Escrito
por Emannuel Santana[i]
A condição que se insere a disciplina de
sociologia reflete na maneira como a Ciência se desenvolveu como campo de
pensamento no Brasil[ii].
Seu caminho é perpassado por uma série de intercorrências ao longo dos séculos
XX e XIX que justificam a intermitência no processo de institucionalização a
que ela foi condicionada. Essa intermitência tem, como observamos, um grau
elevado de importância na formação da tradição do ensino de Sociologia e, por
conseguinte, no ensino de Ciência Política.
É possível identificar um
processo descoordenado para que essa intermitência se mantivesse. As
descontinuidades são inúmeras, por exemplo, durante a Ditadura Militar, houve
uma descontinuidade da disciplina de sociologia em sala de aula, somada a uma
ruptura no modo que os conteúdos de sociologia se desenvolviam. Em meados dos
anos 1960, enquanto as principais escolas de Sociologia estavam se
desenvolvendo, a presença de uma disciplina que abordasse de maneira científica
seus conteúdos era mitigada. Outro exemplo é o processo da Reforma do Ensino
Médio que agregou o caráter interdisciplinar à disciplina de Sociologia e,
posteriormente, opcional. Logo, sob a ótica da trajetória histórica da
disciplina nos currículos escolares é possível apontar para uma descoordenação
da própria Sociologia de se apresentar enquanto uma área múltipla, com
objetivos pertinentes para a produção de conhecimento, bem como transformação
da sociedade, fazendo uso, inclusive, dos objetivos específicos das áreas
adjacentes como Ciência Política e Antropologia.
Essa descoordenação pode
ser percebida já nas legislações, que abordam em apenas uma disciplina temas de
três áreas: Ciência Política, Sociologia e Antropologia, ou seja, sem se ater
às especificidades e como cada área pode contribuir com a sociedade de maneira
específica. Na prática, a descoordenação se apresenta na formação dos
profissionais de educação das Ciências Sociais, que também é, por sua vez,
interdisciplinar. Esse itinerário formativo é positivo para a formação desses
profissionais. Não se trata aqui de uma crítica a interdisciplinaridade.
Todavia, é possível notar que os currículos mínimos da disciplina de sociologia
ao não abordarem de maneira específica os critérios analíticos da Ciência
Política, permitindo que os conteúdos dessa ciência sejam trabalhados de
maneira transversal e até mesmo por professores de outras áreas das ciências
humanas, favorecem ainda mais a manutenção de um processo fragmentado de
institucionalização da disciplina. Aliás, essa prática legislativa de
apresentar a Sociologia com a representante das Ciências Sociais mais
enfraquece do que favorece conceitos que fundamentam a construção dos objetivos
práticos da disciplina - seja o da apreensão e prática da cidadania ou a
produção de estranhamento e desnaturalização. Nesse sentido, nas legislações
PCN, PCN+ e OCNem a interdisciplinaridade pode ser analisada positivamente por
integrar as disciplinas de Ciências Humanas em um objetivo comum e favorecer o
desenvolvimento de técnicas práticas para os jovens viverem e se relacionarem
em sociedade. Mas elas também podem ser avaliadas negativamente ao não
evidenciarem os objetivos centrais dos conteúdos e conceitos de Ciência
Política, sendo acionados apenas para justificar os objetivos comuns das áreas.
A análise da BNCC leva-nos
a uma reflexão sobre todo o processo de construção teórica e práxis das normas
educacionais. Se podemos argumentar que a Reforma do Ensino Médio é reflexo de
um projeto educacional de cunho neoliberal, também podemos afirmar que
conceitos de poder e formação de Estado deixam de ser cada vez mais relevantes
diante de perspectivas individualistas e meritocráticas, permitindo à sociedade
se construir e se fortalecer de maneira desigual. A fim de perpetuar essas
desigualdades, a justificativa da visão neoliberal para reformar o Ensino Médio
é justamente a de garantir a liberdade, fantasiosa, de escolha. Não é sem razão
a necessidade de diluir a possibilidade de crítica a esse processo presente na
disciplina de sociologia, o que novamente põe em xeque a existência plena dos
conteúdos de Ciência Política no Ensino Médio. A consequência é uma proposta
neoliberal de interdisciplinaridade, que, aliada à tradição constituída
tardiamente da disciplina de sociologia, relega a um grau de pequena
importância os conteúdos de Ciência Política, afinal, a quem interessa o debate
sobre democracia?
De forma coesa, uma série
de movimentos políticos – tanto da esquerda quanto da direita política – estão
interessados neste debate, que acontece primeiramente no campo simbólico. É
possível perceber que, apesar de haver um significado “registrado” nos
dicionários, a palavra Democracia por si só é uma amálgama de vários
significados e contextos, que traz consigo muitos adjetivos. Diferentemente de
outros modelos políticos, como Ditadura, Tirania, Monarquia (por exemplo), as
experiências democráticas ao redor do planeta ultrapassam a ideia de “governo
do povo”. Decorrente disso, e de uma forte operação de marketing político
orquestrado pelos sujeitos ideologizados, há um fenômeno que entendemos por
Polissemia Democrática. Ele é justamente o resultado dessa disputa simbólica,
ocorrida primeiro no mercado simbólico da linguagem (BOURDIEU, 1998), que
tensiona de maneira verbal e não-verbal não apenas a palavra, mas a própria
democracia política no Brasil como um todo. Um dos objetivos desta disputa é
justamente transformar, a partir de uma perspectiva ideologizante, a Educação a
partir da descoordenação da disciplina de Ciência Política.
Todos esses contextos
levam-nos a crer que o futuro da Ciência Política no Ensino Médio só pode ser
garantido com legitimidade ao criar uma nova tradição de ensino, a partir de
novas metodologias e processos, coordenando seus conteúdos em uma disciplina
única. A institucionalização da Ciência Política não iria, no nosso entender,
requerer uma desconfiguração da interdisciplinaridade com o qual ela é tratada,
mas uma reorganização dessa metodologia, visando a necessidade de criar, para
as próximas gerações, a cultura democrática necessária para garantir a sobrevivência
de disciplinas como a Sociologia e seus objetivos educacionais e para além do
âmbito educacional. Sua existência tira apenas da Sociologia a responsabilidade
de analisar criticamente os fenômenos sociais e políticos, liberando espaço
para que mais exercícios de estranhamento e naturalização possam ser
trabalhados, e potencializaria dois objetivos que hoje fazem parte da
disciplina de sociologia, mas são trabalhados em segundo plano: o letramento
político e a construção de uma cultura democrática. A construção da identidade
nacional vem por meio da educação, e é justamente com pressupostos factíveis,
metodologicamente acertados, sociopoliticamente justificados e o fim das
intermitências nas disciplinas de viés crítico que nossa sociedade pode reativar,
a partir dos ambientes escolares, o sentimento de valorização da democracia e
da coletividade.
O problema não será
sanado com grandes reformas, nem com o surgimento de outras disciplinas e muito
menos com o fim da interdisciplinaridade. O grande trunfo desse trabalho [a
monografia] é mostrar que um possível enfrentamento pode estar diante de uma
coordenação advinda de um projeto democrático de educação, construído a partir
de um modelo real de participação e opinião dos sujeitos envolvidos no processo.
A solução não passa simplesmente por “mais democracia” em razão de uma
“ausência de democracia”, e sim pela definitiva entrada da Escola no campo de
disputas simbólicas do significado de democracia, para contribuir ao Brasil e
ao mundo com um modelo democrático inclusivo, plural, libertário, mas sobretudo
nacional, trazendo a possibilidade de construir um país mais igualitário em
oportunidades e possibilidades individuais e coletivas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para
o Ensino Médio. Brasília, MEC, 2004.
______. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e
Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília, MEC, 1996.
______. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e
Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília, MEC,
1999.
______. Base Nacional Curricular Comum. Ministério da
Educação. Brasília, MEC, 2017.
BOURDIEU, Pierre. Economia das Trocas
Linguísticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2010
DAHL, Robert. Poliarquia:
Participação e Oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
[i] Mestrando em Sociologia Política (PPGSP-UENF) e
Graduado em Ciências Sociais(UFF). email: emannuelsantana@id.uff.br
[ii] Este texto é parte do trabalho monográfico do autor,
apresentado à banca em Julho de 2022, contando com alguns adendos fruto de sua
pesquisa de Mestrado em Sociologia Política, em andamento.