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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Problemas de transparência e planejamento: alterações na relação Legislativo-Executivo no processo orçamentário brasileiro

Escrito por Vitor Vasquez (Professor Substituto da UFPI) e Raul Bonfim (Doutorando em Ciência Política na Unicamp).

O plenário da Câmara dos Deputados durante votação da PEC dos Precatórios | Cristiano Mariz. Fonte: O Globo.

O orçamento federal tem ocupado lugar central no debate público recente. O eixo da discussão tem girado em torno do polêmico “orçamento secreto”. Em termos técnicos, o orçamento secreto corresponde às emendas orçamentárias de relator-geral alocadas ao Projeto de Lei do Orçamento Anual (PLOA). Em matérias publicadas no ano, o jornal O Estado de São Paulo afirma que esses recursos têm sido utilizados para beneficiar uma parcela dos congressistas sem que seja possível identificar o autor da indicação e a localidade destino.  Portanto, sem que seja dada a devida transparência à execução desta parcela do orçamento.

Contudo, não devemos derivar disso que a participação do Legislativo no orçamento da União seja algo necessariamente novo e sem transparência. Desde 1988, a Constituição Federal (CF-88) condiciona as regras e os limites para essa atuação. De modo complementar, a Resolução n°1 de 2006 do Congresso Nacional (RCN 1/2006) regulamentou as formas de participação dos legisladores nesse processo.

Nos termos inscritos na CF-88, as emendas do relator-geral servem para corrigir erros e preencher omissões da proposta original encaminhada pelo Poder Executivo. Sua principal função seria ajustar as despesas e as receitas, garantindo que os recursos federais sejam suficientes para a implementação das políticas prioritárias do governo. Por outro lado, a RCN 1/2006 define outros dois tipos de emendas ao orçamento: individuais, apresentadas por deputados e senadores; e coletivas, apresentadas por bancadas estaduais e pelas comissões permanentes A novidade nas emendas de relator-geral, inicialmente previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, está em sua capacidade de propor despesas e programações não previstas no orçamento anual, contrariando as normas inscritas na CF-88.

 A ampliação da participação do Legislativo no Orçamento Geral da União (OGU) não se restringe às emendas de relator-geral. Nos últimos anos, três Emendas Constitucionais (ECs) relativas ao tema foram anexadas à CF-88. Em 2015,  o Congresso Nacional aprovou a EC 86/2015, que tornou obrigatória a execução das emendas individuais em até 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) do ano anterior, sendo metade dos recursos direcionados à área de saúde. Em junho de 2019, foi aprovada a EC 100/ 2019, que tornou impositiva a execução das emendas de bancada estadual. Nos termos da regra, o governo deve pagá-las em até 1% da RCL do ano anterior. Por fim, em dezembro do mesmo ano, foi aprovada a EC 105/2019, que criou a modalidade de transferências especiais para as emendas individuais, permitindo aos parlamentares direcionar recursos destas emendas para estados e municípios, sem vinculá-los à agenda de políticas do governo. A partir deste novo dispositivo, os entes beneficiados passaram a aplicar os recursos recebidos de acordo com suas prioridades locais.

O resultado imediato dessas mudanças foi o aumento substancial dos valores liberados para emendas orçamentárias, conforme se observa no gráfico que segue.


*Os valores empenhados em 2021 compreendem o período de vai de janeiro a novembro do corrente ano.

 Os valores empenhados cresceram de forma significativa em 2020 e 2021. Se em 2017 esses valores correspondiam a R$ 13,2 bilhões, em 2020 saltaram para R$ 39,3 bilhões. Isso representa um aumento de quase 300% nos repasses de emendas.

A participação do Legislativo no orçamento via emendas é legítima e fortalece o processo de representação democrática. Deputados federais e senadores conhecem bem as demandas locais da população e podem atendê-las através deste mecanismo. Além disso, as emendas orçamentárias viabilizam que recursos federais cheguem em localidades que muitas vezes não são alcançadas pelo governo federal. No entanto, como qualquer processo democrático, a transformação das emendas em política pública deve ser transparente e bem planejada. É preciso que prioridades sejam elencadas e que o uso do orçamento seja rastreável.

As novidades colocadas pelas atuais emendas de relator-geral pecam nestes dois aspectos (planejamento e transparência). Primeiro por permitir que novas despesas e programações sejam incluídas na proposta original, dissipando as prioridades definidas pelo governo federal. Segundo que, por impossibilitar o rastreamento do autor da emenda e do seu local de aplicação, veda-se a devida transparência que esta alocação de recurso deveria ter. Concomitantemente, a modalidade de transferências especiais para emendas individuais, autorizada pela EC 105/2019, desvirtua o planejamento orçamentário previsto na CF-88, pois o texto constitucional exige que as emendas apresentadas a programações da LOA sejam compatíveis com o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Nesses termos, as emendas deveriam ser inseridas em programações fixadas no planejamento de médio prazo do governo. As mudanças recentes no arcabouço constitucional inviabilizam esse processo.

Para o exercício financeiro de 2021, que ainda não se encerrou, foram autorizados R$ 2 bilhões em emendas sem destinação definida – transferências especiais – e R$ 16,8 bilhões para emendas de relator. Juntas, ambas as despesas correspondem a 52,6% do total previsto para as emendas orçamentárias. Ainda que esses recursos sejam de pequeno porte frente ao total das despesas primárias discricionárias da União, eles têm o potencial de impactar diretamente a vida da população, especialmente em um contexto de Covid-19, queda do crescimento econômico, desemprego e aumento da desigualdade social.

Eles ganham ainda mais importância em um momento em que os investimentos públicos atingem seu patamar mais baixo nos últimos anos. Vale lembrar que é por meio desse grupo de despesas, por exemplo, que as universidades federais adequarão suas estruturas físicas para garantir o retorno das aulas presenciais. Entretanto, no ritmo atual de desembolso, especialmente na área de educação, é improvável que se viabilize um retorno presencial apropriado. O gráfico abaixo apresenta os valores autorizados – previsão de gastos – referentes aos investimentos totais e com recorte para a área de educação nos últimos 11 anos.


*Os dados de 2021 são referentes aos valores autorizados até outubro do corrente ano. 

Os valores autorizados para emendas individuais via transferências especiais e emendas de relator-geral são superiores aos valores autorizados para a área de educação nos últimos seis anos. Em termos comparativos, esses montantes correspondem a quase 40% dos investimentos autorizados até o momento em 2021. Insistimos, nosso ponto não é questionar a legitimidade das alterações e indicações feitas pelo Legislativo no orçamento, algo já previsto na CF-88. Entretanto, é alarmante que grande parte dessas indicações “driblem” o planejamento orçamentário e dissipem as prioridades do orçamento, além de não seguir um dos princípios basilares do orçamento público, que é a transparência. Recentemente, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Webber, determinou a suspensão do pagamento das emendas de relator-geral e, paralelamente, a divulgação imediata de como essas emendas estavam sendo utilizadas. No entanto, a execução foi novamente autorizada, desde que sigam as novas diretrizes de transparência aprovadas pelo Legislativo .

Cabe ressaltar que o processo de desmonte do planejamento orçamentário ocorre, no mínimo, com a conivência do Poder Executivo. O governo de Jair Bolsonaro (recém filiado ao PL) renunciou da sua função de definir prioridades e coordenar o processo de formulação do orçamento federal. A exemplo disso, em novembro de 2019, o próprio Executivo encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 188 de 2019 que, entre outros objetivos, visa extinguir o PPA, principal instrumento de planejamento de médio prazo do governo. Também em 2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante audiência na Comissão Mista de Orçamento para discutir o PLOA de 2020 (PLN 22/19) e de Projeto de Lei do Plano Plurianual (PLPPA) 2020-2023 (PLN 21/19), fez a seguinte afirmação: “Vamos transformar o Congresso na Casa que efetivamente representa o povo, porque representar o povo é controlar o Orçamento. O Congresso existe para decidir para onde vão os recursos públicos”. Estes eventos ilustram como atual o governo federal tem procurado transferir para outras instâncias uma responsabilidade constitucional que, por essência, é sua.

Quanto ao processo de execução do orçamento secreto, diferente das emendas impositivas individuais e de bancada estadual – que são de execução obrigatória e só podem ser contingenciadas na mesma proporção das outras despesas discricionárias –, as emendas de relator-geral possuem um caráter autorizativo, cabendo ao Poder Executivo determinar seu processo de execução, podendo, caso tenha interesse, contingenciá-las. Isso quer dizer que a própria viabilidade do orçamento secreto é resultado da falta de interesse (ou de capacidade?) do governo em gerir o orçamento da União. Ao abdicar de seu papel de coordenador do processo orçamentário, o Executivo abriu espaço para que a lógica de planejamento do orçamento federal fosse alterada, permitindo que interesses individuais fossem sobrepostos a interesses coletivos.  

O Congresso Nacional e as lideranças partidárias devem legislar para garantir a transparência e o uso racional dos recursos públicos. Retirar essa responsabilidade do Legislativo é tapar o sol com a peneira e uma tentativa de enquadrar esse agente institucional enquanto um ator passivo no processo legislativo brasileiro, algo que não condiz com as mudanças recentes na legislação orçamentaria. O orçamento federal deve ser resultado de acordos entre os Poderes Executivo e Legislativo que garantam a prevalência dos interesses coletivos da sociedade brasileira.  Permitir que a lógica individual se sobressaia nesse processo significa inverter a essência existencial do Estado democrático.

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