Escrito por Mariana Zuaneti Martins - Grupa (Grupo de Estudos em Gênero e Esporte) UFES; e Vitor Vasquez - IPEA
No último domingo, se encerraram os jogos olímpicos de Tóquio. Esta olimpíada representou um grande avanço para
a igualdade de gênero em termos esportivos, por apresentar o maior equilíbrio
da história dos jogos em relação à quantidade de atletas e de eventos,
comparando-se homens e mulheres.
A presença das mulheres
é uma luta histórica e sequer foi cogitada na primeira edição dos jogos
olímpicos. Pelo contrário, quando os jogos olímpicos modernos foram criados, em
1896, seu idealizador Pierre de Coubertin, apenas previu a participação de
homens. Foi na segunda edição, em Paris, em 1900, que tal questão começou a ser
problematizada, quando das 997 pessoas que competiram, apenas 22 eram mulheres (NUNES, 2019). Portanto, é simbólico refletir que,
somente 124 anos depois, na próxima edição dos jogos olímpicos, também em
Paris, a meta de igualdade de gênero na quantidade de pessoas competidoras
pretende ser atingida.
Esta marca, no entanto,
deve-se a esforços institucionais recentes. Somente na última década do século
XX o Comitê Olímpico Internacional (COI) começou a colocar metas e a promover o
encorajamento aos comitês olímpicos locais para alcançar o objetivo da
igualdade de gênero. Em 1996, o COI emitiu a primeira nota incentivando a
promoção do esporte feminino em todos os níveis e a entrada de mulheres nos
postos de liderança do esporte. Em 2017, tal comitê passou a ter como meta
uma edição de jogos olímpicos que contivesse 50% dos participantes do gênero
feminino.
Na edição dos jogos
olímpicos do Rio de Janeiro (2016), dos 306 eventos olímpicos, 161 eram para
homens e 145 para mulheres (NUNES, 2019). Na edição atual, caminhamos para um maior
equilíbrio, sendo que, dos 339 eventos, 174 foram femininos ou misto. Ou seja, 51,3% dos eventos dos jogos olímpicos
de Tóquio abrangeu mulheres. Apenas algumas categorias de boxe, a luta
greco-romana e a marcha atlética de 50km, que deixará de ser disputada em jogos
olímpicos a partir de 2024, ainda não possuem eventos para mulheres. Por outro
lado, houve inserção de 18 eventos mistos, como revezamentos na natação,
triathlon e atletismo.
Contudo, nem tudo deve
ser motivo de entusiasmo. Apesar deste esforço para equilibrar a quantidade de
participantes mulher nos jogos e de eventos destinados a elas, há ainda um
longo caminho para percorrer em termos de desenvolvimento do esporte feminino.
Isto pode ser observado a partir de pelo menos três aspectos: o papel das
mulheres em comissões técnicas, o destaque recebido pelo esporte feminino
frente à mídia e ao protagonismo que as mulheres desempenham enquanto atletas e
não pela sua objetificação.
Quando observamos os
dados dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro e de Londres (2012), verificamos
que as mulheres compõe apenas 11% dos treinadores credenciados ao evento. O desafio
para inserção das mulheres nessas posições é histórico e transcende os jogos
olímpicos. São muitas as barreiras que
costumam afastar as mulheres desse tipo de posição. Segundo Lavoi e Dutove (2012), em
geral, são posições de liderança associadas ao universo do masculino e
organizadas por meio de redes de poder compostas em sua maioria por homens.
Isso faz com que vagas de estágio, mentoria e empregos sejam pouco receptivas
para mulheres. É muito comum também, quando uma mulher assume essa posição, que
sua avaliação sofra um viés de gênero, isto é, que ela seja mais criticada ou
questionada em função de sua identidade de gênero. Soma-se a isso o imaginário
social que associa maternidade e cuidados domésticos às mulheres, o que cria
outra barreira, uma vez que a profissão de treinador demanda muito tempo de quem
a exerce, incluindo períodos noturnos e finais de semana. De forma concreta, os
clubes são pouco receptivos às mulheres do ponto de vista de infraestrutura,
muitas vezes não possuindo vestiários femininos ou instalações para que aquelas
que são mães tenham lugar apropriado para deixarem os filhos durante o período
de trabalho.
Como consequência dos
fatores elencados, há poucas mulheres treinadoras com visibilidade que possam
servir como “modelos” e “espelhos” para as jovens que desejem seguir na
carreira. Além disso, cursos de formação de treinadores são caros e, como a
chance de inserção profissional de uma mulher não é dada, muitas delas acabam
por não poder arcar com esse investimento e não contando com algum apoio
externo que o faça.
Nessa edição dos jogos
olímpicos, onde excepcionalmente nem todos os treinadores puderam comparecer em
razão dos protocolos de prevenção da COVID-19, os dados iniciais indicam que as
mulheres ocuparam 13% dos cargos credenciados. Tal quadro
reflete a ausência de mulheres em posição de liderança e a necessidade de políticas no âmbito do movimento
olímpico que
promovam a inserção das mesmas nos cargos diretivos. A partir do momento em que
se democratizar os espaços de poder, poderemos ver de forma ainda mais proeminente
uma preocupação com as questões de gênero nos jogos, que certamente extrapolam
a quantidade de atletas presentes.
Isso nos leva a uma
segunda questão para a qual a presença das mulheres nos cargos de liderança
poderia ter um papel fundamental na sua reversão. É uma questão simples, mas ao
mesmo tempo emblemática para representar o quanto as mulheres não são ouvidas e
não têm direito de participar nas decisões dos jogos olímpicos. Sob a aparência
de ser uma questão “técnica”, o debate sobre os uniformes esportivos das
mulheres põe a luz o debate sobre a sexualização do corpo das atletas e a possibilidade dessas mesmas
participarem da negociação dessa matéria.
Exemplo disso é que mulheres
continuam a competir com maiôs ou biquínis na ginástica e no vôlei de praia.
Como forma de protesto, as atletas da Alemanha realizaram
treinos com um
uniforme que cobria as pernas, explicitando uma posição de contrariedade à
sexualização dos corpos das ginastas promovida pelos tradicionais collants.
Um pouco antes dos jogos olímpicos, veio à tona o caso das atletas de beach
hand da Noruega, que foram multadas por se recursarem a
disputar o torneio europeu de biquíni.
Chama a atenção o fato de que em todas essas modalidades, os homens disputam as
provas de calças ou de bermudas largas.
Além do protesto das
próprias mulheres, há também outras consequências dessas roupas que elas são
obrigadas a vestir. O caso da jogadora Rebecca, do vôlei de praia brasileiro, ilustra
uma situação em que a exposição da atleta de biquíni
fez com que se gerasse uma repercussão sobre sua “forma física”. O uso dos biquínis, ao colocar o
corpo sob vigilância dessa forma, transmite a mensagem de que a uma mulher
atleta, não basta que ela seja forte e potente, pois é necessário também atender
a um determinado padrão estético (de magreza). O fato de não serem consideradas
as posições das mulheres sobre esses padrões de vestimenta ratifica como ainda há
muito para avançar para a democratização do esporte, não só em termos de quantidade
de participantes, mas também nas relações de poder.
Uma última questão que
gostaríamos de chamar atenção se refere à visibilidade dada ao esporte de
mulheres nos meios de comunicação. Passos importantes foram dados nessa última
edição dos jogos olímpicos, sobretudo no Brasil. Finalmente assistimos a
equipes de transmissão mistas, com mulheres narrando jogos femininos e
masculinos, presentes em mesas de debate, fazendo reportagens em Tóquio etc. No
entanto, ainda é notório o desequilíbrio nessa composição e, de forma ainda
mais marcante, no tempo e espaço ocupado nos veículos de comunicação para o
esporte das mulheres.
Um levantamento da Unesco apontou que apenas 4% das chamadas de notícias esportivas, no mundo, são sobre mulheres. A visibilidade do esporte de mulheres cumpre papel fundamental, uma vez que sua não documentação significa um apagamento da história e das conquistas das atletas. Reconhecer a presença, a existência e os feitos realizados pelas mulheres contribui para demonstrar que não há nada que as mulheres não possam fazer ou alcançar no esporte. Mais, contribui para inspirar outras mulheres, garotas e jovens a se engajarem com o esporte.
Esses são alguns dos
desafios para a democratização, mas sem dúvida há tantos outros. Atletas não
binaries e transgênero, a presença de uma arbitragem feminina mais
representativa e mulheres nos cargos de liderança, inclusive do COI, são outros
exemplos de campos para se avançar. Caminhamos bons passos no sentido de
democratização, mas é importante sabermos que ainda temos muitos outros para percorrer.
Torcemos para que em Paris tenhamos não só as mulheres estampadas no logo dos
jogos olímpicos, mas que suas posições, seu espaço e suas conquistas também
sejam a marca desses 124 anos da entrada da primeira mulher em uma edição!
Bibliografia
LAVOI,
N.; DUTOVE, J (2012). Barriers and supports for female coaches: An ecological
model. Sports Coaching Review, v. 1, n. 1, p. 17-37.
NUNES, R. (2019). Women athletes in the Olympic Games. Journal of Human Sport and Exercise, 14(3), 674-683. https://doi.org/10.14198/jhse.2019.143.17.
Parabéns!
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