Escrito por Ricardo
Bruno da Silva Ferreira (UFF)
Algum
tempo atrás, eu fui indagado por um aluno inscrito na matéria de Teoria
Política Contemporânea acerca da razão pela qual a leitura de O Estado e Revolução, obra publicada no
ano de 1918, pelo líder bolchevique Vladimir Lenin, constar como conteúdo
obrigatório em uma disciplina destinada a discutir temas e problemas políticos do
tempo presente. Apesar do aluno não deixar explícito o motivo que o levou a
fazer o referido questionamento, entendo que esta indagação deve ser explorada o
mais amplamente possível. Ao meu leitor não familiarizado com a área de
Ciências Sociais, e particularmente, com o conteúdo programático da disciplina
de Teoria Política Contemporânea, o que posso dizer de modo sucinto é que a
matéria abarca um apanhado de autores e obras clássicas do período histórico
compreendido entre o início do século XX até as duas primeiras décadas do
século XXI. Tratamos sobre os mais variados assuntos a partir de uma a
pluralidade conceitual, metodológica e epistemológica reunindo autores do
quilate de Joseph Schumpeter, Antonio Gramsci, Robert Dahl, Hannah Arendt e
Steven Levitsky. Dentre tantos autores debatidos, das mais variadas colorações
político-ideológicas, por que a pergunta incide justamente sobre um autor da
mais alta importância teórica? Por que não outro? A pergunta do aluno é
legítima, e deve ser respondida sem grandes elucubrações teóricas...
À época, a minha resposta ao questionamento do
aluno sobre a necessidade em se estudar a obra do revolucionário russo se
orientou no sentido de colocá-lo como um autor imprescindível para um determinado
tempo e lugar. Discorri sobre o fato de ter sido Lenin o autor mais traduzido
no mundo até a década de 1980, especialmente, devido à iniciativa internacional
de divulgação da União Soviética por meio das Edições Progresso. Nem mesmo Karl
Marx se aproximou de Lenin em relação ao número de publicações em todo este período.
Se isto por si só já constitui uma boa razão para sagrar o líder bolchevique
como digno de análise em nossa disciplina, argumentei ainda que grande parte da
Teoria Política de orientação socialista do século XX teve como referência
obrigatória (ainda que em alguns casos sob uma chave negativa) à obra de Lenin
abarcando intelectuais como Louis Althusser, Jean Paul Sartre, Theodor Adorno,
Marshall Berman, Noam Chomsky, Domenico Losurdo, Slavoj Zizek e Alain Badiou. O
que significa dizer é que Lenin é um daqueles autores em que é quase impossível se
manter indiferente. É um inventor de uma utopia social que se materializou por
meio de uma empreitada revolucionária levada a cabo por milhares de operários,
camponeses e soldados em uma Rússia fustigada pela fome e pelas mazelas da
guerra imperialista. A vida e a obra do revolucionário russo animaram e deram a
tônica da política internacional ao longo do século XX (seja para o bem ou para
o mal) inspirando a criação de partidos de esquerda, movimentos guerrilheiros,
bem como a organização disciplinada da classe trabalhadora por meio de
sindicatos nos mais diferentes países do globo. A influência de Lenin se
verifica ainda em processos revolucionários que transbordaram as fronteiras do
território russo (Iugoslávia, China, Cuba, Vietnam, Camboja, Coréia ...). Pois
bem, apesar da resposta abrangente a uma pergunta aparentemente simples ainda
não me dei por satisfeito...
Não
é a primeira vez que me deparo com este tipo de questionamento, ainda mais se
tratando da obra de Lenin. Diante da recorrência e da relevância do assunto,
decidi rabiscar mais algumas notas gerais sem grande rigor analítico. Espero
ser minimamente bem-sucedido nesta investida adotando como estratégia
argumentativa um percurso pouco habitual. Não me proponho a defender Lenin, mas
desejo situá-lo dentro de um contexto maior, como um autor clássico na história
do Pensamento Político. A questão que se coloca é a seguinte: o que torna um determinado
autor imprescindível, ou melhor dizendo, o que o transforma em um clássico? Em
seguida, poderíamos nos perguntar também: Por que Lenin não deveria estar entre
os autores clássicos da teoria política? Qual o motivo plausível de tal
exclusão? A obra de Lenin não seria mais relevante nos dias atuais? Teria Lenin
perdido o seu brilho originário? Provavelmente não conseguirei responder a
todas estas indagações, mas ao menos buscarei explicar a importância das obras
e dos autores clássicos a despeito do domínio do conhecimento em questão.
Em
documentário produzido pela Discovery acerca da obra do renascentista italiano
Nicolau Maquiavel, o filósofo político Roger D. Masters apresenta as razões
pelas quais, segundo o seu entendimento, a obra O Príncipe teria entrado para a história como um clássico do
pensamento político moderno:
Há certos
livros que são suficientemente complicados. Eles têm uma mensagem para pessoas
diferentes em momentos diferentes porque de algum modo eles tocam em um aspecto
fundamental da experiência humana. A República
de Platão é um exemplo disso, o Contrato
Social de Rousseau, ... O Príncipe
de Maquiavel é um livro como esses. Ele lida com um aspecto da vida humana de
uma maneira muito profunda. O aspecto central é a essência da função dos
líderes e porque os líderes são necessários em qualquer comunidade humana
complexa[1].
A
passagem citada acima nos possibilita imputar ao clássico à marca da
atemporalidade. Uma obra atemporal é toda aquela que transcende qualquer
delimitação temporal, isto é, vai muito além da época na qual foi produzida
(seja décadas ou mesmo séculos). No prefácio de O Príncipe, o sociólogo Raymond Aron argumenta que este opúsculo
não teria conservado apenas a sua juventude, mas especialmente o seu poder de
fascínio. Em certo sentido venho a concordar com Aron, pois basta pensar a
quantidade de releituras acerca de O
Príncipe que pulularam ao longo da história. Teria sido Maquiavel um
defensor do absolutismo monárquico ou teria sido um republicano dissimulado?
Várias foram as releituras deste clássico do Pensamento Político, e difícil
tarefa consiste em dizer qual é a mais acertada. Em uma nota d´O Contrato Social, o próprio Rousseau chegou
a defender Maquiavel como um bom cidadão, como alguém obrigado a disfarçar o
seu amor à liberdade apesar do seu sórdido herói renascentista, Cesare Borgia:
“Fingindo dar lições aos reis, deu-as, e grandes, aos povos. O príncipe é o livro de cabeceira dos
republicanos”[2].
Sem nos aprofundarmos no assunto, o ponto em questão é que a obra de Maquiavel
se mantém importante nos dias atuais, o que não significa desconsiderar o
contexto histórico ao qual foi produzida, notadamente, uma “Itália” marcada por
conflitos internos e pela prevalência de exércitos mercenários.
Há
ainda aquelas obras que já são por assim dizer um clássico de nascença. Um
destes exemplos é a Poliarquia, texto
publicado pelo cientista político estadunidense Robert Dahl no ano de 1971. Em
uma área sujeita a tantos modismos, esta obra seminal não perdeu a sua
jovialidade e continua a ser tão fundamental hoje quanto na época em que foi
escrita. Todo aquele que busca ser introduzido na discussão relativa à
democracia contemporânea deve tomar como referência obrigatória este estudo. A Poliarquia, além de analisar os processos
de democratização em curso ao longo do século XX, se valeu de fatores
eminentemente políticos para comparar os regimes existentes. Mais recentemente,
outros dois distintos cientistas políticos, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
publicaram uma obra de repercussão mundial imediata com potencial para se
tornar um destes clássicos de nascença, ou seja, uma obra de caráter atemporal,
que pode ser lida a qualquer momento a despeito do lugar e da época em que foi
produzida.
Gosto
de pensar que as obras clássicas são todas aquelas que nos possibilitam pensar
em problemas contemporâneos sob o prisma de um autor de uma época qualquer. Em
algum sentido, certos enunciados expostos pelo camarada Lenin no longínquo ano
de 1918 ainda são válidos nos dias atuais, apesar de todo o esforço liberal de
desqualificá-lo como um autor de pouca importância, datado no tempo e que nada
teria de relevante a nos dizer. Lenin foi um radical no sentido estrito da
palavra: foi à raiz dos problemas. E gostando ou não, a sua obra é tão
fascinante hoje quanto na época em foi escrita.
Referências Bibliográficas:
DAHL, Robert A.. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2015.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a Revolução: a doutrina do marxismo
sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. São Paulo: Boitempo,
2017.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as
democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
O PRÍNCIPE (Nicolau Maquiavel). Produção de Dale Minor. Maryland: Discovery Network, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LUDOnaqziLo&t=1957s. Acesso em: 15 mar. 2021.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário