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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A vida no mundo “pós” pós-pandemia

Escrita por Leonardo Almeida da Silva (Sociólogo e Cientista Político. Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT-Cáceres).

 

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Eduardo Galeano

 

            O sociólogo Boaventura de Sousa Santos costuma dizer que cientistas sociais, no geral, antes de terem conceitos mais consolidados ou melhor elaborados sobre um certo fenômeno ou acontecimento, tendem a colocar o prefixo “pós” naquilo que é novo e, por consequência, ainda desconhecido. Dizer “pós”-“alguma coisa” é indicar que se trata de um fenômeno sobre o qual ainda há muito mais desconhecimento do que conhecimento a respeito. Geralmente trata-se de fenômenos sociais que já existem e influenciam a vida em sociedade, mas seguem como que ávidos por dossiês em artigos de revistas científicas para discuti-lo, pôsteres e mesas-redondas em Congressos e até mesmo teses, livros e profissionais que dediquem suas carreiras ou parte delas a compreendê-lo. E assim poderíamos falar da “pós” modernidade, da “pós” democracia, “pós” qualquer outra coisa. Peguemos o “pós-Guerra”, por exemplo. Era inicialmente um termo para designar um mundo que seria diferente de antes e durante a II Guerra Mundial, contudo, não se sabia ainda o mundo que restaria e ressurgiria após 1945. Bastava, portanto, colocar o “pós” para designar um momento e uma realidade diferentes e ainda desconhecidos, do qual a única certeza inicial era a de que seria diferente daquele passado ainda bem recente. Desse modo, atualmente, 75 anos depois, “pós-Guerra” tornou-se uma ideia, ou mesmo um conceito, muito mais preciso e consolidado do que em finais da década de 1940.

            Entretanto, os grandes acontecimentos históricos geram muito mais do que discussões, debates, livros e linhas de pesquisa acadêmicas. Eles impactam decisivamente a vida em sociedade, a economia, as instituições. Alteram as expectativas e provocam reações, perdas e prejuízos, bem como podem acarretar em ganhos para alguns e na inexorabilidade de transformações sociais que serão negativas para outros. A grande questão é que, se acerca de um fenômeno novo, mesmo os cientistas sociais ainda não conseguem descrever suas características e abrangência com muita precisão, que dirá o conjunto da sociedade, o qual vive – de modo muito diferenciado entre si – o antigo e o novo, o “atual” e o “pós” sem fronteiras espaço-temporais definidas. Assim sendo, é a partir da compreensão de que há uma fusão do mundo pandêmico com o “pós-pandêmico” neste ano de 2020, um espaço-tempo alargado e indeterminadamente prolongado, que arriscamos essa reflexão.

            Dito isto, decorre que perguntamo-nos incessantemente: o que será do mundo e de nossas vidas após essa pandemia de escala global, em um mundo que parecia se tornar cada vez mais conectado? É possível arriscar uma série de mudanças e transformações em diversas áreas da vida em sociedade e não iremos nos furtar de apontá-las. Contudo, o que talvez haja de mais novo e característico em termos de mudanças em curso, seja o imediatismo para que tais transformações sejam apontadas, catalogadas e definidas. Quem se dedica a estudar o comportamento humano busca descortinar o mundo pós-pandemia com o mesmo vigor que cientistas, médicos e pesquisadores da área da saúde buscam uma vacina. Ainda poucas semanas após a Organização Mundial de Saúde elevar no dia 11 de março o avanço da contaminação pela Covid-19 ao estado de pandemia, muitos de nós já nos debruçávamos em pensar como seria o mundo pós-pandemia. E cá continuamos, seguindo e fazendo o mesmo!

            Para muitos de nós, os efeitos da pandemia – fossem, por exemplo, na área de educação ou mesmo em relação ao comércio – resultariam de um período de isolamento social mais ou menos prolongado: alguns dias ou semanas de aulas seriam perdidos, bem como certas compras e eventos que já estavam programados precisariam ser adiados por algumas semanas ou meses. Só que, nestes pontos, não demorou muito para percebermos que estávamos enganados.

            Classe, raça e gênero, sim, tornaram as consequências da contaminação pelo vírus e os efeitos do isolamento social e da retração econômica mais intensos para determinados segmentos das mais variadas sociedades mundo afora, seguindo o padrão das estruturas de desigualdade pré-existentes e impactando de maneira mais decisiva trabalhadores informais, refugiados, mulheres, pessoas em privação de liberdade, povos tradicionais, idosos, negros, dentre outros. Assim, o ano de 2020 abre e fecha janelas de oportunidades e possibilidades ambíguas e bifurcadas em várias áreas e na maioria dos países do mundo ao mesmo tempo. Por mais complexo que seja não resistirmos ao imediatismo e aderirmos à onda de precisar como seria esse “pós”, podemos aqui nos arriscar a falar de algumas áreas e alguns destes efeitos e das descobertas que já acreditamos termos feito nessa fusão que compulsivamente promovemos entre a pandemia e o seu dia seguinte, caso haja.

            Para dar exemplo, vamos priorizar e falar primeiro da educação. Se em relação à saúde aconteceu e ainda acontece de pessoas serem submetidas a um tratamento com cloroquina, medicamento sobre o qual estava comprovado apenas seus efeitos colaterais e em nada os efeitos desejados, na área de Educação se aplicou um similar malabarismo mental na proposição da educação ou ensino à distância, o EaD: “se não há provas de que funciona, também não há provas de que não funciona”. Neste sentido mesmo que o ano letivo de 2020 não termine, a aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio ocorrerá em janeiro de 2021, tendo sido adiada, após muita pressão popular, em cerca de dois meses apenas. Na Educação Básica e Superior, instituições privadas correram para implementar sistemas de ensino remoto para não deixar os seus clientes sem receber seus serviços e continuar com a cobrança de mensalidades. Quanto às instituições públicas de ensino, já precárias em tempos não-pandêmicos, continuaram a deixar os jovens de classes populares para trás – agora turbinado pelo viés da desigualdade do acesso às tecnologias de informação e comunicação – o que vamos notar que impactará seriamente indicadores de qualidade como a evasão e retenção de alunos.

            Contudo, esse otimismo ingênuo do “pós” abriu uma janela para que vislumbrássemos a importância do papel da escola e do professor para a sociedade. Muitos pais, mães e responsáveis, sobretudo os da classe média, passaram a conhecer melhor e mais de perto seus filhos: aquelas crianças e jovens com quem conviviam muito pouco tempo, mesmo nos finais de semana e nas férias, mas que agora estavam ali, em tempo integral e em jornada tripla, necessitando de seu suporte, ao mesmo tempo em que se descobre que o mundo moderno nos fez acostumar com residências demasiado pequenas, resultado da especulação imobiliária e de tamanho tempo que desperdiçamos fora de casa, seja no trânsito, ou realizando atividades para complementar a renda, em especial nos grandes centros urbanos. Muitos de nós acabamos por descobrir que nossas residências não foram feitas para que nós passássemos o dia inteiro – acordados, estudando, trabalhando e acompanhados – nelas. Que dirá ainda das famílias de mais baixa renda nessas mesmas grandes cidades, onde as residências são muito menores e com precariedades, como a escassez de serviços básicos, além da violência, muito maiores, e necessitando realizar o isolamento social e manter a renda familiar da mesma forma, mas com condições materiais praticamente inviáveis.

            Se o reconhecimento às professoras e professores for para além dos parabéns e homenagens no dia 15 de outubro, caso se dê em termos concretos, ou seja, na garantia do direito à formação continuada, na valorização da carreira e do salário, em melhores condições de trabalho e na possibilidade de se dedicar a uma única escola, por exemplo, temos grandes chances de avançar. Porém, dados os mais de 5600 planos de carreira para professores e profissionais da educação que temos nas nossas três esferas de poder, tal valorização só seria possível a partir de um debate mais aprofundado sobre a federalização da carreira docente de norte a sul do país, mas até agora, o mundo “pós-pandêmico” ainda não parece preparado para essa conversa.        

            Já em relação à economia, o imediatismo do “pós” nos levou a perceber consensos importantes a respeito da participação do Estado na economia. Digamos que, se o ideário neoliberal correspondesse a papéis ou ações no mercado financeiro, nesse momento, ele estaria passando pela sua maior desvalorização e tendência de queda na história. Nosso desastre é que ocorre que o Brasil segue, em alguma medida, como que comprando esses títulos podres do neoliberalismo, quando busca dar prosseguimento a uma tal “agenda de reformas” extremamente anacrônica que visa atrair investimento de mercados privados, mas que na prática só enfraquece a prestação dos serviços públicos mais elementares e mantém a concentração da renda e a hegemonia do capital concentrado basicamente em cinco instituições financeiras.

            Grande parte dos países da Europa e a China, por exemplo, não foram nessa linha. Nosso dilema segue porque, comprovadamente, os dogmas do neoliberalismo não têm capacidade nem instrumentos para superar essa crise. Nesse sentido, a fusão do mundo pandêmico com o pós-pandêmico demonstraram que “não há alternativa”: precisamos de uma regulação global emergencial e coordenada do capital, para que se contenham outras tragédias, como a atual, do colapso dos sistemas de saúde, do colapso (e não “mudanças”) do clima, além do colapso social legado pela concentração de renda crescente nas últimas quatro décadas de prevalência da ideologia neoliberal. Contudo, e mais uma vez, as condições sociais e políticas do Brasil “pós-pandêmico”, não nos prepararam ainda suficientemente para esta conversa. Ao menos o debate sobre uma renda básica de cidadania, sobretudo a rapidez com que este chegou à cena pública, foi uma grata surpresa. Contudo, este pode e deve vir acompanhado de um debate mais amplo sobre a necessidade da progressividade no sistema tributário e a uma noção de proteção e seguridade social mais ampliada.

            Pra não dizer que não falamos da saúde. O debate nesta área tem eixos importantes sendo deslocados nesse momento. O mais importante julgo que seja o fato de que os negacionismos, mesmo que não saiam derrotados, de certo modo são colocados em quarentena. O desejo por uma vacina ou mesmo a preocupação com comorbidades modificam a cena que tínhamos em mente acerca do “antigo normal”. Que isso se desdobre em demandas por políticas públicas de saúde eficazes, valorização profissional e democratização das carreiras médicas, enfim, na consolidação de sistemas de saúde públicos, universais e gratuitos é algo que a vida no mundo “pós-pandêmico” nos permite sonhar discretamente de modo mais concreto, dado que a crise atual começou e precisa terminar através de descobertas e do fortalecimento de áreas da saúde. 

            Em síntese, a pandemia do novo coronavírus trouxe consigo e disseminou talvez até em maior intensidade e abrangência, o medo. Seja o medo de perder a vida ou um ente querido ou mesmo o emprego ou boa parte da renda. O medo traz incertezas porque desestabiliza expectativas, faz cancelar projetos pessoais e mina utopias, em que pese um pseudo-otimismo por parte dos brasileiros[1] por um mundo melhor após a pandemia. Acontece que pessoas com medo e minadas por incertezas, não mudam o mundo, pois se ocupam menos com sonhos e com utopias. Pessoas com medo não recuperam a economia. E muitos, mesmo que neguem e não demonstrem o medo da contaminação pelo vírus – com ou sem “histórico de atleta” – tem medo de começar a ter que ter medo do vírus, caso a própria pessoa, ou alguém próximo, ou mesmo sua vida financeira, venham a ser afetadas e até mesmo destruídas pelo vírus que ainda não passou, mas que segue fora do controle, por mais que ele e seus efeitos se tornem conhecidos a cada dia.

            De certo modo, a fusão da pandemia com a pós-pandemia uniu o presente ao futuro e antecipou diversas distopias, como a da predominância de novas tecnologias sobre todas as áreas da vida ou mesmo o dos negacionismos científico e social. Ao contrário de fatalismo, imobilismo e paralisia, a antecipação destas distopias podem nos levar ao limite de que, se não temos mais expectativas de que as mudanças podem ser promovidas de modo gradual e seguro – o que significa mantendo aquelas estruturas de desigualdade pré-existentes – insurgências mais abruptas podem se colocar como alternativas mais (ou unicamente) viáveis. Em um mundo de incertezas é mais provável querermos arriscar, dado que temos pouco a perder. Se, de repente, mudaram as perguntas quando pensávamos que tínhamos todas as respostas, parafraseando Eduardo Galeano, visualizamos que inclusive nossas respostas, na verdade, estavam erradas. Além de a distopia da fusão entre pandemia e “pós-pandemia” demonstrar que as nossas respostas estavam erradas, mostra também que ainda não sabemos muito bem as perguntas. Trabalho para os historiadores do século XXII quando olharem para nossa época. O que eles depreenderão de nós dependerá, em larga medida, das utopias que hoje ainda conseguimos enxergar para não deixarmos de caminhar e seguirmos para uma era ou uma forma de sociabilidade que seja digna de ser chamada muito mais do que de “pós”.

 

 



[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/73-dizem-que-serao-pessoas-melhores-no-mundo-pos-pandemia-mostra-datafolha.shtml Acesso em 07/09/2020.

Um comentário:

  1. Tocou em questões que, de alguma forma, nos inquietam. O alento vem do convite tipo: e no entanto, é preciso caminhar!

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