma “espécie de rito sagrado da solução de todos os conflitos sociais” (BATISTA, 2002).

A sacralização da pena nas sociedades contemporâneas, e de forma muito específica, na sociedade brasileira, estabelece uma interface com esse desejo de punir mais e mais, um gozo punitivo que atravessa as formações sociais na atualidade.

Sob essa ótica, a do gozo punitivo, o autor Didier Fassin, ao estudar a sociedade francesa, observa que esta sociedade vivencia o período mais punitivo de sua história tendo um aumento considerável do encarceramento e, por conseguinte, se potencializa em larga escala o “ato de punir” (FASSIN, 2017). Nesse sentido, segundo Fassin, o “ato de punir” se configura como uma “paixão contemporânea” (FASSIN, 2017).

Ao nos depararmos com a expressão, “paixão contemporânea”, e, também considerando que a sociedade brasileira não aboliu os castigos físicos, a tortura, por exemplo, que há uma naturalização da punição, de se aplicar castigos, internalizado como algo pedagógico, que “educa”, portanto, chamamos a atenção para uma dimensão que, na nossa avaliação, deve se inserir nos estudos sobre a punição e a pena, a “produção da subjetividade punitiva” (MENEZES, 2021).

Esta produção da “subjetividade punitiva” explica o gozo punitivo, o gozo pela guerra, e, também, toda uma “produção da subjetividade viril” (MENEZES, 2021) que é intrínseco, não no sentido de que seja natural, mas sim uma produção social e política, do poder punitivo. Este goza com a dor no outro e é essencialmente misógino (CUNHA, 2021), posto que é constituído sob a perspectiva dessa “virilidade”, das formas de masculinidades forjadas na brutalidade (MENEZES, 2021).

Não devemos desconsiderar, ainda mais no âmbito da Ciência Política, que esta lógica punitivista, este gozo punitivo, é produzido pelo Estado. Vale dizer que se há uma letalidade das Polícias, há a letalidade do Estado; ou seja, o Estado continua a operar sob uma dupla ótica, a da guerra e a do inimigo.

Aqui no Rio de Janeiro, em particular, desde 1995, conforme destacamos em discussões pretéritas (SERRA, SOUZA e CIRILLO, 2019), os sucessivos governos     estaduais optaram pela política do confronto, que se encontra estruturada no modelo bélico, na  lógica do inimigo e mais, na sacralização da pena.

Esta sanha punitivista traz consigo uma intensa pulsão de morte, o gozo de infligir dor no outro, e, também, produz em larga escala, para além do aumento exponencial do encarceramento penal, fortalecimento do populismo penal, uma dramática letalidade onde o Estado e os dispositivos punitivos estabelecem uma mórbida sincronia.

Quando enfatizamos esta sanha punitivista, letalidade do Estado, ótica da guerra e lógica do inimigo, o aspecto da militarização da segurança pública, e da vida, encontra-se presente, pois a militarização reifica toda esta prática punitivista que articula a guerra e a fabricação incessante do “inimigo”.

E, segundo nossa interpretação, a militarização se configura como um verdadeiro estado de exceção permanente, na medida em que intervenções, ocupações, operações, estratégias militares operam nas margens em que se encontram o legal  e o ilegal  (SERRA e SOUZA, 2020).

Queremos sublinhar que diante da perda da significação e da violência banalizada, precisamos, portanto, seguir a recomendação de Foucault e inverter a proposição de Clausewitz: a política é a extensão da guerra por outros meios (SERRA e SOUZA, 2020). Contudo, na atualidade, a política é a extensão da guerra por meios ainda altamente militarizados.

Assim sendo, as relações de poder estão encontrando sua ancora­gem na guerra e nos dispositivos militares e, então, há uma potencialização do poder punitivo onde também podemos identificar uma produção de subjetividade militarizada, e, claro, punitiva.

Cabe ainda registrar que a militarização, que consiste enquanto modelo de um estado  de  exceção,  permite toda uma ritualística fúnebre e macabra em que se dá a aceitação tácita da violência e da morte (SERRA e SOUZA, 2020).

Ao refletirmos sobre a sanha punitivista na conjuntura atual, essa permanência do gozo punitivo, que fundamenta o ato de punir como uma “paixão contemporânea” (FASSIN, 2017), há uma sinalização para a perspectiva teórica do abolicionismo penal.

O abolicionismo penal possui um escopo amplo que, na nossa interpretação, não obstante as singularidades existentes nas respectivas análises, desde Hulsmann, um pioneiro no registro das “penas perdidas”, passando, entre outros, cada um (a) de uma forma, por Nils Christie, Mathiesen, Zaffaroni, Nilo Batista, Vera Malaguti, Edson Passetti, e mais recente, Sabrina Lasevitch Menezes, possui como foco de afinidade, uma espécie de eixo comum, o repúdio enfático à pena privativa de liberdade, à prisão, à sacralização da pena, à naturalização dos castigos, e não por fim, mas ao defender a abolição dos castigos, sustenta que o Direito Penal não pode ser a resposta; antes, contudo, deve ser abolido, pois configura-se enquanto “Direito da dor” e o “Inimigo no Direito Penal” (ZAFFARONI, 2021 & MENEZES, 2021).

A proposta abolicionista como “estilo de vida” (PASSETTI, 1999) implica num duplo aspecto, pois trata-se tanto de uma perspectiva teórica crítica, devidamente embasada, como também, de forma sincrônica, consiste enquanto “movimento social” (MENEZES, 2021).

Nesse sentido, o abolicionismo penal que defendemos procura articular teoria e práxis social, e, então, possui um amplo escopo que sinaliza concretamente para a constituição de uma sociedade libertária onde aspectos fundamentais como a abolição dos castigos, a dessacralização da pena, o repúdio à criminalização da miséria, a desconstrução plena de toda “produção da subjetividade punitiva”, não sejam mais considerados enquanto “utópicos”, mas como questões exequíveis e que são imprescindíveis à luta política, e que materializam a politização dos conflitos sociais.

O que tentamos sustentar no presente texto é que a sanha punitivista se imbrica à ótica da guerra e lógica do inimigo, e que a “produção da subjetividade punitiva” (MENEZES, 2021) , o gozo punitivo com o sofrimento do outro, se inscreve numa perspectiva estatal onde há uma intensa e exorbitante pulsão de morte, letalidade que se potencializa tragicamente no cenário político contemporâneo.

Assim sendo, a perspectiva abolicionista deve como “movimento social” (MENEZES, 2021) e concepção teórica crítica, atuar no repúdio à criminalização da miséria, o ato naturalizado de “punir os pobres”, deve também sustentar a abolição dos castigos, da prisão, mas, há que se estabelecer uma sincronicidade com a “produção da subjetividade punitiva” (MENEZES), pois, para a nossa interpretação, a compreensão e enfrentamento desta sanha punitivista estão a exigir esta sincronicidade entre a produção material da existência e a produção de subjetividade (s).

Por fim, retomando reflexão recente, sinalizamos que as condições singulares, mórbidas e necropolíticas estão dadas e, portanto, devem ser desativadas com uma retomada da ação política (SERRA, SOUZA e GUAZZELLI, 2021). Vale mencionar que Robert Antelme (2013), conhecido memorialista que sobreviveu a um campo de concentração nazista, diz que a  condição humana é da ordem da indestrutibilidade. Desta forma, por mais que os sujeitos morram e sejam mortos por incontáveis estratégias da biopolítica (Foucault), tanatospolítica (Agamben) ou necropo- lítica (Mbembe), sempre resta algo dessa destruição, sempre algo além dessa destruição (SERRA, SOUZA e GUAZZELLI, 2021). Para além de uma morte de consagração, a violência do estado de exceção requer respostas que apontam para a resistência, para a indestrutibilidade da vida humana (SERRA, SOUZA e GUAZZELLI, 2021).

 

Referências bibliográficas:

BATISTA, Nilo - “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Revista Discursos Sediciosos, 7 (12): 271-288, 2002.

CUNHA, Carolina. As mulheres e o poder punitivo: uma análise interseccional sobre o processo de custódia das mulheres e sua interação com o sistema penal no Brasil. UFF, Tese de Doutorado, 2021.

FOUCAULT, Michel – Resumo dos cursos do Collège de France (1970 – 1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

_________ - Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

HULSMANN, Louk – Penas perdidas. Rio de Janeiro: Luã, 1990.

MENEZES, Sabrina Lasevitch – Micropolítica da abolição: diálogos entre a crítica feminista e o abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Dialética, 2021.

PASSETTI, Edson – “Sociedade de controle e abolição da punição”. In: São Paulo em Perspectiva, 13 (3), 1999.

PASSETTI, Edson – Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

SERRA, Carlos Henrique e SOUZA, Luís Antônio Francisco de – “Quando o estado de exceção se torna permanente: reflexões sobre a militarização da segurança pública no Brasil”. In: Tempo Social,  Revista de Sociologia da USP, v. 32, n. 2, 2020.

SERRA, Carlos Henrique, SOUZA, Luís Antônio Francisco de e CIRILLO, Fernanda Russo – “Guerra às drogas no Brasil contemporâneo: proibicionismo, punitivismo e militarização da segurança pública”. In: Revista Teoria e Cultura, UFJF, v. 14, n. 2, dezembro 2019.

SERRA, Carlos Henrique, SOUZA, Luís Antônio Francisco de e GUAZZELLI, Raphael – “Michel Foucault e Giorgio Agamben: convergências e divergências teóricas sobre poderes e potências”. In: Ethic@, Florianópolis, v. 19, n. 3, dez. 2020.

SERRA, Carlos Henrique, SOUZA, Luís Antônio Francisco de e GUAZZELLI, Raphael – “(Des) encontros entre Giorgio Agamben e Michel Foucault: o que resta do Estado de Direito no Brasil”. In: Revista Sociedade e Cultura, UFG, v. 24, 2021.

ZAFFARONI, Eugenio Raul – Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raul – O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2021.



[i] Professor Associado IV do Departamento de Ciência Política da UFF.


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