Escrita por Leonardo Almeida da Silva (Sociólogo
e Cientista Político. Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT-Cáceres).
“A utopia está lá no
horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez
passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.”
Eduardo Galeano
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos costuma
dizer que cientistas sociais, no geral, antes de terem conceitos mais
consolidados ou melhor elaborados sobre um certo fenômeno ou acontecimento, tendem
a colocar o prefixo “pós” naquilo que é novo e, por consequência, ainda
desconhecido. Dizer “pós”-“alguma coisa” é indicar que se trata de um fenômeno
sobre o qual ainda há muito mais desconhecimento do que conhecimento a respeito.
Geralmente trata-se de fenômenos sociais que já existem e influenciam a vida em
sociedade, mas seguem como que ávidos
por dossiês em artigos de revistas científicas para discuti-lo, pôsteres e mesas-redondas
em Congressos e até mesmo teses, livros e profissionais que dediquem suas
carreiras ou parte delas a compreendê-lo. E assim poderíamos falar da “pós”
modernidade, da “pós” democracia, “pós” qualquer outra coisa. Peguemos o
“pós-Guerra”, por exemplo. Era inicialmente um termo para designar um mundo que
seria diferente de antes e durante a II Guerra Mundial, contudo, não se sabia
ainda o mundo que restaria e ressurgiria após 1945. Bastava, portanto, colocar
o “pós” para designar um momento e uma realidade diferentes e ainda desconhecidos,
do qual a única certeza inicial era a de que seria diferente daquele passado
ainda bem recente. Desse modo, atualmente, 75 anos depois, “pós-Guerra” tornou-se
uma ideia, ou mesmo um conceito, muito mais preciso e consolidado do que em
finais da década de 1940.
Entretanto, os grandes acontecimentos históricos geram
muito mais do que discussões, debates, livros e linhas de pesquisa acadêmicas.
Eles impactam decisivamente a vida em sociedade, a economia, as instituições.
Alteram as expectativas e provocam reações, perdas e prejuízos, bem como podem
acarretar em ganhos para alguns e na inexorabilidade de transformações sociais
que serão negativas para outros. A grande questão é que, se acerca de um
fenômeno novo, mesmo os cientistas sociais ainda não conseguem descrever suas
características e abrangência com muita precisão, que dirá o conjunto da
sociedade, o qual vive – de modo muito diferenciado entre si – o antigo e o
novo, o “atual” e o “pós” sem fronteiras espaço-temporais definidas. Assim
sendo, é a partir da compreensão de que há uma fusão do mundo pandêmico com o
“pós-pandêmico” neste ano de 2020, um espaço-tempo alargado e
indeterminadamente prolongado, que arriscamos essa reflexão.
Dito isto, decorre que perguntamo-nos incessantemente: o
que será do mundo e de nossas vidas após essa pandemia de escala global, em um
mundo que parecia se tornar cada vez mais conectado? É possível arriscar uma
série de mudanças e transformações em diversas áreas da vida em sociedade e não
iremos nos furtar de apontá-las. Contudo, o que talvez haja de mais novo e característico
em termos de mudanças em curso, seja o imediatismo para que tais transformações
sejam apontadas, catalogadas e definidas. Quem se dedica a estudar o
comportamento humano busca descortinar o mundo pós-pandemia com o mesmo vigor
que cientistas, médicos e pesquisadores da área da saúde buscam uma vacina.
Ainda poucas semanas após a Organização Mundial de Saúde elevar no dia 11 de
março o avanço da contaminação pela Covid-19 ao estado de pandemia, muitos de
nós já nos debruçávamos em pensar como seria o mundo pós-pandemia. E cá continuamos,
seguindo e fazendo o mesmo!
Para muitos de nós, os efeitos da pandemia – fossem, por
exemplo, na área de educação ou mesmo em relação ao comércio – resultariam de
um período de isolamento social mais ou menos prolongado: alguns dias ou
semanas de aulas seriam perdidos, bem como certas compras e eventos que já
estavam programados precisariam ser adiados por algumas semanas ou meses. Só
que, nestes pontos, não demorou muito para percebermos que estávamos enganados.
Classe, raça e gênero, sim, tornaram as consequências da
contaminação pelo vírus e os efeitos do isolamento social e da retração
econômica mais intensos para determinados segmentos das mais variadas
sociedades mundo afora, seguindo o padrão das estruturas de desigualdade
pré-existentes e impactando de maneira mais decisiva trabalhadores informais,
refugiados, mulheres, pessoas em privação de liberdade, povos tradicionais, idosos,
negros, dentre outros. Assim, o ano de 2020 abre e fecha janelas de
oportunidades e possibilidades ambíguas e bifurcadas em várias áreas e na
maioria dos países do mundo ao mesmo tempo. Por mais complexo que seja não
resistirmos ao imediatismo e aderirmos à onda de precisar como seria esse “pós”,
podemos aqui nos arriscar a falar de algumas áreas e alguns destes efeitos e
das descobertas que já acreditamos termos feito nessa fusão que compulsivamente
promovemos entre a pandemia e o seu dia seguinte, caso haja.
Para dar exemplo, vamos priorizar e falar primeiro da
educação. Se em relação à saúde aconteceu e ainda acontece de pessoas serem
submetidas a um tratamento com cloroquina, medicamento sobre o qual estava
comprovado apenas seus efeitos colaterais e em nada os efeitos desejados, na
área de Educação se aplicou um similar malabarismo
mental na proposição da educação ou ensino à distância, o EaD: “se não há provas de que funciona, também não há provas de
que não funciona”. Neste sentido mesmo que o ano letivo de 2020 não termine, a
aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio ocorrerá em janeiro de 2021, tendo
sido adiada, após muita pressão popular, em cerca de dois meses apenas. Na
Educação Básica e Superior, instituições privadas correram para implementar
sistemas de ensino remoto para não deixar os seus clientes sem receber seus
serviços e continuar com a cobrança de mensalidades. Quanto às instituições
públicas de ensino, já precárias em tempos não-pandêmicos, continuaram a deixar
os jovens de classes populares para trás – agora turbinado pelo viés da
desigualdade do acesso às tecnologias de informação e comunicação – o que vamos
notar que impactará seriamente indicadores de qualidade como a evasão e
retenção de alunos.
Contudo, esse otimismo ingênuo do “pós” abriu uma janela
para que vislumbrássemos a importância do papel da escola e do professor para a
sociedade. Muitos pais, mães e responsáveis, sobretudo os da classe média,
passaram a conhecer melhor e mais de perto seus filhos: aquelas crianças e
jovens com quem conviviam muito pouco tempo, mesmo nos finais de semana e nas
férias, mas que agora estavam ali, em tempo integral e em jornada tripla, necessitando
de seu suporte, ao mesmo tempo em que se descobre que o mundo moderno nos fez
acostumar com residências demasiado pequenas, resultado da especulação
imobiliária e de tamanho tempo que desperdiçamos fora de casa, seja no
trânsito, ou realizando atividades para complementar a renda, em especial nos
grandes centros urbanos. Muitos de nós acabamos por descobrir que nossas
residências não foram feitas para que nós passássemos o dia inteiro –
acordados, estudando, trabalhando e acompanhados – nelas. Que dirá ainda das
famílias de mais baixa renda nessas mesmas grandes cidades, onde as residências
são muito menores e com precariedades, como a escassez de serviços básicos,
além da violência, muito maiores, e necessitando realizar o isolamento social e
manter a renda familiar da mesma forma, mas com condições materiais
praticamente inviáveis.
Se o reconhecimento às professoras e professores for para
além dos parabéns e homenagens no dia 15 de outubro, caso se dê em termos concretos,
ou seja, na garantia do direito à formação continuada, na valorização da
carreira e do salário, em melhores condições de trabalho e na possibilidade de
se dedicar a uma única escola, por exemplo, temos grandes chances de avançar.
Porém, dados os mais de 5600 planos de carreira para professores e
profissionais da educação que temos nas nossas três esferas de poder, tal
valorização só seria possível a partir de um debate mais aprofundado sobre a
federalização da carreira docente de norte a sul do país, mas até agora, o
mundo “pós-pandêmico” ainda não parece preparado para essa conversa.
Já em relação à economia, o imediatismo do “pós” nos
levou a perceber consensos importantes a respeito da participação do Estado na
economia. Digamos que, se o ideário neoliberal correspondesse a papéis ou ações
no mercado financeiro, nesse momento, ele estaria passando pela sua maior
desvalorização e tendência de queda na história. Nosso desastre é que ocorre
que o Brasil segue, em alguma medida, como que comprando esses títulos
podres do neoliberalismo, quando busca dar prosseguimento a uma tal “agenda
de reformas” extremamente anacrônica que visa atrair investimento de mercados
privados, mas que na prática só enfraquece a prestação dos serviços públicos
mais elementares e mantém a concentração da renda e a hegemonia do capital concentrado basicamente em cinco instituições financeiras.
Grande parte dos países da Europa e a China, por exemplo,
não foram nessa linha. Nosso dilema segue porque, comprovadamente, os dogmas do
neoliberalismo não têm capacidade nem instrumentos para superar essa crise.
Nesse sentido, a fusão do mundo pandêmico com o pós-pandêmico demonstraram que
“não há alternativa”: precisamos de uma regulação global emergencial e
coordenada do capital, para que se contenham outras tragédias, como a atual, do
colapso dos sistemas de saúde, do colapso (e não “mudanças”) do clima, além do
colapso social legado pela concentração de renda crescente nas últimas quatro décadas
de prevalência da ideologia neoliberal. Contudo, e mais uma vez, as condições
sociais e políticas do Brasil “pós-pandêmico”, não nos prepararam ainda
suficientemente para esta conversa. Ao menos o debate sobre uma renda básica de
cidadania, sobretudo a rapidez com que este chegou à cena pública, foi uma
grata surpresa. Contudo, este pode e deve vir acompanhado de um debate mais
amplo sobre a necessidade da progressividade no sistema tributário e a uma
noção de proteção e seguridade social mais ampliada.
Pra não dizer que não falamos da saúde. O debate nesta
área tem eixos importantes sendo deslocados nesse momento. O mais importante
julgo que seja o fato de que os negacionismos, mesmo que não saiam derrotados, de
certo modo são colocados em quarentena.
O desejo por uma vacina ou mesmo a preocupação com comorbidades modificam a
cena que tínhamos em mente acerca do “antigo normal”. Que isso se desdobre em
demandas por políticas públicas de saúde eficazes, valorização profissional e
democratização das carreiras médicas, enfim, na consolidação de sistemas de
saúde públicos, universais e gratuitos é algo que a vida no mundo
“pós-pandêmico” nos permite sonhar discretamente de modo mais concreto, dado
que a crise atual começou e precisa terminar através de descobertas e do
fortalecimento de áreas da saúde.
Em síntese, a pandemia do novo coronavírus trouxe consigo
e disseminou talvez até em maior intensidade e abrangência, o medo. Seja o medo
de perder a vida ou um ente querido ou mesmo o emprego ou boa parte da renda. O
medo traz incertezas porque desestabiliza expectativas, faz cancelar projetos
pessoais e mina utopias, em que pese um pseudo-otimismo por parte dos
brasileiros[1]
por um mundo melhor após a pandemia. Acontece que pessoas com medo e minadas
por incertezas, não mudam o mundo, pois se ocupam menos com sonhos e com
utopias. Pessoas com medo não recuperam a economia. E muitos, mesmo que neguem
e não demonstrem o medo da contaminação pelo vírus – com ou sem “histórico de
atleta” – tem medo de começar a ter que ter medo do vírus, caso a própria
pessoa, ou alguém próximo, ou mesmo sua vida financeira, venham a ser afetadas
e até mesmo destruídas pelo vírus que ainda não passou, mas que segue fora do
controle, por mais que ele e seus efeitos se tornem conhecidos a cada dia.
De certo modo, a fusão da pandemia com a pós-pandemia
uniu o presente ao futuro e antecipou diversas distopias, como a da
predominância de novas tecnologias sobre todas as áreas da vida ou mesmo o dos
negacionismos científico e social. Ao contrário de fatalismo, imobilismo e
paralisia, a antecipação destas distopias podem nos levar ao limite de que, se
não temos mais expectativas de que as mudanças podem ser promovidas de modo
gradual e seguro – o que significa mantendo aquelas estruturas de desigualdade
pré-existentes – insurgências mais abruptas podem se colocar como alternativas
mais (ou unicamente) viáveis. Em um mundo de incertezas é mais provável
querermos arriscar, dado que temos pouco a perder. Se, de repente, mudaram as
perguntas quando pensávamos que tínhamos todas as respostas, parafraseando
Eduardo Galeano, visualizamos que inclusive nossas respostas, na verdade,
estavam erradas. Além de a distopia da fusão entre pandemia e “pós-pandemia” demonstrar
que as nossas respostas estavam erradas, mostra também que ainda não sabemos
muito bem as perguntas. Trabalho para os historiadores do século XXII quando
olharem para nossa época. O que eles depreenderão de nós dependerá, em larga
medida, das utopias que hoje ainda conseguimos enxergar para não deixarmos de
caminhar e seguirmos para uma era ou uma forma de sociabilidade que seja digna
de ser chamada muito mais do que de “pós”.
[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/73-dizem-que-serao-pessoas-melhores-no-mundo-pos-pandemia-mostra-datafolha.shtml Acesso em
07/09/2020.
Tocou em questões que, de alguma forma, nos inquietam. O alento vem do convite tipo: e no entanto, é preciso caminhar!
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