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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Morte acima de tudo e indiferença acima de todos

 

Texto escrito por Flávia Mendes (UFF) e revisado por Ronaldo Vicente (UENF)  

  

O presidente Jair Bolsonaro tem como slogan desde a campanha presidencial a frase: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. No mínimo é curioso pensar que sua frase em nada condiz com o seu governo. Desde que tomou posse Bolsonaro muito mais nos envergonhou, seja em seus atos, suas roupas, sua maneira de falar, seus discursos nos eventos internacionais, nos diálogos com outros líderes mundiais, sua paixonite por Donald Trump, suas respostas e grosserias diárias com jornalistas, suas lives e, principalmente, suas atitudes e falas durante o ano de 2020.

Este ano ficará marcado na memória de todos como o estranho e difícil ano em que vivemos uma pandemia mundial, em que um vírus que nunca tínhamos ouvido falar nos trancou em casa, nos separou das pessoas que amamos, atrapalhou planos, adiou comemorações, festas, eventos e viagens. Ao mesmo tempo nos obrigou a olhar para nossa finitude como humanos, a única certeza que temos desde que nascemos mas que não pensamos diariamente, ou a vida tornaria-se insuportável. O novo vírus nos deixou de frente com a morte, e todos fomos obrigados a pensar na vida e pensar como protegê-la e como proteger os nossos. 

O vírus também escancarou as desigualdades da sociedade em que vivemos, as inúmeras violências produzidas pelo sistema capitalista e que no caso do Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, são enormes. Segundo o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulgado no final de 2019, somos o sétimo país mais desigual do mundo. Aqui pelas terras brasilis o 1% mais rico concentra 28,3% de toda a renda total do país. Os 10% mais ricos concentram 41,9% de toda a riqueza. Essa enorme desigualdade é fruto da união de inúmeros fatores e um processo histórico que vem desde a nossa colonização. A escravidão e o legado que ela nos deixou, como o racismo estrutural, é um dos fatores, além das questões de gênero e da maneira como os impostos são cobrados no Brasil. Aqui, grande parte da taxação de impostos é sobre o consumo, o que significa que ricos e pobres pagam o mesmo imposto sobre o feijão, arroz, leite, carne e outros produtos. Obviamente que para o 1% mais rico, o preço do arroz e do feijão subirem não faz muita diferença no orçamento do final do mês. 

Essa desigualdade que é característica do nosso país e que está presente em  nossa realidade há anos, foi escancarada quando a pandemia teve início e a quarentena foi decretada: nem todos podem ficar em casa e se proteger do vírus, nem todos tem casas confortáveis onde não fosse enlouquecedor ficar 24 horas por dias e por muitos dias, nem todos podem trabalhar de forma remota, nem todos tem emprego, nem todos tem internet em casa, nem todos tem espaço adequado em casa para estudar, nem todos tem casa.

A partir dessa desigual e violenta realidade que se mostrou mais clara durante a pandemia, se alguém não tinha ainda notado toda a desumanidade e perversidade que existe no presidente, ficou evidente, já que espera-se que um líder de Estado crie estratégias e ações para que o desconhecido que chegou por aqui nos ameaçando com a morte, nos afetasse o mínimo possível. No entanto, o oposto aconteceu e fomos obrigados a lidar diariamente com frases violentas, desumanas, infundadas e algumas vezes também mentirosas. No início, o presidente afirmou que era só uma gripezinha e não era necessário fazer nada; no mês seguinte, quando perguntado sobre o número de mortes disse que todos vamos morrer um dia; depois disse “e daí?”; também afirmou que não é coveiro quando o número de mortes não parava de subir; minimizou o problema porque só morreriam pessoas com mais de 40 anos; incentivou o uso de remédio que não serve para a doença em questão; em Agosto disse que por aqui vacina obrigatória seria apenas para o cachorro com quem postou uma selfie; recentemente disse que somos um país de maricas e sua última afirmação diz que a vacina pode transformar quem tomá-la em jacaré. 

Se o slogan Brasil acima de tudo fosse verdadeiro, provavelmente não teríamos chegado ao número de mortos que temos hoje enquanto esse texto é escrito (188.300 mortes), nenhuma das frases ditas acima teriam sido escutadas, já teríamos um plano de vacinação montado e não aquele rascunho mal feito de última hora para responder às provocações do governador de São Paulo, João Dória. Se algum nacionalismo e amor por este país corressem nas veias de Bolsonaro como a frase do seu slongan faz supor, o que já é ruim, viver uma pandemia mundial, não se tornaria pior, como o medo e insegurança sobre o que acontecerá conosco no próximo ano. Por enquanto acima de tudo corresponde ao número de casos e mortes que somamos. Nesse quesito, realmente, é Brasil acima de tudo.  

A política de Jair Bolsonaro é genocida. Ou em palavras simples, é uma política de morte. Giorgio Agamben (2004) em seu livro “Estado de Exceção” explica quando a exceção torna-se regra nas políticas de Estado. A regra deveria ser o Estado proteger as vidas dos seus cidadãos. A exceção, quando em casos de guerra ou ameaça, o estado de direito é suspenso e o Soberano passa a ter direito sobre a vida e a morte. Quando a regra deixa de ser o Estado proteger a vida e torna-se o Estado mata, existe uma escolha sobre quem deve viver e quem deve morrer. A exceção portanto, o Estado matar, torna-se regra. Assim, o que passa a existir é uma política de morte. Uma escolha de Estado sobre quem é descartável e quem não é. Essa é a lógica da biopolítica estatal em que o Estado passa a decidir sobre as nossas vidas e decide quem ele vai fazer viver e quem vai deixar morrer (FOUCAULT, 2010, p.202). 

Antropólogos ao pesquisarem outras culturas apontam traços semelhantes em povos distintos, características que podemos afirmar que nos tornam humanos. A sacralização da morte é uma delas. Sacralidade não no sentido religioso, mas sagrado que remete àquilo que nos importamos, ao que valorizamos. Porque valorizamos a vida, choramos nossos mortos, sentimos muito o número de vidas perdidas e que não para de crescer e ameaçar outras tantas. Também por isso nos causa espanto, assombro, medo, vergonha, raiva, revolta e pavor, a indiferença e a frieza do presidente. O slogan ideal para este governo seria morte acima de tudo e indiferença acima de todos. 



Referências bibliográficas 



AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004


FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 


FORTE, Bárbara. Por que o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/02/20/por-que-brasil-e-o-setimo-pais-mais-desigual-do-mundo.htm Acesso em: 22 Dez. 2020. 


G1, Globo.com. Casos e mortes por coronavírus no Brasil em 22 de dezembro, segundo consórcio de veículos de imprensa (atualização das 13h), 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/12/22/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-22-de-dezembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml Acesso em: 22 Dez. 2020. 


Revista Istoé. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-sobre-vacina-de-pfizer-se-voce-virar-um-jacare-e-problema-de-voce/Acesso em: 22 Dez. 2020.


DW. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/v%C3%ADrus-verbal-as-frases-de-bolsonaro-sobre-a-pandemia/g-54080275 Acesso em: 22 Dez. 2020. 

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