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quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O que ainda não podemos celebrar em relação à igualdade de gênero nos jogos olímpicos?

Escrito por Mariana Zuaneti Martins - Grupa (Grupo de Estudos em Gênero e Esporte) UFES; e Vitor Vasquez - IPEA 


No último domingo, se encerraram os jogos olímpicos de Tóquio. Esta olimpíada representou um grande avanço para a igualdade de gênero em termos esportivos, por apresentar o maior equilíbrio da história dos jogos em relação à quantidade de atletas e de eventos, comparando-se homens e mulheres.

A presença das mulheres é uma luta histórica e sequer foi cogitada na primeira edição dos jogos olímpicos. Pelo contrário, quando os jogos olímpicos modernos foram criados, em 1896, seu idealizador Pierre de Coubertin, apenas previu a participação de homens. Foi na segunda edição, em Paris, em 1900, que tal questão começou a ser problematizada, quando das 997 pessoas que competiram, apenas 22 eram mulheres (NUNES, 2019). Portanto, é simbólico refletir que, somente 124 anos depois, na próxima edição dos jogos olímpicos, também em Paris, a meta de igualdade de gênero na quantidade de pessoas competidoras pretende ser atingida.

Esta marca, no entanto, deve-se a esforços institucionais recentes. Somente na última década do século XX o Comitê Olímpico Internacional (COI) começou a colocar metas e a promover o encorajamento aos comitês olímpicos locais para alcançar o objetivo da igualdade de gênero. Em 1996, o COI emitiu a primeira nota incentivando a promoção do esporte feminino em todos os níveis e a entrada de mulheres nos postos de liderança do esporte. Em 2017, tal comitê passou a ter como meta uma edição de jogos olímpicos que contivesse 50% dos participantes do gênero feminino.

Na edição dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro (2016), dos 306 eventos olímpicos, 161 eram para homens e 145 para mulheres (NUNES, 2019). Na edição atual, caminhamos para um maior equilíbrio, sendo que, dos 339 eventos, 174 foram femininos ou misto.  Ou seja, 51,3% dos eventos dos jogos olímpicos de Tóquio abrangeu mulheres. Apenas algumas categorias de boxe, a luta greco-romana e a marcha atlética de 50km, que deixará de ser disputada em jogos olímpicos a partir de 2024, ainda não possuem eventos para mulheres. Por outro lado, houve inserção de 18 eventos mistos, como revezamentos na natação, triathlon e atletismo.

Contudo, nem tudo deve ser motivo de entusiasmo. Apesar deste esforço para equilibrar a quantidade de participantes mulher nos jogos e de eventos destinados a elas, há ainda um longo caminho para percorrer em termos de desenvolvimento do esporte feminino. Isto pode ser observado a partir de pelo menos três aspectos: o papel das mulheres em comissões técnicas, o destaque recebido pelo esporte feminino frente à mídia e ao protagonismo que as mulheres desempenham enquanto atletas e não pela sua objetificação.

Quando observamos os dados dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro e de Londres (2012), verificamos que as mulheres compõe apenas 11% dos treinadores credenciados ao evento. O desafio para inserção das mulheres nessas posições é histórico e transcende os jogos olímpicos. São muitas as barreiras que costumam afastar as mulheres desse tipo de posição. Segundo Lavoi e Dutove (2012), em geral, são posições de liderança associadas ao universo do masculino e organizadas por meio de redes de poder compostas em sua maioria por homens. Isso faz com que vagas de estágio, mentoria e empregos sejam pouco receptivas para mulheres. É muito comum também, quando uma mulher assume essa posição, que sua avaliação sofra um viés de gênero, isto é, que ela seja mais criticada ou questionada em função de sua identidade de gênero. Soma-se a isso o imaginário social que associa maternidade e cuidados domésticos às mulheres, o que cria outra barreira, uma vez que a profissão de treinador demanda muito tempo de quem a exerce, incluindo períodos noturnos e finais de semana. De forma concreta, os clubes são pouco receptivos às mulheres do ponto de vista de infraestrutura, muitas vezes não possuindo vestiários femininos ou instalações para que aquelas que são mães tenham lugar apropriado para deixarem os filhos durante o período de trabalho.

Como consequência dos fatores elencados, há poucas mulheres treinadoras com visibilidade que possam servir como “modelos” e “espelhos” para as jovens que desejem seguir na carreira. Além disso, cursos de formação de treinadores são caros e, como a chance de inserção profissional de uma mulher não é dada, muitas delas acabam por não poder arcar com esse investimento e não contando com algum apoio externo que o faça.

Nessa edição dos jogos olímpicos, onde excepcionalmente nem todos os treinadores puderam comparecer em razão dos protocolos de prevenção da COVID-19, os dados iniciais indicam que as mulheres ocuparam 13% dos cargos credenciados. Tal quadro reflete a ausência de mulheres em posição de liderança e a necessidade de políticas no âmbito do movimento olímpico que promovam a inserção das mesmas nos cargos diretivos. A partir do momento em que se democratizar os espaços de poder, poderemos ver de forma ainda mais proeminente uma preocupação com as questões de gênero nos jogos, que certamente extrapolam a quantidade de atletas presentes.

Isso nos leva a uma segunda questão para a qual a presença das mulheres nos cargos de liderança poderia ter um papel fundamental na sua reversão. É uma questão simples, mas ao mesmo tempo emblemática para representar o quanto as mulheres não são ouvidas e não têm direito de participar nas decisões dos jogos olímpicos. Sob a aparência de ser uma questão “técnica”, o debate sobre os uniformes esportivos das mulheres põe a luz o debate sobre a sexualização do corpo das atletas e a possibilidade dessas mesmas participarem da negociação dessa matéria.

Exemplo disso é que mulheres continuam a competir com maiôs ou biquínis na ginástica e no vôlei de praia. Como forma de protesto, as atletas da Alemanha realizaram treinos com um uniforme que cobria as pernas, explicitando uma posição de contrariedade à sexualização dos corpos das ginastas promovida pelos tradicionais collants. Um pouco antes dos jogos olímpicos, veio à tona o caso das atletas de beach hand da Noruega, que foram multadas por se recursarem a disputar o torneio europeu de biquíni. Chama a atenção o fato de que em todas essas modalidades, os homens disputam as provas de calças ou de bermudas largas.

Além do protesto das próprias mulheres, há também outras consequências dessas roupas que elas são obrigadas a vestir. O caso da jogadora Rebecca, do vôlei de praia brasileiro, ilustra uma situação em que a exposição da atleta de biquíni fez com que se gerasse uma repercussão sobre sua “forma física”. O uso dos biquínis, ao colocar o corpo sob vigilância dessa forma, transmite a mensagem de que a uma mulher atleta, não basta que ela seja forte e potente, pois é necessário também atender a um determinado padrão estético (de magreza). O fato de não serem consideradas as posições das mulheres sobre esses padrões de vestimenta ratifica como ainda há muito para avançar para a democratização do esporte, não só em termos de quantidade de participantes, mas também nas relações de poder.

Uma última questão que gostaríamos de chamar atenção se refere à visibilidade dada ao esporte de mulheres nos meios de comunicação. Passos importantes foram dados nessa última edição dos jogos olímpicos, sobretudo no Brasil. Finalmente assistimos a equipes de transmissão mistas, com mulheres narrando jogos femininos e masculinos, presentes em mesas de debate, fazendo reportagens em Tóquio etc. No entanto, ainda é notório o desequilíbrio nessa composição e, de forma ainda mais marcante, no tempo e espaço ocupado nos veículos de comunicação para o esporte das mulheres.

Um levantamento da Unesco apontou que apenas 4% das chamadas de notícias esportivas, no mundo, são sobre mulheres. A visibilidade do esporte de mulheres cumpre papel fundamental, uma vez que sua não documentação significa um apagamento da história e das conquistas das atletas. Reconhecer a presença, a existência e os feitos realizados pelas mulheres contribui para demonstrar que não há nada que as mulheres não possam fazer ou alcançar no esporte. Mais, contribui para inspirar outras mulheres, garotas e jovens a se engajarem com o esporte.

 


Esses são alguns dos desafios para a democratização, mas sem dúvida há tantos outros. Atletas não binaries e transgênero, a presença de uma arbitragem feminina mais representativa e mulheres nos cargos de liderança, inclusive do COI, são outros exemplos de campos para se avançar. Caminhamos bons passos no sentido de democratização, mas é importante sabermos que ainda temos muitos outros para percorrer. Torcemos para que em Paris tenhamos não só as mulheres estampadas no logo dos jogos olímpicos, mas que suas posições, seu espaço e suas conquistas também sejam a marca desses 124 anos da entrada da primeira mulher em uma edição!

Bibliografia

LAVOI, N.; DUTOVE, J (2012). Barriers and supports for female coaches: An ecological model. Sports Coaching Review, v. 1, n. 1, p. 17-37.

NUNES, R. (2019). Women athletes in the Olympic Games. Journal of Human Sport and Exercise, 14(3), 674-683. https://doi.org/10.14198/jhse.2019.143.17. 

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