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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Para além da representação política: a acumulação capitalista e o confinamento da participação política em perspectiva

 

Foto: Ricardo Stuckert in Fotos Públicas

Escrito por Leonardo Almeida (UNEMAT)[i]

 

A partir de uma tomada histórica que considere o desenvolvimento e o crescente caráter de complexificação que as sociedades e os modelos de democracia modernas assumem, grande parte do conjunto da teoria política moderna aceita sem maiores considerações a ideia de que a utilização da democracia direta e de seus possíveis mecanismos acessórios foram sendo paulatinamente considerados como inviáveis de serem estabelecidos em poleis complexas e amplas em seus aspectos territoriais e populacionais. Deste modo, a representação política termina por ser aceita como o principal mecanismo para a deliberação dos temas de domínio público no mundo moderno. Entretanto, a explicação de que o tamanho das populações e dos territórios das comunidades políticas do mundo moderno e industrial tornam inviáveis quaisquer formas de participação política diferente da representativa, é um viés explicativo que simplifica fenômenos que são muito mais amplos e complexos, dado que a inserção do dispositivo da representação política não foi uma mera decorrência histórica de um aumento demográfico e/ou da expansão dos territórios.

O ponto central para o qual apontamos neste contexto é o de não negligenciar os contatos que as instituições políticas consagradas estabelecem com outras esferas sociais. Pois, mais do que viabilizar o exercício do poder político em nome da coletividade em sociedades extensas, numerosas e complexas, o que se verifica é que o dispositivo da representação política através do método eleitoral possui uma afinidade eletiva com a amortização das demandas colocadas por este novo escopo do demos, o qual não é mais restrito à composição que possuía em períodos de pré-sufrágio, outrora masculino, adulto, proprietário e livre.

O viés liberal de democracia encontrou na ideia de representação a maneira com maior eficácia para manter o prisma da liberdade sobreposto ao da igualdade, dada a preocupação central dos teóricos clássicos do liberalismo com o direito de propriedade, pois centram a ideia de liberdade no indivíduo, e com isso coloca em outro plano a dimensão da igualdade. Ellen Wood, em Democracia contra capitalismo (2003), traz que a introdução da representação nos circuitos democráticos não teria sido meramente em razão da impossibilidade de se exercer a democracia direta em territórios extensos, mas que buscava, de fato, reduzir a pressão popular nos governos, garantindo, por outro lado, a presença e a prevalência de interesses originários das elites dominantes.

Quando da experiência helênica, de fato, apesar da restrição em relação a quem eram os portadores dos direitos políticos – pois não existia a perspectiva de inclusão de mulheres, estrangeiros e escravizados, por exemplo, que resultavam na maior parte da população – quem governava diretamente era de fato, os que eram entendidos como sendo o povo, os titulares dos direitos políticos em seu conjunto. Neste contexto, eleições e parlamento são dispositivos estranhos a esse experimento grego originário e, deste modo, considerados aristocráticos até, pelo menos, o século XVIII (MIGUEL, 2014).

Resumidamente, podemos dizer que este modelo de democracia liberal moderna consagra a democracia, seus valores e obrigações mais elementares confinados ao sistema político, enquanto entende o mercado e o sistema econômico como se fosse uma zona livre de democracia. Mesmo com esse mínimo de democracia que se vinculou às instituições políticas consagradas, nas esferas sociais para além da esfera política, a maioria das formas de sociabilidade estão marcadas por relações desiguais e autoritárias de privação de direitos sociais, civis e econômicos básicos, mesmo que ladeadas pela democracia política. Este fenômeno é um dado que resulta de uma construção fruto da disputa pelo significado do conceito de democracia em sociedades onde o capitalismo também insurgia, o que resultou no confinamento dos ideais democráticos ao sistema político, em seus vieses representativo e eleitoral.

Há fatores de viés econômico externos na relação entre os países centrais e os periféricos que fazem com que decisões no centro do capitalismo terminem por ser impostas a países em desenvolvimento, suplantando decisões tomadas em matéria eleitoral nessas nações. Um exemplo contemporâneo mais específico é a ideia de autonomia ou independência dos bancos centrais nacionais. Na Europa, o Banco Central Europeu dita verticalmente as políticas e regras de austeridade para a maioria dos países do bloco formado por pequenas economias, em especial as do Leste e do Sul do continente. Atualmente, então, é possível que um governante eleito esteja pleno de direito, mas esvaziado de fato, do poder do qual foi investido, já que este tem migrado fortemente para a esfera econômica, seja antes das eleições, através do financiamento privado – regulamentado ou não – de campanhas e de partidos políticos, seja durante os mandatos através de ações de lobby, ou ainda através do controle e concentração da propriedade dos meios de comunicação. No contexto brasileiro recente, um Banco Central independente – tal qual a Emenda Constitucional 95/2016 que impõe um teto de gastos em especial para a área social como a educação, a saúde e a assistência social por um período de 20 anos – representa que a política econômica de uma sociedade deva ser levada à frente com o mínimo de interferências populares ou mesmo do campo político institucional, ou seja, distante de anseios populares eventualmente manifestados nas eleições. Desta forma, por mais distorções que a representação política e o método eleitoral possam provocar, até deste mínimo de democracia o mercado capitalista contém uma força centrífuga para se esquivar. Dessa maneira, a economia produz e mantém instituições que viabilizam esse pacto colonial da esfera econômica sobre o sistema político e sobre o de intensidade já rebaixada, consenso democrático.

Essa distinção entre política, entendida como o único ente responsável pela defesa e efetivação dos mecanismos de promoção da igualdade, em oposição ao mercado, entendido como o campo da promoção da liberdade e isento de responsabilidades igualitárias é outro grande fosso legado pela teoria liberal ao longo dos últimos séculos. A diminuição da coesão social, o aumento do ódio de classe, o racismo, a exacerbação dos nacionalismos e da xenofobia, bem como a emergência de políticos e de correntes políticas com base nos valores segregacionistas são resultado desta relação tensa entre democracia e capitalismo. Os mecanismos de mercado não precisam, em tese, dar conta dos convulsionamentos que provocam em termos sociais.

Se é verdade que por um lado as eleições livres, universais e iguais contribuíram com determinados avanços específicos, como no caso para o surgimento deste Estado de Bem Estar Social (MARSHALL, 1967), por outro, essa conquista teve por efeito a desmobilização de espaços de luta social fora do campo político, já que toda insatisfação ou satisfação poderia ser exposta através do voto periodicamente, retirando assim, do horizonte de imaginação política dos progressistas do campo democrático, um ordenamento institucional pós-capitalista. E aqui podemos somar às correntes socialistas, também as trabalhistas, as socialdemocratas, as ambientalistas, as feministas etc. Essa isenção de democracia que o mercado e o sistema econômico recebem no capitalismo moderno, portanto, é uma construção que visa permitir, se não ampliar, os fundamentos sobre o qual o sistema está colocado, como o lucro, a propriedade privada e a acumulação de capital. O aprofundamento da democracia neste contexto provoca, de maneira intensa ou mesmo superficial, algum nível de ameaça a estes fundamentos e por isso a intensificação da democracia se configura necessariamente como uma ameaça ao capitalismo moderno, pois que de algum modo ameaçará a lucratividade, a produção da mais-valia, a propriedade individual, a acumulação de um capital cada vez mais financeirizado.

Referências Bibliográficas:


AGUILÓ, A., & ALMEIDA, L. (2021). Teoría de la Democracia de Boaventura de Sousa Santos: Radicalización y Descolonización Democrática. In: Utopía Y Praxis Latinoamericana, 27 (94), 256-271. Disponível em: https://produccioncientificaluz.org/index.php/utopia/article/view/36123 Acesso em: 28/07/2021.

MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.

MEDEIROS, Marcelo. A desigualdade no Brasil é disfuncional para a democracia. [Entrevista] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/04/politica/1446611627_268265.html Acesso em: 22/07/2021. 

MIGUEL, L. F. Democracia e representação: territórios em disputa. 1ª ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2014.

WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Boitempo, 2003.

 



[i] Sociólogo e Cientista Político. Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Os cinquenta anos da obra Poliarquia de Robert Dahl (1971-2021)

 



Escrito por Ricardo Bruno da Silva Ferreira (UFF)

 

Poucas são as obras que nascem com a marca da eternidade, que são por assim dizer, um "clássico de nascença", ou melhor dizendo, que a despeito das inúmeras mudanças históricas processadas no tempo tenham conservado a originalidade e a importância conceitual do período em que foram produzidas. Tão importante hoje quanto da década de 1970, a obra Poliarquia: participação e oposição, de autoria do cientista político estadunidense Robert Dahl (1915-2014), não perdeu o seu brilho de origem após cinco décadas em relação à primeira edição. Talvez não seja exagerado afirmar que a mensagem democrática que perpassa o conjunto da obra se reveste de certa imprescindibilidade teórica numa época balizada por certos arroubos autoritários de poder. Se é possível sugerir um telos que lastreia a Poliarquia é imperativo situá-la como um esforço sistemático de racionalização centrada no rigor analítico e na exposição responsável de dados empíricos a partir de um aparato conceitual complexo em sua simplicidade elementar.

Sem que soe como exagero, parto da simples ideia de que a Poliarquia se tornou de modo definitivo um patrimônio conceitual da Ciência Política, e por extensão, das Ciências Sociais. A meu ver, nenhum outro autor dos últimos cinquenta anos contribuiu de modo mais significativo do que Robert Dahl para o engrandecimento do léxico técnico da moderna análise política. Neste quesito em particular, sigo o percurso trilhado por Norberto Bobbio que definiu por clássico todo autor em que se pode atribuir o conjunto das três características fundamentais (2000, p. 130-131): a) que seja considerado como um intérprete autêntico do seu próprio tempo, cuja obra seja empregada como um instrumento indispensável para sua compreensão; b) que a sua leitura se mantenha atual com o passar dos anos, e que cada geração subsequente procure reinterpretá-la à luz das novas circunstâncias; e c) que tenha produzido teorias-modelo que nos valemos no nosso cotidiano acadêmico para a compreensão da realidade, ainda que o conceito em questão seja aplicado em um contexto distinto da realidade do autor angariando com o decorrer do tempo o estatuto de categoria mental para explicação de um conjunto de fenômenos. Diante dos fatores apontados, Poliarquia é não somente um clássico da Ciência Política Contemporânea, mas se constitui como referência obrigatória de qualquer pesquisa séria acerca dos processos de democratização sucedidos no século XX.

Valendo-se de variáveis palpáveis que possibilitam ao pesquisador a comparação entre os diferentes regimes políticos mundo afora, Dahl se preocupou com o processo de transição de formas autoritárias de governo para regimes centrados na participação popular e na liberalização da sociedade. Se a discussão sobre o processo de transição de regimes não é algo novo na literatura política (basta lembrar das passagens de Aristóteles na Política ainda no século IV a.C), coube a Robert Dahl destrinchar as principais teses acerca da transição democrática do pós-guerra apresentando uma contribuição inovadora apartada de posições de natureza culturalista erigida em torno de premissas imutáveis e anticientíficas.

A própria compreensão sobre a natureza e os limites acerca da democracia contemporânea passou por um ponto de inflexão a partir dos escritos do cientista político estadunidense. Para não cair num atoleiro semântico, Dahl entendia por poliarquia aquela forma de governo que se mantém continuamente responsiva em relação às demandas e preferências dos cidadãos considerados como politicamente iguais. A democracia, em seu modo de ver, constituía um ponto de chegada, ou melhor dizendo, um limite teórico. Nesse sentido, preferiu o autor se afastar do termo democracia por entender que o mundo atual, habitado por homens e mulheres modernos, se apresenta como uma pobre aproximação do ideal democrático da Antiguidade. Mais do que uma mera mudança terminológica, o conceito de poliarquia se incorporou, de tal modo, ao jargão técnico da Ciência Política que hoje em dia é quase impossível passar sem ele em um congresso ou evento acadêmico de peso.

Em uma época caracterizada pelo retrocesso democrático em vários países do globo, inclusive no Brasil, com a ascensão de uma agenda autoritária capitaneada por grupos políticos de extrema direita, a obra Poliarquia preserva um ethus democrático envolto em uma análise rigorosa sobre os processos de democratização a partir do uso de variáveis políticas. Se coube a Maquiavel demarcar o divórcio entre a política e a ética, ou mesmo, entre a política e a religião, coube, por sua vez, ao cientista político Robert Dahl inovar na explicação da passagem de regimes hegemônicos para as chamadas poliarquias plenas desvinculadas de critérios não políticos, como o suposto vínculo em relação à teoria da modernização (Seymour M. Lipset) ou mesmo à ocorrência de alianças de classe em face de processos históricos concretos (Barrington Moore Jr). Assim, podemos afirmar que o poder de fascínio da obra se encontra em cada página e releva a possibilidade de comparar os regimes à luz de elementos eminentemente políticos. Todo aquele estudante principiado no domínio da Ciência Política ou na grande área de Ciências Sociais deve na sua formação acadêmica ter lido este clássico quinquagenário pelo menos uma vez na vida sob o risco de cassação do diploma. Exageros à parte, o fato é que esta pequena grande obra é tão importante hoje quanto na época em que foi escrita.  

 

Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

DAHL, Robert. A moderna análise política. São Paulo: Lidador, 1970.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Prefácio Fernando Limongi; tradução Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2005.

HELD, David. Modelos de Democracia. Belo Horizonte: Editora Paideia, 1987.

MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.


quarta-feira, 14 de julho de 2021

Covid-19 e o capitalismo de desastre

 

   Suellen Correa (doutora em Antropologia pela UFF)


* Foto sem autoria retirada da matéria “Capitalismo, coronavírus e mudança climática”, disponível em https://esquerdaonline.com.br/2020/07/12/capitalismo-coronavirus-e-mudanca-climatica/ (acesso em 12 jul. 2021).

                      

    Em ensaio anterior pude apresentar a discussão acerca da crescente necessidade de reformulação e adequação dos estudos de eventos de riscos (desastres e catástrofes) nas Ciências Sociais a partir da pandemia pelo novo Corona Vírus [1], sendo esta um evento novo para essa área de pesquisa em termos de abrangência, de número de mortes e afetados, além da extensa diversidade de consequências econômicas, sociais, políticas e culturais na atualidade.

    Ao considerar a pandemia da Covid-19 como um evento de desastre – ou de catástrofe (MONTANO; SAVITT, 2020) – é possível tecer algumas relações de semelhança com estes “eventos críticos” (DAS, 1995). A que se procura tratar nesta breve reflexão é a relação dos desastres com oportunidades de crescimento patrimonial para uma pequena parcela da população, além de facilitações ao avanço neoliberal. Esta relação pode estar ligada ao chamado capitalismo de desastre [KLEIN, 2008).

    Segundo o pesquisador português José Manuel Mendes, os eventos de catástrofes “podem ser reveladores da lógica do capitalismo e dos limites do neoliberalismo” (2016, p.4). Ainda que Mendes defenda o estudo do capitalismo enquanto um sistema econômico sem coerência, ou essência inerente - apesar de reconhecê-lo como força de acumulação e de distribuição do capital (ARRIGUI, 2010, apud MENDES, 2016, p.4) – para o sociólogo é possível apreender uma lógica subjacente aos desastres, ao analisar as “configurações que o capitalismo assume nos contextos específicos onde opera, e a sua relação complexa com as formas de Estado, as culturas e as sociedades que encontra” (MENDES, 2016, p. 4-5). Tomando essa perspectiva, a lógica da acumulação foi (e está sendo) um dos fatores descortinados nesta pandemia. Alguns exemplos apresentam como este tipo de crise sanitária é apropriado pelo capitalismo de desastre.

    Uma amostra que ilustra a questão é apresentada por Naomi Klein, ao problematizar como o neoliberalismo e o capitalismo esticam seus limites e suas operações em contextos de choque e de crise [2]. A jornalista canadense lembra das tentativas de resgates corporativos sem restrições e regulação, tomando como justificativa a crise da Covid-19, que foram exploradas pelo governo Trump e por outros ao redor do mundo (2020).

    Outro exemplo vem da Índia que, apesar de ter sido um dos países que mais sofreu com mortes e a crise econômica pelo novo Corona Vírus, viu as fortunas dos indianos mais ricos dispararem dezenas de bilhões de dólares, segundo levantamento [3].

    Recentemente não só a fortuna de uns aumentou como outros passaram a fazer parte do grupo dos mais ricos. Segundo o relatório Global Wealth Report 2021 - elaborado anualmente pelo banco Credit Suisse - o mundo terminou 2020 somando 10% a mais de pessoas com riqueza superior a US$ 1 milhão, comparado ao ano de 2019 [4]. O crescimento econômico dessa pequena parcela da população acontece justamente devido aos estímulos contra a Covid [5], mesmo em meio ao crescimento da pobreza no mundo pela pandemia.

    E no Brasil a lógica segue próxima. Segundo estudo da ONG Oxfam, entre 18 de março e 12 de julho de 2020, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1 bilhões [6]. Além do aumento patrimonial dos mais ricos, é possível atestar incentivos das privatizações no pós pandemia do país, seguidos por discursos parlamentares e de outros agentes políticos, como o presidente da República e o ministro da Economia, com o uso da retórica da recuperação da crise causada pela pandemia, para impulsionar o apoio a privatizações e a leilões de estatais (ainda que haja resistência ao apoio dessas políticas) [7].

    Além da frente de enfraquecimento de partes do Estado, durante a pandemia vemos os esforços empreendidos nos ajustes fiscais e nas restrições de direitos, como os congelamentos salariais e da progressão de carreiras públicas em curso. Sobre o primeiro, a Lei 173/2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19, mostra a fragilidade dos direitos dos servidores públicos ao exigir, como contrapartida do acordo de auxílio fiscal e financeiro do Governo Federal aos estados e municípios, a impossibilidade de aumento, reajuste ou adequação de remuneração dos servidores federais, estaduais e municipais, bem como quinquênios e outros direitos, até 31 de dezembro de 2021 [8].

    Essas manobras vão ao encontro do que Klein afirma sobre a chamada doutrina de choque, que se apresenta como uma oportunidade defendida por economistas de impor ideias mais radicais do livre mercado em contextos catastróficos, como uma grande crise econômica, uma guerra, um ataque terrorista ou um desastre socioambiental (2008).

    Outras questões interpostas ao neoliberalismo, ao capitalismo de desastre e às lógicas do lucro caminham ao encontro das experiências brasileiras ligadas às tentativas de desvios e superfaturamentos de insumos hospitalares em estados brasileiros e de vacinas envolvendo o governo federal e representantes de vendas das suas fabricantes (mas este assunto fica para uma próxima reflexão). 

    O capitalismo de desastre opera na atual crise sanitária intensificando ainda mais as consequências sociais e econômicas ocasionadas com a pandemia: aumento da desigualdade, da fome e do desemprego (não podemos esquecer dos conflitos raciais, da violência doméstica, da truculência das forças de segurança pública do estado em periferias e comunidades). Aqui no Brasil os efeitos são ainda mais perversos para os mais pobres, quando atestamos a falta de uma gestão da crise eficiente e uma política pró contaminação e mortes dos trabalhadores. A conclusão a que se pode chegar é a apresentada por Leonardo Boff: "Aqui se mostra a plena consciência de que uma economia só de mercado, que tudo mercantiliza, e sua expressão política o neoliberalismo são maléficas para a sociedade e para o futuro da vida" (2020) [9].

    Apesar da falta de perspectiva que a extensão e a duração da pandemia possam propagar, há movimentos que apontam para direções opostas às lógicas impostas. Países começaram a rever questões sociais, por exemplo, em relação aos auxílios emergenciais, à suspensão de despejos, aos auxílios a desempregados e ao estímulo a serviços públicos de saúde, características de uma Social Democracia acionadas para (paradoxalmente) manter a continuidade do neoliberalismo. Como afirma Klein, choques e crises nem sempre seguem a doutrina do choque e esta história ainda não terminou (2020) [10].

[1] Texto disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/04/covid-19-e-as-ciencias-sociais-dos.html (acesso em 11 jul. 2021).

[2] “CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”? Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

[3] “Bilionários da Índia ficam mais ricos, enquanto Covid-19 leva vários à pobreza”. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/07/09/bilionarios-da-india-ficam-mais-ricos-enquanto-covid-19-leva-varios-a-pobreza (acesso em 11 jul. 2021).

[4] “Mundo ganha milionários na pandemia; no Brasil, número de ricos cai e desigualdade aumenta”. Disponível em https://www.infomoney.com.br/economia/mundo-ganha-milionarios-na-pandemia-no-brasil-numero-de-ricos-cai-e-desigualdade-aumenta/ (acesso em 12 jul. 2021).

[5] Matéria “Estímulos contra a crise da covid deixaram os bilionários ainda mais ricos”. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/estimulos-contra-a-crise-da-covid-deixaram-os-bilionarios-ainda-mais-ricos.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

[6] “Patrimônio dos super-ricos brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a pandemia, diz Oxfam”. Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

[7] “Projeto proíbe privatizações até 12 meses após o fim da pandemia”. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/informe-fenae/projeto-proibe-privatizacoes-ate-12-meses-apos-o-fim-da-pandemia/ (acesso em 12 jul. 2021).

[8] Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm (acesso em 12 jul. 2021).

[9] “O coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo do desastre”. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597264-o-coronavirus-o-perfeito-desastre-para-o-capitalismo-do-desastre (acesso em 12 jul. 2021).

[10] “CORONAVÍRUS: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres”? Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

Bibliografia:

BOFF, Leonardo. O coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo do desastre. Revista IHU Unisinos, 20 mar, 2020. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597264-o-coronavirus-o-perfeito-desastre-para-o-capitalismo-do-desastre (acesso em 12 jul. 2021).

BRASIL. Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm (acesso em 12 jul. 2021).

CORREA, Maria Suellen Timoteo. Covid-19 e as Ciências (Sociais) dos Desastres. Blog Diálogos do Fim do Mundo, 7 abr 2021. Disponível em https://dialogosdofimdomundo.blogspot.com/2021/04/covid-19-e-as-ciencias-sociais-dos.html (acesso em 11 jul. 2021).

Das, Veena. Critical Events. An Anthropological Perspective on Contemporary Índia. Delhi: Oxford University Press, 1995, 230 p.

KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

___________. Coronavirus: Como vencer o capitalismo que se abastece de desastres? The Intercept, 21 mar 2020. Disponível em https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/ (acesso em 11 jul. 2021).

MADHOK, Diksha. Bilionários da Índia ficam mais ricos, enquanto Covid-19 leva vários à pobreza. CNN Brasil, 09 jul. 2021. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/07/09/bilionarios-da-india-ficam-mais-ricos-enquanto-covid-19-leva-varios-a-pobreza (acesso em 11 jul. 2021).

MENDES, José Manuel. A dignidade das pertenças e os limites do neoliberalismo: catástrofes, capitalismo, Estado e vítimas. Sociologias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 18, núm. 43, 2016.

MONTANO, S.; SAVITT, A. Not All Disasters Are Disasters: Pandemic Categorization and Its Consequences. Essay “Covid-19 and the Social Sciences”. Items - Insights from the Social Sciences. September 10, 2020. Disponível em https://items.ssrc.org/covid-19-and-the-social-sciences/disaster-studies/not-all-disasters-are-disasters-pandemic-categorization-and-its-consequences/ (acesso em 04/04/2021).

PATRIMÔNIO dos super-ricos brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a pandemia, diz Oxfam. G1, 27 jul. 2020. Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).

PROJETO proíbe privatizações até 12 meses após o fim da pandemia. Congresso em Foco, 31 jul. 2020. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/informe-fenae/projeto-proibe-privatizacoes-ate-12-meses-apos-o-fim-da-pandemia/ (acesso em 12 jul. 2021).

SEGALA, Mariana. Mundo ganha milionários na pandemia; no Brasil, número de ricos cai e desigualdade aumenta. Infomoney, 22 jun 2021. Disponível em https://www.infomoney.com.br/economia/mundo-ganha-milionarios-na-pandemia-no-brasil-numero-de-ricos-cai-e-desigualdade-aumenta/ (acesso em 12 jul. 2021).

SHARMA, Ruchir. Estímulos contra a crise da covid deixaram os bilionários ainda mais ricos. Globo, 15 mai 2021. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/estimulos-contra-a-crise-da-covid-deixaram-os-bilionarios-ainda-mais-ricos.ghtml (acesso em 12 jul. 2021).


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Não era depressão, era capitalismo*

                                                                                                                                  






     Texto escrito por Flávia Mendes - Doutora em Ciência política (UFF) 

*Pichação no Chile durante as manifestações de 2019



No período de 40 anos, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos de 1980, a depressão tornou-se a principal forma de sofrimento de nossa época. A afirmação do professor e psicanalista Christian Dunker (2021, p. 177) não apresenta nenhuma novidade porque basta um olhar mais atento para os sujeitos de nossa própria convivência que perceberemos que sim, cada vez mais este é o diagnóstico recebido quando os sintomas do sofrimento aparecem. No entanto, o fato do diagnóstico tornar-se recorrente leva a uma naturalização e individualização que parece deslocar a depressão da vida social. A questão que gostaria de levantar nesse breve texto é a relação da depressão com a sociedade que vivemos. O que teria a ver a depressão com a forma de vida que nos é imposta, com a economia e a política? Tudo. O sofrimento é uma característica do momento que vivemos e a hipótese que apresento aqui é que a depressão é uma patologia social (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018).

O atual modelo econômico, o neoliberalismo, não é apenas uma teoria econômica, uma mutação do capitalismo dos anos 1970, pensado por Milton Friedman e seus alunos, conhecidos como Chicagos Boys. O neoliberalismo não é apenas uma nova fase do capitalismo que favorece a financeirização das empresas, o capitalismo imaterial, que naturaliza a existência de uma taxa “natural de desemprego”, fim da presença do Estado garantindo políticas de acesso a médico, moradia, saúde, educação, ele é o retorno da mão invisível do mercado dos primeiros anos do liberalismo e por isso seu nome, neoliberalismo, mas ele é também um modelo de valorização do consumo como formador de identidade e com ele, uma importante transformação é que o sofrimento deixou de ser um problema que atrapalhava o desenvolvimento do trabalhador nas fábricas para ser produzido e administrado para aumentar o desempenho, e “é isso que caracteriza o neoliberalismo no contexto das políticas de sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização”. (DUNKER, 2021, p. 182).

O neoliberalismo não se limita a área econômica, para existir, precisa criar um estilo de vida, ou seja, com novos sujeitos que vivam suas vidas num formato neoliberal. Nesse sentido, sendo todos nós sujeitos dessa época, somos atravessados por essa ideologia, alguns mais que outros, mas somos todos, em alguma medida, sujeitos neoliberais. E o sujeito neoliberal é – ou precisa ser – um sujeito produtivista. Tem que ser proativo, porque esse sujeito quer ser o herói, o vencedor, dono de si. Ou pelo menos precisa pensar que é. Margareth Thatcher afirmou que “a economia é o método. O objetivo é mudar o coração e alma”. (THATCHER apud SAFATLE, 2021, p.24). Para transformar mentes e corações foi preciso reeducar os indivíduos para que se enxergassem como empreendedores de suas próprias vidas a partir da noção de que a racionalidade econômica imposta é a única forma de racionalidade possível.

O professor de filosofia da USP Vladimir Safatle em capítulo escrito no livro que organizou com os psicanalistas e também professores da USP, Christian Dunker e Nelson da Silva Júnior, Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, publicado pela editora Autêntica (2021) observa que é uma falácia acreditar que o Estado torna-se mínimo no neoliberalismo, ao contrário, é necessário um Estado forte em diversas áreas para impor o modelo econômico que retira direitos, fragiliza os laços sociais, retira de todos a possibilidade de organização e planejamento da vida a longo prazo, porque a impermanência torna-se característica de uma época. Se por um lado o Estado deixa de garantir políticas públicas que garantam aposentadoria, universalização da saúde e acesso à educação, por outro lado esse Estado mantém o controle social e as políticas punitivistas. Nesse sentido, a intervenção do Estado não deixa de acontecer, mas ela se dá de outra forma que não mais aquela do modelo keynesiano.

A transformação da escassez em dado evidente só pode ser produzida através da absorção, pelo discurso econômico, da força disciplinar da crença na vulnerabilidade da vida, em sua fragilidade constitutiva. Crença que é fundamental para certa moral e uma circulação de afetos fundados no medo e capazes de motivar a ação em direção ao trabalho compulsivo e à poupança. (SAFATLE, 2021, p. 21).

Para essa “engenharia social” (SAFATLE, 2021, p. 25) funcionar foi necessário uma enorme intervenção social e a despolitização da sociedade, para que as ideias de empreendedorismo, de empresário de si mesmo, e livre-iniciativa reinassem absolutas. Necessário, portanto, o esvaziamento de sindicatos, associações e toda forma de organização coletiva que pudesse se contrapor a este modelo. O neoliberalismo cria um discurso que circula na mídia, nas redes sociais, nas pedagogias escolares, nos discursos políticos, cria uma ideia de normalidade de toda exploração e sofrimento que o capitalismo nos moldes neoliberais nos impõe. Nos acostumamos a passar mais tempo trabalhando que fazendo qualquer outra coisa da vida, a falarmos de trabalho nos horários de lazer, a termos menos direitos trabalhistas que as gerações passadas, a nos sentirmos culpados se não estamos produzindo, pensar no trabalho ou na falta dele no caso das pessoas sem emprego, do momento que acordamos ao momento que vamos dormir, tratar como empreendedor o desempregado que sem condições de ter como pagar as contas e garantir a manutenção da vida torna-se vendedor ambulante, ou vendedor de qualquer outra coisa que consiga criar apenas para não passar fome, acreditar que os trabalhadores de aplicativos são livres e donos do seu tempo, que na empresa onde trabalhamos somos um time, uma família e devemos vestir a camisa da equipe. Passar o horário de almoço trabalhando, almoçar em meio a reuniões – algo muito normalizado nesse tempo pandêmico de trabalho remoto. Aplicar nas escolas pedagogias para os alunos serem produtivos e adaptáveis, corpos dóceis que aceitem sem reclamação tudo que for solicitado, e no caso de sentir tristeza, o próprio sujeito sentir-se culpado porque além de produzir incessantemente é preciso ser feliz, temos que performar.

O sofrimento de viver numa sociedade neoliberal não é individual, porque viver numa sociedade onde nos sentimos todo o tempo vulneráveis, onde os laços sociais são cada vez mais frágeis, onde o Estado que não se apresenta com políticas públicas, antes, retira direitos que foram conquistados com muita luta. Viver com inúmeras incertezas sobre o que será do amanhã são questões sociais que afetam a todos, mas como o sofrimento é sentido por cada na sua particularidade e o diagnóstico clínico é dado individualmente, esse sofrimento torna-se um problema do sujeito.

As modalidades neoliberais de intervenção ocorreram em dois níveis, no social e no psíquico, e se aceitarmos que a vida psíquica é um setor da vida social, então não podemos separar a forma como os processos sociais nos fazem sofrer e compreender que “não sofremos da mesma forma dentro e fora do neoliberalismo” (SAFATLE, 2021, p. 33). Nesse sentido, a frase pichada durante as manifestações que ocorreram em 2019 no Chile nos chama atenção para o fato de que vivemos numa época que nos causa dor e sofrimento.


Referências bibliográficas

DUNKER, Christian. A hipótese depressiva. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento. SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (org.) 1.ed.2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

DUNKER, Christian. Depressão é sofrimento compatível com o neoliberalismo. Entrevista DW, 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/depressão-é-sofrimento-compat%C3%ADvel-com-o-neoliberalismo/a-56653922 Acesso em 28 Jun. 2021.

KEHL, Maria Rita. Depressão e neoliberalismo. Encontros Latespfip, 2016. Youtube Christian Dunker. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cRDdV-_w0P4 Acesso em 29 Jun. 2021.

SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (org.) Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

SAFATLE, Vladimir. A economia moral neoliberal e seus descontentes. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento. SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson da Silva; DUNKER, Christian (orgs.) 1.ed.2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.