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sexta-feira, 21 de julho de 2023

A descoordenação da disciplina de Sociologia e a Polissemia Democrática: um fenômeno de causa e efeito.

Escrito por Emannuel Santana[i]

 

 A condição que se insere a disciplina de sociologia reflete na maneira como a Ciência se desenvolveu como campo de pensamento no Brasil[ii]. Seu caminho é perpassado por uma série de intercorrências ao longo dos séculos XX e XIX que justificam a intermitência no processo de institucionalização a que ela foi condicionada. Essa intermitência tem, como observamos, um grau elevado de importância na formação da tradição do ensino de Sociologia e, por conseguinte, no ensino de Ciência Política.

É possível identificar um processo descoordenado para que essa intermitência se mantivesse. As descontinuidades são inúmeras, por exemplo, durante a Ditadura Militar, houve uma descontinuidade da disciplina de sociologia em sala de aula, somada a uma ruptura no modo que os conteúdos de sociologia se desenvolviam. Em meados dos anos 1960, enquanto as principais escolas de Sociologia estavam se desenvolvendo, a presença de uma disciplina que abordasse de maneira científica seus conteúdos era mitigada. Outro exemplo é o processo da Reforma do Ensino Médio que agregou o caráter interdisciplinar à disciplina de Sociologia e, posteriormente, opcional. Logo, sob a ótica da trajetória histórica da disciplina nos currículos escolares é possível apontar para uma descoordenação da própria Sociologia de se apresentar enquanto uma área múltipla, com objetivos pertinentes para a produção de conhecimento, bem como transformação da sociedade, fazendo uso, inclusive, dos objetivos específicos das áreas adjacentes como Ciência Política e Antropologia.

Essa descoordenação pode ser percebida já nas legislações, que abordam em apenas uma disciplina temas de três áreas: Ciência Política, Sociologia e Antropologia, ou seja, sem se ater às especificidades e como cada área pode contribuir com a sociedade de maneira específica. Na prática, a descoordenação se apresenta na formação dos profissionais de educação das Ciências Sociais, que também é, por sua vez, interdisciplinar. Esse itinerário formativo é positivo para a formação desses profissionais. Não se trata aqui de uma crítica a interdisciplinaridade. Todavia, é possível notar que os currículos mínimos da disciplina de sociologia ao não abordarem de maneira específica os critérios analíticos da Ciência Política, permitindo que os conteúdos dessa ciência sejam trabalhados de maneira transversal e até mesmo por professores de outras áreas das ciências humanas, favorecem ainda mais a manutenção de um processo fragmentado de institucionalização da disciplina. Aliás, essa prática legislativa de apresentar a Sociologia com a representante das Ciências Sociais mais enfraquece do que favorece conceitos que fundamentam a construção dos objetivos práticos da disciplina - seja o da apreensão e prática da cidadania ou a produção de estranhamento e desnaturalização. Nesse sentido, nas legislações PCN, PCN+ e OCNem a interdisciplinaridade pode ser analisada positivamente por integrar as disciplinas de Ciências Humanas em um objetivo comum e favorecer o desenvolvimento de técnicas práticas para os jovens viverem e se relacionarem em sociedade. Mas elas também podem ser avaliadas negativamente ao não evidenciarem os objetivos centrais dos conteúdos e conceitos de Ciência Política, sendo acionados apenas para justificar os objetivos comuns das áreas.

A análise da BNCC leva-nos a uma reflexão sobre todo o processo de construção teórica e práxis das normas educacionais. Se podemos argumentar que a Reforma do Ensino Médio é reflexo de um projeto educacional de cunho neoliberal, também podemos afirmar que conceitos de poder e formação de Estado deixam de ser cada vez mais relevantes diante de perspectivas individualistas e meritocráticas, permitindo à sociedade se construir e se fortalecer de maneira desigual. A fim de perpetuar essas desigualdades, a justificativa da visão neoliberal para reformar o Ensino Médio é justamente a de garantir a liberdade, fantasiosa, de escolha. Não é sem razão a necessidade de diluir a possibilidade de crítica a esse processo presente na disciplina de sociologia, o que novamente põe em xeque a existência plena dos conteúdos de Ciência Política no Ensino Médio. A consequência é uma proposta neoliberal de interdisciplinaridade, que, aliada à tradição constituída tardiamente da disciplina de sociologia, relega a um grau de pequena importância os conteúdos de Ciência Política, afinal, a quem interessa o debate sobre democracia?

De forma coesa, uma série de movimentos políticos – tanto da esquerda quanto da direita política – estão interessados neste debate, que acontece primeiramente no campo simbólico. É possível perceber que, apesar de haver um significado “registrado” nos dicionários, a palavra Democracia por si só é uma amálgama de vários significados e contextos, que traz consigo muitos adjetivos. Diferentemente de outros modelos políticos, como Ditadura, Tirania, Monarquia (por exemplo), as experiências democráticas ao redor do planeta ultrapassam a ideia de “governo do povo”. Decorrente disso, e de uma forte operação de marketing político orquestrado pelos sujeitos ideologizados, há um fenômeno que entendemos por Polissemia Democrática. Ele é justamente o resultado dessa disputa simbólica, ocorrida primeiro no mercado simbólico da linguagem (BOURDIEU, 1998), que tensiona de maneira verbal e não-verbal não apenas a palavra, mas a própria democracia política no Brasil como um todo. Um dos objetivos desta disputa é justamente transformar, a partir de uma perspectiva ideologizante, a Educação a partir da descoordenação da disciplina de Ciência Política.

Todos esses contextos levam-nos a crer que o futuro da Ciência Política no Ensino Médio só pode ser garantido com legitimidade ao criar uma nova tradição de ensino, a partir de novas metodologias e processos, coordenando seus conteúdos em uma disciplina única. A institucionalização da Ciência Política não iria, no nosso entender, requerer uma desconfiguração da interdisciplinaridade com o qual ela é tratada, mas uma reorganização dessa metodologia, visando a necessidade de criar, para as próximas gerações, a cultura democrática necessária para garantir a sobrevivência de disciplinas como a Sociologia e seus objetivos educacionais e para além do âmbito educacional. Sua existência tira apenas da Sociologia a responsabilidade de analisar criticamente os fenômenos sociais e políticos, liberando espaço para que mais exercícios de estranhamento e naturalização possam ser trabalhados, e potencializaria dois objetivos que hoje fazem parte da disciplina de sociologia, mas são trabalhados em segundo plano: o letramento político e a construção de uma cultura democrática. A construção da identidade nacional vem por meio da educação, e é justamente com pressupostos factíveis, metodologicamente acertados, sociopoliticamente justificados e o fim das intermitências nas disciplinas de viés crítico que nossa sociedade pode reativar, a partir dos ambientes escolares, o sentimento de valorização da democracia e da coletividade.

O problema não será sanado com grandes reformas, nem com o surgimento de outras disciplinas e muito menos com o fim da interdisciplinaridade. O grande trunfo desse trabalho [a monografia] é mostrar que um possível enfrentamento pode estar diante de uma coordenação advinda de um projeto democrático de educação, construído a partir de um modelo real de participação e opinião dos sujeitos envolvidos no processo. A solução não passa simplesmente por “mais democracia” em razão de uma “ausência de democracia”, e sim pela definitiva entrada da Escola no campo de disputas simbólicas do significado de democracia, para contribuir ao Brasil e ao mundo com um modelo democrático inclusivo, plural, libertário, mas sobretudo nacional, trazendo a possibilidade de construir um país mais igualitário em oportunidades e possibilidades individuais e coletivas.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília, MEC, 2004.

 

______. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília, MEC, 1996.

 

______. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília, MEC, 1999.

 

______. Base Nacional Curricular Comum. Ministério da Educação. Brasília, MEC, 2017.

 

BOURDIEU, Pierre. Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

 

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010

 

DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

 



[i] Mestrando em Sociologia Política (PPGSP-UENF) e Graduado em Ciências Sociais(UFF). email: emannuelsantana@id.uff.br

[ii] Este texto é parte do trabalho monográfico do autor, apresentado à banca em Julho de 2022, contando com alguns adendos fruto de sua pesquisa de Mestrado em Sociologia Política, em andamento.